Artigos - Cultura
Alexis Charles Henri Clérel de Tocqueville pertence ao grupo de talentosos historiadores franceses – formado por François Guizot, Jacques Nicolas Augustin Thierry e Jules Michelet – que alcançou a maturidade intelectual no período da Revolução de 1830.
O reinado que então teve início, depois de os liberais forçarem Carlos X a abdicar, durou até 1848, mas foi caracterizado por medidas contrárias às ideias que o novo rei, Luís Filipe de Orléans, ex-membro do Clube dos Jacobinos, dizia defender. Não bastou trocar, demagogicamente, a bandeira branca dos Bourbons pela tricolor da Revolução de 1789: sem conseguir a união de legitimistas, bonapartistas e liberais, Luís Felipe logo restringiria a liberdade para silenciar a oposição.
Tocqueville, cuja família apoiava os Bourbons, aderiu ao novo governo “sem hesitação, mas sem ímpeto”, segundo seu amigo, Gustave de Beaumont, pois, apesar de jovem – tinha 25 anos –, já possuía “a faculdade [...] de ver mais rápido e mais longe do que os outros” e a sábia capacidade de manter distância dos acontecimentos políticos: “Essa exaltação moral que excita um grande movimento popular, o entusiasmo, o júbilo, as vivas esperanças que saúdam de hábito um novo regime, nada disso o tocava”.
Magistrado desde 1827, Tocqueville parte, em 1831, com Gustave de Beaumont, para uma viagem oficial, a fim de estudar o sistema penitenciário dos EUA, desculpa utilizada para alcançar seu verdadeiro propósito: conhecer as experiências democráticas de um país nascente, afastar-se do direito, que o entediava, e dedicar-se ao estudo da política, sua paixão.
Sabemos desses detalhes graças ao próprio Beaumont, autor da introdução do Viagem aos Estados Unidos, livrinho que reúne as anotações de Tocqueville, alguns lampejos, trechos de entrevistas – com políticos, diplomatas, juristas, religiosos, militares etc. – e parte diminuta das análises que serviriam à elaboração de um dos maiores clássicos da ciência política: A democracia na América.
É também graças a Beaumont que conhecemos os lances heroicos da viagem, quando, nas proximidades de Pittsburg, os dois exploradores, que pretendiam “descer o Ohio e o Mississipi num barco a vapor até Nova Orleans”, são pegos desprevenidos pelo inverno, adiantado cerca de um mês.
Sob o frio rigoroso e crescente, a dupla sofre grandes dificuldades – e Tocqueville chega a cair enfermo. O jovem, contudo, supera seus próprios limites e mostra ter uma personalidade obstinada, movida por “uma febre”, afirma seu amigo, que o “devorava sem trégua” – e o fazia tomar notas, de maneira incansável, em pequenas cadernetas, a fim de preservar suas primeiras impressões.
Entre a decepção e a euforia
Na introdução ao seu A democracia na América, Tocqueville afirma: “Na América, quis mais do que a América; busquei uma imagem da própria democracia, de suas tendências, de seu caráter, de seus preconceitos, de suas paixões; quis conhecê-la, nem que fosse para saber ao menos o que devemos dela esperar ou temer”. E parece ter alcançado seu objetivo, pois escreve, em sua anotações, o melhor elogio que a nação ainda jovem, ávida por superar a Europa, recebeu de um observador imparcial:
[...] O mesmo homem pôde dar seu nome a um deserto que ninguém havia atravessado antes dele; ele pôde ver tombar a primeira árvore da floresta, construir no meio da solidão a casa do agricultor, em torno da qual se formou de início um povoado, e hoje transformado em vasta cidade. No curto intervalo que separa a morte do nascimento, assistiu a todas essas mudanças. Em sua juventude, habitou entre nações que já não existem; em sua vida, rios mudaram ou diminuíram seu curso; o próprio clima é outro em relação ao que viu outrora, e tudo isso não é em seu pensamento senão um primeiro passo numa carreira sem limites. Por mais poderoso e impetuoso que seja aqui o curso do tempo, a imaginação precede-o: o quadro não é assaz grande para ela; ela já se apodera de um novo universo. É um movimento intelectual que não pode se comparar àquele que fez nascer a descoberta do Novo Mundo há três séculos; e, com efeito, pode-se dizer que a América é descoberta uma segunda vez. E que não se creia que tais pensamentos só germinam na cabeça do filósofo; eles estão tão presentes no artesão quanto no especulador; no camponês bem como habitante das cidades. Incorporam-se em todos os objetos; fazem parte de todas as sensações; são palpáveis, visíveis, sentidos de certa forma. Nascido sob um outro céu, introduzido no meio de um quadro sempre movente, ele próprio movido pela torrente irresistível que arrasta tudo o que o avizinha, o americano não tem tempo para apegar-se a nada; ele só se acostuma à mudança, e acaba por vê-la como o estado natural do homem; sente a necessidade dela; bem mais, ama-a: pois a instabilidade, em vez de produzir-se para ele por desastres, parece engendrar em torno dele só prodígios...
