Quem
trabalha com cultura sabe que, no Brasil, costuma ser tratada mais como item de
luxo do que como gênero de primeira necessidade. Pois ainda no mês passado, em
Santiago, Mario Vargas Llosa fez veemente defesa dessa senhora, dizendo-a
indispensável para as pessoas, para a sociedade e para a vida cotidiana. A
cultura, disse ele, transforma a vida das pessoas e a torna mais fácil de levar.
O interesse pela cultura permite viver melhor, viajar de outra maneira, olhar o
mundo com uma visão que vai além da superfície.
Comentando no jornal El País a fala de Vargas Llosa, outro escritor chileno, Jorge Edwards, dá um exemplo prático. Indo à Holanda para uma viagem profissional, lembrou-se de ter lido páginas maravilhosas de Marcel Proust a respeito de um quadro famoso do mais famoso pintor holandês, Vermeer. Com essa lembrança na alma, Edwards partiu para o principal museu de Haia e parou diante do tal quadro, Vista de Delft.
Embora já o conhecesse, foi como se o visse pela primeira vez, pois agora o via de maneira múltipla, com seus próprios olhos, com os olhos da personagem de Proust que o comenta e com os olhos do próprio Proust, que muito o estudou para poder apropriar-se dele literariamente.
De volta a Santiago, Edwards foi logo à estante buscar o último tomo de Em busca do tempo perdido. E reencontrou-se com Bergotte, o grande escritor da Busca, doente e encharcado de remédios, que um dia lê o texto de um critico de arte dizendo como o pequeno pedaço de parede amarela que aparece no quadro fosse tão bem pintado, que poderia ser olhado separadamente, pois tinha a beleza de uma obra-prima da arte chinesa, capaz de falar por si só. Bergotte, embora doentíssimo, sai, vai a uma exposição de arte holandesa realizada naquele momento em Paris e para diante do quadro.
Fascinado pelo muro amarelo, pensa que deveria ter escrito sempre com a intensidade, a paixão, o talento com que Vermeer pintou o fragmento luminoso. Em seguida, desaba numa cadeira e dali para o chão, morto.
Li isso no aeroporto de Montevidéu, a caminho de casa. E chegando em casa, exatamente como Edwards, estendi a mão para a estante. Catei o terceiro tomo da Busca e mais um livro de arte sobre Vermeer.
Na Busca, sem lembrar exatamente em que páginas do romance procurar o fim de Bergotte, me perdi lendo a descrição minuciosa e encantadora dos pratos de porcelana chinesa em que é servido um jantar na casa dos Verdurin, decorados com íris aquáticos e atravessados por revoadas de martim-pescadores e de garças. Acabei desistindo.
Mas no livro de Vermeer não me perco. Abro Vista de Delft em página dupla. Conheço esse quadro em pessoa. Como Edwards, o vi em Haia. Só um terço da tela é ocupado pela cidade, o resto é céu pesado de nuvens. E na cidade, por trás de fachadas, telhados, torreões, tudo escuro, cintilam à direita algumas construções plenamente iluminadas pelo sol. E a um canto, o muro amarelo. Olho ávida, agora à procura da intensidade quase chinesa, e percebo que a reprodução não me permite ouvi-la falar por si só. Agreguei, porém, ao quadro um ponto focal específico, amarelo, e nunca mais verei Delft sem me lembrar de Proust, Bergotte, Edwards. Era a essa visão, a esse tipo de viagem, que se referia Vargas Llosa.
Comentando no jornal El País a fala de Vargas Llosa, outro escritor chileno, Jorge Edwards, dá um exemplo prático. Indo à Holanda para uma viagem profissional, lembrou-se de ter lido páginas maravilhosas de Marcel Proust a respeito de um quadro famoso do mais famoso pintor holandês, Vermeer. Com essa lembrança na alma, Edwards partiu para o principal museu de Haia e parou diante do tal quadro, Vista de Delft.
Embora já o conhecesse, foi como se o visse pela primeira vez, pois agora o via de maneira múltipla, com seus próprios olhos, com os olhos da personagem de Proust que o comenta e com os olhos do próprio Proust, que muito o estudou para poder apropriar-se dele literariamente.
De volta a Santiago, Edwards foi logo à estante buscar o último tomo de Em busca do tempo perdido. E reencontrou-se com Bergotte, o grande escritor da Busca, doente e encharcado de remédios, que um dia lê o texto de um critico de arte dizendo como o pequeno pedaço de parede amarela que aparece no quadro fosse tão bem pintado, que poderia ser olhado separadamente, pois tinha a beleza de uma obra-prima da arte chinesa, capaz de falar por si só. Bergotte, embora doentíssimo, sai, vai a uma exposição de arte holandesa realizada naquele momento em Paris e para diante do quadro.
Fascinado pelo muro amarelo, pensa que deveria ter escrito sempre com a intensidade, a paixão, o talento com que Vermeer pintou o fragmento luminoso. Em seguida, desaba numa cadeira e dali para o chão, morto.
Li isso no aeroporto de Montevidéu, a caminho de casa. E chegando em casa, exatamente como Edwards, estendi a mão para a estante. Catei o terceiro tomo da Busca e mais um livro de arte sobre Vermeer.
Na Busca, sem lembrar exatamente em que páginas do romance procurar o fim de Bergotte, me perdi lendo a descrição minuciosa e encantadora dos pratos de porcelana chinesa em que é servido um jantar na casa dos Verdurin, decorados com íris aquáticos e atravessados por revoadas de martim-pescadores e de garças. Acabei desistindo.
Mas no livro de Vermeer não me perco. Abro Vista de Delft em página dupla. Conheço esse quadro em pessoa. Como Edwards, o vi em Haia. Só um terço da tela é ocupado pela cidade, o resto é céu pesado de nuvens. E na cidade, por trás de fachadas, telhados, torreões, tudo escuro, cintilam à direita algumas construções plenamente iluminadas pelo sol. E a um canto, o muro amarelo. Olho ávida, agora à procura da intensidade quase chinesa, e percebo que a reprodução não me permite ouvi-la falar por si só. Agreguei, porém, ao quadro um ponto focal específico, amarelo, e nunca mais verei Delft sem me lembrar de Proust, Bergotte, Edwards. Era a essa visão, a esse tipo de viagem, que se referia Vargas Llosa.
12 de abril de 2012
marina colasanti
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