Que o leitor me desculpe a autorreferência, mas para quem caracterizou o sistema brasileiro como dependente de uma dimensão hierárquica (a realidade do mais ou menos) que obriga em saber quem manda ou quem é dono — o famoso, mas pouco avaliado, “Você sabe com quem está falando?” — o mal-estar que nos assola tem tudo a ver com uma ausência de limites relacionada a uma forte presença da igualdade e a ausência significativa, típica do lulopetismo, de alguém capaz de ancorar responsavelmente a cena política.
A velha oposição entre direita e esquerda que sempre ajudou a montar a nossa cosmopolítica dividindo o mundo entre mal e bem, burgueses vendidos e nós, esboroou-se com as manifestações que trouxeram ao palco uma multidão de reivindicações, a maioria pedindo o final de dois pesos e medidas, de uma ética de condescendência típica das posições lulistas e messiânicas.
Fincadas na liberdade e exigindo igualdade, as passeatas inauguraram um escandaloso “ninguém sabe com quem está falando!” Deste modo, o mandamento central da nossa cartilha política sumiu depois das reações da presidente, cujo resultado criou novos confrontos.
Mas o clímax desta ausência de limites foi a entrevista à “Folha de S.Paulo”, na qual se lê que Dilma e Lula são “indissociáveis”. Formam, como eu insinuei nesta coluna faz tempo, um perfeito ato de ventriloquia. Agora ninguém sabe mais se está falando com o ventríloquo ou com o boneco.
As passeatas testam de modo intenso onde estão os limites. Elas também desnudam a falta de interlocução entre as forças sociais que o próprio exercício da democracia liberal libertou entre nós.
Nas repúblicas, tal papel cabe ao Poder Executivo. Um poder solitário, próprio de um personagem capaz de eliminar as arestas do impessoalismo da dimensão liberal, fundada no consentimento e na difícil ética de dizer não aos nossos desejos e interesses.
Como entender o nosso pobre, querido, passivo e abandonado “povo” quando ele deixa de ser a parte passiva de discursos populistas controlados por um partido, e passa a ser um protagonista livre a clamar não por uma revolução, mas por um estilo de governar mais sincero, mais honesto e menos mentiroso?
Mais próximo das necessidades pagas pelo trabalho desse povo, o que faz das passeatas também uma cobrança. Uma exigência de reciprocidade depois de uma década e pouco de megapublicidade despudorada e promessas não cumpridas?
A explicação de que tudo foi obra de redes eletrônicas é importante, mas não se pode esquecer que nenhum computador opera sem ter sido ligado. Para que as redes influenciem, é preciso fazer parte de uma teia. De uma rede que valorizamos e seja capaz de ordenar para nós.
O fato novo é o elo entre individualismo, transparência e igualdade em tempo real e global. É a vida num universo translúcido no qual a comparação é um dado essencial e que, por isso mesmo, não pode conviver com a opacidade de um sistema de governo desenhado para manter os labirintos sombrios dos que se tornam aristocratas (e milionários!) pela política.
É preciso liquidar a distância entre o ético e o legal onde nascem as oligarquias e os privilégios que sempre foram o apanágio do poder à brasileira. São eles que separam o abismo entre o circo futebolístico “padrão Fifa” do pão amargo de um transporte, de uma saúde, de uma educação e de uma segurança abaixo de todos nós — as pessoas comuns.
Vivemos hoje a rejeição de um mundo ideológico tão a gosto de um desonesto receituário político. Esquerda e direita escondem quem manda mais e quem manda menos; quem é realmente responsável pela torrente de escândalos que a mídia e as redes não podem abafar.
Do fundo da megalópole dita sem alma, surge um povo livre de partidos. Sobretudo do partido do poder. O povo, curiosamente individualizado na passeata, aponta a dissonância: há um padrão internacional para o futebol, mas não há um padrão decente para a moralidade pública.
O resultado é uma perturbação histórica. No país do “Você sabe com quem está falando?”; na terra dos barões, dos populistas e dos que sabem tudo, não temos mais com quem falar. Há uma busca, mas a presidente ouve e não escuta. Ela gerencia: decreta e discursa. E quando o faz, cria outras passeatas e abre a coletividade para novos problemas.
Um lado meu teme pela ausência de atores mais conscientes dos seus papéis; um outro, otimista, acha que começamos a descobrir que democracia tem a ver com uma anarquia controlada. Um sistema onde cada qual sabe do mais difícil: a grande arte de dizer não a si mesmo.
07 de agosto de 2013
Roberto DaMatta é antropólogo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário