Artistas acusam grupo base da Mídia Ninja de estelionato, retenção de cachê e outros crimes. Denúncias ao Fora do Eixo, liderado por Pablo Capilé, foram impulsionadas pelo depoimento da cineasta Beatriz Seigner
O produtor cultural do grupo Mídia Ninja Pablo Capilé no programa Roda Viva, da TV Cultura, realizado na sede da emissora em São Paulo (Alice Vergueiro/Futura Press/Folhapress)
Usurpação do trabalho de artistas, retenção de cachês, utilização de mão de obra não remunerada, estelionato e até manipulação sexual são algumas das muitas acusações que despontaram na última semana relacionadas ao grupo Fora do Eixo, coletivo cultural liderado por Pablo Capilé e cerne da Mídia Ninja. As denúncias foram impulsionadas pelo depoimento da cineasta Beatriz Seigner, diretora do filme Bollywood Dream – O Sonho Bollywoodiano, postado em sua página pessoal do Facebook na última quarta-feira.
O longo desabafo relata como a cineasta inicialmente se encantou com o discurso de democratização da cultura do Fora do Eixo, e como mais tarde descobriria que a prática não era assim tão coerente com a teoria. Beatriz aceitou participar de festivais em que seu filme era exibido, alguns possuíam patrocinador e cachê, porém os valores não eram repassados a ela. O descaso com seu trabalho ficou ainda mais claro quando ouviu de Capilé que artistas não mereciam pagamento, e que os mesmos eram apenas 'dutos", "os canos por onde passam o esgoto".
A indignação levou Beatriz a divulgar os bastidores do Fora do Eixo, o que serviu de inspiração para que outros artistas e ex-colaboradores fizessem o mesmo.
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Ameaças e cachês simbólicos - Em atividade desde 2005, o grupo é conhecido no cenário da cultura independente e ganhou verniz com a repercussão da Mídia Ninja. Além deste, o Fora do Eixo possui outros braços como uma “universidade livre”, apoiada pela Petrobrás; um selo musical, que possui incentivo do Ministério da Cultura; o embrião de um partido político, chamado de Partido Fora do Eixo; e também casas espalhadas pelo Brasil onde vivem jovens que não pagam aluguéis e trabalham em prol do grupo sem receber salário. No entanto, recebem como remuneração uma moeda virtual chamada de Cubo Card, que pode ser utilizada em troca de serviços de parceiros do grupo.
Beatriz Seigner relata que foi informada sobre a existência da tal “moeda”, porém nunca teve acesso aos serviços oferecidos. O mesmo diz Fernanda Popsonic, vocalista da banda Lucy and the Popsonics, que disse ter sido incentivada por Beatriz a contar sua história.
“Percebi que esse era o momento de falar, a Beatriz me disse que está recebendo ameaças do grupo, mas agora ninguém pode fazer nada conosco”, disse em entrevista ao site de VEJA. Fernanda vive em Brasília e após alguns contatos com o grupo foi convidada, em 2006, para participar do Festival Calango em Cuiabá, no Mato Grosso. O Fora do Eixo prometeu pagar as despesas de viagem como um cachê simbólico. A banda viajou, se apresentou e no fim não recebeu a ajuda de custo prometida. “Recebi um ano depois porque ‘escandalizei’ na internet”, diz Fernanda. “Os artistas independentes entendem quando o produtor não pode pagar. Mas no caso do Fora do Eixo não dá para entender como uma associação que entra em editais, que tem patrocínios de empresas diversas, que recebe dinheiro público do governo não paga os músicos? Isso é trabalho escravo.”
Desapontada, Fernanda deixou de fazer parcerias com o grupo e contou sua experiência para um jornalista, em 2007. Antes de a reportagem ser publicada, a artista recebeu um telefonema de um integrante do Fora do Eixo que ela prefere não identificar, avisando que se a denúncia fosse publicada, sua banda chegaria ao fim e nenhum festival ou casa de show no país os aceitaria novamente. “Liguei para o jornalista que compreendeu e não publicou minha entrevista, mas agora não tenho mais medo de falar. Não dependo do Fora do Eixo para viver.”
