"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



segunda-feira, 19 de março de 2012

AS GUERRAS DO POBRECON

Você pode até desejar, do fundo do coração “gauchiste”, que o império americano seja um dia enterrado pelas forças populares globais. Mas, até que isso aconteça, a razão manda admitir que a boa saúde dos EUA é do interesse do Brasil e das demais nações. Os mercados sabem disso, claro. A Bovespa subiu forte na última terça, com as demais bolsas mundiais, na esteira de informações que confirmaram a recuperação da máquina americana.

A lógica começa bem simples. Se tudo correr bem, o consumidor dos EUA vai torrar no shopping mais de US$ 10 trilhões neste ano. Comprando o quê? Mercadorias “made in China”, certo, mas também produzidos no mundo todo, incluindo Brasil. Além disso, para montar o que vende nos EUA, a China importa matérias-primas e componentes do mundo todo — e roda a economia de novo.

Eis por que os investidores correram a comprar ações quando souberam que as vendas no varejo nos EUA, em fevereiro, haviam subido expressivamente. Além do mais, o fortalecimento da atividade econômica lá no império revigora o dólar, ou seja, valoriza as verdinhas em relação às demais moedas.

No outro lado, na Europa, a ação do Banco Central — emprestando caminhões de dinheiro barato para os bancos — e o bom andamento da reestruturação da dívida grega afastaram a ameaça de crise aguda por pelo menos três anos.

Portanto, boas notícias, certo? O problema é que esse panorama perturba o que se poderia chamar de “Pensamento Oficial Brasileiro Econômico” (Pobrecon), conforme tem sido exposto por diversas autoridades, a começar pela presidente Dilma. Não é que torça para isso, mas o Pobrecon, digamos, precisa de um agravamento da crise internacional para fechar sua lógica.

O Banco Central, por exemplo, sustenta que essa crise, ao derrubar o crescimento global, produz efeitos “desinflacionários” pelo mundo afora, Brasil incluído. Logo, ele, BC, pode reduzir a taxa básica de juros mais agressivamente. Já na versão do Palácio do Planalto e da Fazenda, o Pobrecon precisa do “tsumani monetário” global. Se os EUA e a Europa estão colocando tanto dinheiro barato no mercado, isso é uma nova modalidade de guerra cambial. Em outras palavras, os ricos estariam fazendo isso só para desvalorizar suas respectivas moedas, fortalecer suas exportações e, assim, arrasar a expansão dos emergentes que resistiram melhor à crise financeira de 2008/09.

Com isso, o Pobrecon justifica as medidas protecionistas, que bloqueiam importações e a entrada de dólares, aumentando preços internos e atrapalhando, por exemplo, as viagens de brasileiros que vão ao exterior em busca de produtos mais baratos e melhores.

O governo Lula ganhou muita popularidade com o dólar barato e seus subprodutos: consumo local estimulado por preços baixos e a “bolsa Miami”, a facilidade da nova classe média para estrear seu passaporte. Mas o mundo mudou, diz o Pobrecon, agora estamos em guerra e a culpa é dos ricos.

A ironia da história é que o “tsunami” está funcionando como esperavam seus autores. A enxurrada de dinheiro, a juros perto de zero, reequilibrou o sistema financeiro, afastou a ameaça de quebra de bancos e vai recompondo a concessão de crédito para empresas e consumidores. No primeiro momento, o tsumani derruba o valor de dólar e euro, espalha dinheiro barato pelo mundo. No segundo, a atividade econômica começa a engrenar de novo — e a “guerra” vai terminando.

Ora, se isso se confirmar ao longo deste ano e se a China desacelerar suavemente, mantendo ainda um bom nível de expansão, estaremos deixando para trás o ambiente sombrio de meados de 2011.

A boa notícia é que, mantida essa tendência mundial, o Pobrecon terá mais chance de alcançar sua outra meta, a de levar o Brasil a um crescimento de 4,5% neste ano. (Ou 5% se o mundo for favorável, como já disse o ministro Mantega).

A má notícia é que, se crescer isso tudo, a inflação também deve subir — como sempre acontece quando o país acelera — e isso atrapalha o outro objetivo do Pobrecon, que é colocar a taxa de juros lá em baixo. Também cria dificuldades para uma outra meta do Pobrecon, que é colocar o real acima de R$ 1,80 por dólar. Dólar caro, importações mais caras, financiamento externo mais caro, tudo isso é inflacionário e atrapalha a atividade econômica imediata.

Resumo da ópera: se tem guerra, os juros podem cair e o dólar subir, mas o país não cresce aquilo tudo. Se crescer, ajudado pelo fim da guerra, sobem a inflação e os juros, mas não o dólar. Mas vai ver que essa é a sacada do Pobrecon: relaciona tantos objetivos, tão diferentes e contraditórios, que pode cantar vitória qualquer que seja o resultado. Mas que deixa investidores e consumidores confusos, isso deixa. Talvez uma guerra de verdade ajudasse. Problema: quem vamos invadir?

16 de março de 2012
Carlos Alberto Sardenberg
Fonte: O Globo, 15/03/2012
19 de março de 2012

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