É uma verdadeira aula de Brasil a trajetória dessa "reportagem" do Fantástico que colocou o país frente a frente com o cotidiano da corrupção que irradia de Brasília para cada hospital, cada escola, cada guichê de cada repartição pública, de cada município e de cada estado brasileiro, disputados pelas 27 máfias com representação no Congresso Nacional, que mantêm os dentes cravados nas veias deste país.
Não tanto pelo que a Globo nos tem mostrado à exaustão. As cenas de deboche filmadas apenas põem carne e osso reais nos arquétipos que todos os chicos anísios deste e dos séculos passados já montaram tantas vezes com a precisão do absolutamente dejà vu.
O que ensina mais sobre o ponto a que chegamos é justamente o que ela tem mostrado de menos.
Pense, por exemplo, sobre tudo que nos sussurra o fato de uma rede de televisão poder negociar com um hospital público o estratagema que resultou no registro daquelas imagens. Quem quiser ser otimista pode ver aí até uma luzinha de esperança. Existiria quem ainda tenha medo do inferno no serviço público brasileiro? Haveria, por trás de tudo, um diretor indignado, cansado de ver a roubalheira tantas vezes denunciada a seus superiores repetindo-se impunemente, com consciência e coragem suficientes para fazer justiça com as próprias mãos?
É um pensamento auspicioso...
Mas porque, então, não foi essa a matéria da Globo?
E que dizer do fato - óbvio também - de cada um dos ladrões filmados roubar em dezenas de outras portas do mesmo "estabelecimento" ao qual pertence esse hospital. Como é possível que o flagrante da indecente promiscuidade entre a prefeitura e o governo do Estado do Rio de Janeiro com ratazanas tão inconfundivelmente ratazanas quanto as que o país inteiro viu em ação no Fantástico continue sendo tratado como um "side" de menor importância, dando-se a reportagem da Globo candidamente por satisfeita com a "surpresa" demonstrada pelo prefeito e pelo governador com aquela montanha de contratos e a promessa vaga de "suspende-los para investigação"?
Já sei o que você pensou...
Mas a Globo, é preciso lembrar, não está sozinha nesse desvio. Mais rica que seus concorrentes, ela consegue a colaboração do governo para exibir o produto da sua própria arapongagem. Mas todos os outros grandes grupos da imprensa brasileira têm apresentado como resultado de investigações próprias aquilo que a polícia dos próprios implicados - quando não agentes menos qualificados - escolhe em seus arquivos para "dar acesso" a quem os faça chegar ao distinto público quando as lutas entre as quadrilhas que disputam os pedaços do Estado brasileiro demandam "fuzilamentos".
E, como a Globo agora, todos quantos "têm acesso" a tais provas retribuem com um silêncio cúmplice a quem os elege como a arma da vez para disparar o petardo contra o inimigo visado. Essa expressão - "tivemos acesso a..." - que se transformou num padrão de todas as "denuncias" da imprensa da Era Lula, é o único sinal cifrado que fica dessa cumplicidade espúria. Nenhum fez, até hoje, a "matéria da matéria", mostrando como e porque aquelas provas lhes foram jogadas no colo, que é a que realmente mostraria a quantas anda o estado moral da Nação. Uma nuvem espessa de obtusidade desce invariavelmente dos céus nesses momentos e todos, entre um auto-elogio e outro pela "exclusividade" do "feito jornalístico", mostram-se tão satisfeitos com a "surpresa" do acusado da hora diante dos "malfeitos" apontados quanto a Globo parece estar agora com a do governador e a do prefeito do Rio.
"Tá tudo dominado!", dirão os mais ligeiros. "Trata-se de uma gigantesca conspiração da qual a imprensa faz parte".
Não atribuo aos protagonistas da nossa crônica político-policial esse grau de competência. O ambiente em que atuam não exige deles nem essa sutileza, nem essa capacidade de articulação com o mundo aqui de fora. A impunidade garantida empurra-os na direção contrária. Tudo o que fazem é cada vez mais explícito e descuidado.
A questão é mais complexa do que isso.
Ainda que existam em torno dos nossos maiores grupos jornalísticos os interesses e as pressões que todos conhecemos, elas são tão diferentes de grupo para grupo que seria impossível tanta coordenação. E, além disso, há uma dimensão do equipamento institucional "imprensa" que nem os proprietários dessas empresas têm o poder de controlar.
É indispensável a anuência do publico para que tanta desafinação possa continuar sendo saudada como música.
Ninguém é treinado como o brasileiro para aceitar o surreal como real. Dormimos pacificamente com o inimigo desde que nascemos. De tal modo que a nossa versão de "democracia" é definida pela forma institucionalizada dessa distorção que é o modo absolutamente lhano com que, dia após dia, escândalo após escândalo, recebemos na sala de nossas casas o criminoso apresentado como santo nos intervalos do mesmo programa jornalístico em que seus crimes acabaram de ser expostos, graças ao "horário eleitoral gratuito".
Se você ainda tem dúvidas sobre o poder distorsivo dessa arma, o fato da disputa pela sua posse ser o fulcro da gigantesca corrupção que marca a luta pelo poder no Brasil indica claramente que nossos políticos não têm nenhuma.
A verdade é que, dos profissionais aos amadores da informação - postos de lado todos os que estão realmente "dominados" - vamos todos perdendo a capacidade de ligar lé com cré. A política brasileira só pode continuar sendo o que é porque nós somos isto em que ela nos transformou. O país inteiro está doente, e reconhece-lo é a primeira condição para sonhar com a cura.
28 de março de 2012
by fernaslm
Um painel político do momento histórico em que vivem o país e o mundo. Pretende ser um observatório dos principais acontecimentos que dominam o cenário político nacional e internacional, e um canal de denúncias da corrupção e da violência, que afrontam a cidadania. Este não é um blog partidário, visto que partidos não representam idéias, mas interesses de grupos, e servem apenas para encobrir o oportunismo político de bandidos. Não obstante, seguimos o caminho da direita. Semitam rectam.
"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)
"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)
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