Mas suas primeiras notas, em 29 de maio de 1831, ainda em Nova York, deixam transparecer certa decepção:
“Até agora, tudo o que vejo não me entusiasma em absoluto, porque estou mais agradecido à natureza das coisas do que à vontade do homem”. E completa: “Aqui a liberdade humana age em toda a plenitude de seu poder [...]; mas até o momento, esta febre parece só aumentar as forças sem alterar a razão”. Tudo vai bem, o país se desenvolve, mas “a agitação política parece-me muito acessória”. Ainda assim, percebe aquele que talvez tenha sido o principal motivo para o desenvolvimento dos EUA: “O fato é que essa sociedade caminha sozinha; e tem boa chance de não encontrar qualquer obstáculo: o governo parece-me aqui na infância da arte”.
Característica, infelizmente, jamais encontrada no Brasil.
Nosso viajante é absorvido por um povo “devorado pelo desejo de fazer fortuna”, mas não deixa de observar, com indignação, os índios que mendigam, derrotados:
“[...] Belos homens; eles dançam diante de nós a war dance (dança de guerra), para ganhar um pouco de dinheiro; espetáculo horrível! Nós lhes damos um shilling...”. O surgimento de uma cultura não significa, contudo, a necessária destruição de outra. No dia seguinte ao desse espetáculo humilhante, 6 de agosto de 1831, ele nos descreve o encontro solene com um personagem que não se entregou à degradação: “Pequena aldeia indígena. Vestimenta do chefe: calças vermelhas, um cobertor; cabelos enrolados para cima da cabeça com duas penas enfiadas. Pergunto o que são essas penas: responde-me com um sorriso de orgulho que matou dois sioux [...]. Peço-lhe uma dessas penas dizendo-lhe que eu a levarei ao país dos grandes guerreiros, e que ela será admirada. Ele a retira de seus cabelos e entrega-me, em seguida, estende sua mão e cerra a minha”.
Apesar do estilo telegráfico, compreensível no caso de alguém que viaja submetido à premência de tudo anotar, Tocqueville consegue ser lírico:
“Ao pôr do sol, entramos num canal muito estreito. Vista admirável; instante delicioso. As águas do rio imóveis e transparentes; uma floresta extraordinária que se reflete nas águas. Ao longe, montanhas azuis e iluminadas pelos últimos raios do sol. Fogo dos indígenas que brilha por entre as árvores. Nosso barco avança majestosamente em meio a essa solidão, ao rumor dos cantos guerreiros que o eco dos bosques propaga de todos os lados”. Dias depois, num vilarejo iroquês, age como um explorador que é, ao mesmo tempo, um menino: “Vou caçar. Rio atravessado a nado. Ervas no fundo do rio. Perco-me por um momento na floresta. Retorno ao mesmo lugar sem perceber”.
No Canadá, em Montreal, reclama da dominação inglesa e augura um tempo em que os franceses tenham “sozinhos um belo império no Novo Mundo”. Ao visitar Quebec, defende a sublevação dos franceses contra os ingleses – “Aquele que deve agitar a população francesa e levantá-la contra os ingleses ainda não nasceu” – e constata, movido pela repulsa à aparente submissão dos seus conterrâneos: “Nunca estive mais convicto [...] que a maior e mais irremediável infelicidade para um povo é ser conquistado”.
Em Boston, constata a riqueza da cidade, faz elogios à vida cultural (em 1831, os bostonianos dispunham de, ao menos, quatro bibliotecas) e escreve, a 22 de setembro, uma inevitável comparação:
...O que mais nos incomoda na Europa são os homens que, nascidos numa condição social inferior, receberam uma educação que lhes dá vontade de sair dela sem fornecer-lhes os meios para isso.