Outro artista que afirma ter sido enganado pelo grupo foi Daniel Peixoto, cantor conhecido pela música Olhos Castanhos, trilha sonora da novela Lado a Lado. Daniel se envolveu com o Fora do Eixo quando ainda fazia parte da dupla Montage, em 2007, e participou de diversos festivais organizados pelo Fora do Eixo.
Por cada apresentação, a banda recebia cachês simbólicos no valor de 300 reais, quantia que no fim era dividida por seis pessoas. Envolvido no discurso da organização, o cantor afirma que não se importava com o cachê baixo na época, porém se frustrou em 2011, quando lançou seu primeiro CD solo, custeado de forma independente, e mais tarde comercializado pelo Fora do Eixo, que não repassou nenhum valor ao artista.
“Gastei cerca de 30 mil reais na produção do CD”, conta Daniel ao site de VEJA. “Eu tinha convites para vários selos, mas topei lançar com o Fora do Eixo Discos, pois queria continuar a história que começamos. Minha grande surpresa foi quando recebi as cópias e percebi que não tinham código de barras”, diz o cantor. Segundo Daniel, cerca de mil exemplares do CD ficaram com o Fora do Eixo, e até hoje os mesmos são comercializados em banquinhas montadas nos festivais. “Fui enganado, eles me prometeram uma coisa e fizeram outra”, diz Daniel.
O caso é ainda mais grave pelo fato de que as músicas do álbum foram registradas pelo IRSC (código padrão internacional de fonogramas) de um selo parceiro da Fora do Eixo no nome de outras bandas, e não pelo cadastro de Daniel. Por esse motivo, o artista não é considerado o “dono” de suas canções e não recebe os direitos autorais delas, até mesmo da música que foi trilha sonora da novela global.
Por dentro do eixo - Enquanto os depoimentos de pessoas como Daniel, Fernanda e Beatriz começam a circular, indivíduos que apoiam a causa se manifestaram a favor do Fora do Eixo. Entre estas manifestações estão, claro, os depoimentos públicos de Pablo Capilé, que se disse aberto para o debate e para perguntas. O líder da organização chegou a postar, na última sexta-feira, um texto com links de testemunhos felizes de pessoas que são parte do Fora do Eixo. O mesmo post foi apagado por ele duas horas mais tarde. Outro envolvido com a Mídia Ninja, Bruno Torturra, defendeu a organização e o amigo, e se disse “deprimido” com o que estava vendo na rede.
Nem a depressão de Torturra ou a volubilidade de Capilé ao decidir o que fica ou não em seu mural do Facebook foram suficientes para abafar as diversas acusações feitas na rede, entre elas a de Lais Belini, que morou por 9 meses na Casa Fora do Eixo em São Paulo. No saldo, Laís abandonou a faculdade por causa do Fora do Eixo, chegou a trabalhar 18 horas por dia sem receber salário, era proibida de se relacionar com pessoas de fora do grupo, enfrentou situações abertas de sexismo dentro da casa, além de descobrir que uma das maneiras de “cooptar” pessoas para o trabalho era através de membros escolhidos em reuniões que deveriam se aproximar e demonstrar interesse amoroso no alvo. Lais relatou também a dificuldade que é sair do grupo e que alguns dos que conseguiram precisaram de ajuda psicológica para superar o período vivido ali. “O Fora do Eixo é uma das estruturas mais engessadas que eu conheço na minha vida, ditatorial diria eu”, diz a jovem em um trecho de seu texto.
A mesma opinião é compartilhada por Fernanda Popsonic, que não entende como um grupo que se diz apoiador da cultura e de uma mídia imparcial e sem laços, pode possuir um líder com vezo autoritário, ter estreito envolvimento com partidos políticos e participar de campanhas eleitorais. “Eles falam sobre serem livres de pensamento, mas não é nada disso. Os debates do Fora do Eixo possuem uma nota só. Todos tem que ter a mesma opinião. Senão você não é bem-vindo”, diz Fernanda.
09 de agosto de 2013
Raquel Carneiro - Veja
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