Na América, esse inconveniente da educação é quase insensível. A instrução fornece sempre os meios naturais para enriquecer-se, e não cria qualquer mal-estar social.
Como defender a democracia?
Na cidade de Baltimore, encontra-se com Charles Carroll, último sobrevivente dos signatários da Declaração da Independência, que lhe diz, sem meias palavras: “A mere democracy is but a mob” (“Uma democracia pura não é outra coisa senão um populacho”). Se, a princípio, Tocqueville mantém-se dúbio diante dessa afirmativa, ela certamente o instigou, contribuindo para as geniais conclusões de A democracia na América, entre elas, a de que governos centralizadores e democracias radicais, que oprimem as minorias discordantes, causam o mesmo tipo de mal:
Não há [...] na terra autoridade tão respeitável por si mesma nem revestida de um direito tão sagrado que eu desejasse deixar agir sem controle e dominar sem obstáculos. Quando, portanto, vejo dar o direito e a faculdade de fazer tudo a uma potência qualquer, quer se chame povo ou rei, democracia ou aristocracia, quer se exerça numa monarquia, quer numa república, então digo: aí está o germe da tirania, e procuro ir viver sob outras leis.
Apesar de fascinantes, por revelarem um país onde tudo podia ser experimentado, no qual a vida possui, até hoje, uma dinâmica inesgotável, as notas de Tocqueville estariam fadadas ao esquecimento se não tivessem produzido A democracia na América, principalmente os Capítulos 6 (“O despotismo nas nações democráticas”) e 7 (“De que maneira defender a liberdade ameaçada”) da Quarta Parte do Livro II, centrais em sua defesa da liberdade, primorosos ao apresentar as contradições que encontrou:
“O que mais me repugna na América não é a extrema liberdade reinante; é o pouco de garantia aí encontrado contra a tirania”.
Uma preocupação inexistente nos países em que a sociedade, governada por demagogos e populistas, se comporta de maneira servil ou apática.
20 de abril de 2012
Publicado no site da revista Sibila.
Rodrigo Gurgel é escritor, editor e crítico literário.
As notas de Tocqueville estariam fadadas ao esquecimento se não tivessem produzido A democracia na América.
Alexis Charles Henri Clérel de Tocqueville pertence ao grupo de talentosos historiadores franceses – formado por François Guizot, Jacques Nicolas Augustin Thierry e Jules Michelet – que alcançou a maturidade intelectual no período da Revolução de 1830.
O reinado que então teve início, depois de os liberais forçarem Carlos X a abdicar, durou até 1848, mas foi caracterizado por medidas contrárias às ideias que o novo rei, Luís Filipe de Orléans, ex-membro do Clube dos Jacobinos, dizia defender. Não bastou trocar, demagogicamente, a bandeira branca dos Bourbons pela tricolor da Revolução de 1789: sem conseguir a união de legitimistas, bonapartistas e liberais, Luís Felipe logo restringiria a liberdade para silenciar a oposição.
Tocqueville, cuja família apoiava os Bourbons, aderiu ao novo governo “sem hesitação, mas sem ímpeto”, segundo seu amigo, Gustave de Beaumont, pois, apesar de jovem – tinha 25 anos –, já possuía “a faculdade [...] de ver mais rápido e mais longe do que os outros” e a sábia capacidade de manter distância dos acontecimentos políticos: “Essa exaltação moral que excita um grande movimento popular, o entusiasmo, o júbilo, as vivas esperanças que saúdam de hábito um novo regime, nada disso o tocava”.
Magistrado desde 1827, Tocqueville parte, em 1831, com Gustave de Beaumont, para uma viagem oficial, a fim de estudar o sistema penitenciário dos EUA, desculpa utilizada para alcançar seu verdadeiro propósito: conhecer as experiências democráticas de um país nascente, afastar-se do direito, que o entediava, e dedicar-se ao estudo da política, sua paixão.
Sabemos desses detalhes graças ao próprio Beaumont, autor da introdução do Viagem aos Estados Unidos, livrinho que reúne as anotações de Tocqueville, alguns lampejos, trechos de entrevistas – com políticos, diplomatas, juristas, religiosos, militares etc. – e parte diminuta das análises que serviriam à elaboração de um dos maiores clássicos da ciência política: A democracia na América.
É também graças a Beaumont que conhecemos os lances heroicos da viagem, quando, nas proximidades de Pittsburg, os dois exploradores, que pretendiam “descer o Ohio e o Mississipi num barco a vapor até Nova Orleans”, são pegos desprevenidos pelo inverno, adiantado cerca de um mês.
Sob o frio rigoroso e crescente, a dupla sofre grandes dificuldades – e Tocqueville chega a cair enfermo. O jovem, contudo, supera seus próprios limites e mostra ter uma personalidade obstinada, movida por “uma febre”, afirma seu amigo, que o “devorava sem trégua” – e o fazia tomar notas, de maneira incansável, em pequenas cadernetas, a fim de preservar suas primeiras impressões.
Entre a decepção e a euforia
Na introdução ao seu A democracia na América, Tocqueville afirma: “Na América, quis mais do que a América; busquei uma imagem da própria democracia, de suas tendências, de seu caráter, de seus preconceitos, de suas paixões; quis conhecê-la, nem que fosse para saber ao menos o que devemos dela esperar ou temer”. E parece ter alcançado seu objetivo, pois escreve, em sua anotações, o melhor elogio que a nação ainda jovem, ávida por superar a Europa, recebeu de um observador imparcial:
[...] O mesmo homem pôde dar seu nome a um deserto que ninguém havia atravessado antes dele; ele pôde ver tombar a primeira árvore da floresta, construir no meio da solidão a casa do agricultor, em torno da qual se formou de início um povoado, e hoje transformado em vasta cidade. No curto intervalo que separa a morte do nascimento, assistiu a todas essas mudanças. Em sua juventude, habitou entre nações que já não existem; em sua vida, rios mudaram ou diminuíram seu curso; o próprio clima é outro em relação ao que viu outrora, e tudo isso não é em seu pensamento senão um primeiro passo numa carreira sem limites. Por mais poderoso e impetuoso que seja aqui o curso do tempo, a imaginação precede-o: o quadro não é assaz grande para ela; ela já se apodera de um novo universo. É um movimento intelectual que não pode se comparar àquele que fez nascer a descoberta do Novo Mundo há três séculos; e, com efeito, pode-se dizer que a América é descoberta uma segunda vez. E que não se creia que tais pensamentos só germinam na cabeça do filósofo; eles estão tão presentes no artesão quanto no especulador; no camponês bem como habitante das cidades. Incorporam-se em todos os objetos; fazem parte de todas as sensações; são palpáveis, visíveis, sentidos de certa forma. Nascido sob um outro céu, introduzido no meio de um quadro sempre movente, ele próprio movido pela torrente irresistível que arrasta tudo o que o avizinha, o americano não tem tempo para apegar-se a nada; ele só se acostuma à mudança, e acaba por vê-la como o estado natural do homem; sente a necessidade dela; bem mais, ama-a: pois a instabilidade, em vez de produzir-se para ele por desastres, parece engendrar em torno dele só prodígios...
Mas suas primeiras notas, em 29 de maio de 1831, ainda em Nova York, deixam transparecer certa decepção:
“Até agora, tudo o que vejo não me entusiasma em absoluto, porque estou mais agradecido à natureza das coisas do que à vontade do homem”. E completa: “Aqui a liberdade humana age em toda a plenitude de seu poder [...]; mas até o momento, esta febre parece só aumentar as forças sem alterar a razão”. Tudo vai bem, o país se desenvolve, mas “a agitação política parece-me muito acessória”. Ainda assim, percebe aquele que talvez tenha sido o principal motivo para o desenvolvimento dos EUA: “O fato é que essa sociedade caminha sozinha; e tem boa chance de não encontrar qualquer obstáculo: o governo parece-me aqui na infância da arte”.
Característica, infelizmente, jamais encontrada no Brasil.
Nosso viajante é absorvido por um povo “devorado pelo desejo de fazer fortuna”, mas não deixa de observar, com indignação, os índios que mendigam, derrotados:
“[...] Belos homens; eles dançam diante de nós a war dance (dança de guerra), para ganhar um pouco de dinheiro; espetáculo horrível! Nós lhes damos um shilling...”. O surgimento de uma cultura não significa, contudo, a necessária destruição de outra. No dia seguinte ao desse espetáculo humilhante, 6 de agosto de 1831, ele nos descreve o encontro solene com um personagem que não se entregou à degradação: “Pequena aldeia indígena. Vestimenta do chefe: calças vermelhas, um cobertor; cabelos enrolados para cima da cabeça com duas penas enfiadas. Pergunto o que são essas penas: responde-me com um sorriso de orgulho que matou dois sioux [...]. Peço-lhe uma dessas penas dizendo-lhe que eu a levarei ao país dos grandes guerreiros, e que ela será admirada. Ele a retira de seus cabelos e entrega-me, em seguida, estende sua mão e cerra a minha”.
Apesar do estilo telegráfico, compreensível no caso de alguém que viaja submetido à premência de tudo anotar, Tocqueville consegue ser lírico:
“Ao pôr do sol, entramos num canal muito estreito. Vista admirável; instante delicioso. As águas do rio imóveis e transparentes; uma floresta extraordinária que se reflete nas águas. Ao longe, montanhas azuis e iluminadas pelos últimos raios do sol. Fogo dos indígenas que brilha por entre as árvores. Nosso barco avança majestosamente em meio a essa solidão, ao rumor dos cantos guerreiros que o eco dos bosques propaga de todos os lados”. Dias depois, num vilarejo iroquês, age como um explorador que é, ao mesmo tempo, um menino: “Vou caçar. Rio atravessado a nado. Ervas no fundo do rio. Perco-me por um momento na floresta. Retorno ao mesmo lugar sem perceber”.
No Canadá, em Montreal, reclama da dominação inglesa e augura um tempo em que os franceses tenham “sozinhos um belo império no Novo Mundo”. Ao visitar Quebec, defende a sublevação dos franceses contra os ingleses – “Aquele que deve agitar a população francesa e levantá-la contra os ingleses ainda não nasceu” – e constata, movido pela repulsa à aparente submissão dos seus conterrâneos: “Nunca estive mais convicto [...] que a maior e mais irremediável infelicidade para um povo é ser conquistado”.
Em Boston, constata a riqueza da cidade, faz elogios à vida cultural (em 1831, os bostonianos dispunham de, ao menos, quatro bibliotecas) e escreve, a 22 de setembro, uma inevitável comparação:
...O que mais nos incomoda na Europa são os homens que, nascidos numa condição social inferior, receberam uma educação que lhes dá vontade de sair dela sem fornecer-lhes os meios para isso.
Na América, esse inconveniente da educação é quase insensível. A instrução fornece sempre os meios naturais para enriquecer-se, e não cria qualquer mal-estar social.
Como defender a democracia?
Na cidade de Baltimore, encontra-se com Charles Carroll, último sobrevivente dos signatários da Declaração da Independência, que lhe diz, sem meias palavras: “A mere democracy is but a mob” (“Uma democracia pura não é outra coisa senão um populacho”). Se, a princípio, Tocqueville mantém-se dúbio diante dessa afirmativa, ela certamente o instigou, contribuindo para as geniais conclusões de A democracia na América, entre elas, a de que governos centralizadores e democracias radicais, que oprimem as minorias discordantes, causam o mesmo tipo de mal:
Não há [...] na terra autoridade tão respeitável por si mesma nem revestida de um direito tão sagrado que eu desejasse deixar agir sem controle e dominar sem obstáculos. Quando, portanto, vejo dar o direito e a faculdade de fazer tudo a uma potência qualquer, quer se chame povo ou rei, democracia ou aristocracia, quer se exerça numa monarquia, quer numa república, então digo: aí está o germe da tirania, e procuro ir viver sob outras leis.
Apesar de fascinantes, por revelarem um país onde tudo podia ser experimentado, no qual a vida possui, até hoje, uma dinâmica inesgotável, as notas de Tocqueville estariam fadadas ao esquecimento se não tivessem produzido A democracia na América, principalmente os Capítulos 6 (“O despotismo nas nações democráticas”) e 7 (“De que maneira defender a liberdade ameaçada”) da Quarta Parte do Livro II, centrais em sua defesa da liberdade, primorosos ao apresentar as contradições que encontrou:
“O que mais me repugna na América não é a extrema liberdade reinante; é o pouco de garantia aí encontrado contra a tirania”.
Uma preocupação inexistente nos países em que a sociedade, governada por demagogos e populistas, se comporta de maneira servil ou apática.
20 de abril de 2012
Publicado no site da revista Sibila.
Rodrigo Gurgel é escritor, editor e crítico literário.
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