"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quinta-feira, 24 de maio de 2012

FSP MOSTRA IRÃ PARA INGLÊS VER


Se há algo que recomendo não ler no jornalismo nacional são os suplementos de turismo. Jamais vi proposta de viagem inteligente. Redatores de turismo são de modo geral venais. Não são pagos pelos próprios jornais. Mas por agências aéreas ou de viagens. Que vendem um turismo padronizado, ao gosto do turista médio, em geral inculto e endinheirado. De modo geral, esses redatores sugerem hotéis e restaurantes caros – que constam dos roteiros das empresas aéreas e agências –, o que pode atrair essa classe média emergente, que acha que caro é sinônimo de excelente. Ora, não é bem assim. Pode-se viajar e comer relativamente barato e muito bem. Isto, os cadernos de turismo não mostram.

Se estes suplementos constituem geralmente jornalismo venal – uma gentileza do jornalista a uma mordomia recebida - hoje a Folha de São Paulo exagerou em seu caderno sobre o Irã. No caso, o jornalista não está viajando por conta de empresas turísticas ou aéreas, mas é o correspondente do jornal em Teerã. Seu relato é idílico. Como em toda ditadura, o prato forte é o passado. Quanto mais remoto, melhor. A reportagem nos fala de Meshed, no extremo oeste, onde está enterrado o santo xiita imã Reza. De Shiraz, terra do lendário poeta Hafez, que também abriga refinados jardins; de Persépolis, tesouro arqueológico do império aquemênida; de Yazd, epicentro da multimilenar fé zoroástrica; e de Isfahan, jóia da arquitetura e da engenharia islâmicas.

O jornalista nos fala dos encantos destas cidades, e até aí nada demais, todas as cidades milenares têm seus encantos peculiares. Um nota da redação do jornal alerta o turista brasileiro. O Brasil aconselha entrar no Irã já com visto, que pode ser obtido pela embaixada do país em Brasília. Quem viajar sem o documento pode pedir um visto trânsito de sete dias, não renovável, no destino. A prática, porém, é desencorajada pela representação brasileira em Teerã. Além disso, o Irã não reconhece o Estado de Israel e não permite a entrada de quem tem carimbo do país no passaporte.

Advertência oportuna. Mas a Folha parece esquecer que turista é tanto homem como mulher. E se a condição da mulher no Irã – como em praticamente todos os países muçulmanos – está abaixo do rabo do camelo, a estrangeira não fica melhor posicionada. Para começar, é preciso munir-se de um véu para visitar o país dos aiatolás. E de um manto. Mal o avião toca o solo em Teerã, uma aeromoça adverte: "Todas as mulheres devem cobrir a cabeça com um véu e vestir um manto antes de deixar a aeronave".

O véu não deve necessariamente cobrir o rosto, mas nenhuma franja de cabelo deve ficar de fora. O manto serve para cobrir essas características femininas que têm um apelo perverso, as curvas. Saia curta ou decotes, nem pensar. A rigor, não há lei alguma que obrigue uma estrangeira ao uso do véu. Mas ai da turista que não usá-lo. Está exposta a cusparadas por onde andar.

Mais ainda: mulher não pode andar sozinha na rua. Deve estar acompanhada por outra. Ou por um macho. E atenção: o macho tem de ser parente. Pai, irmão ou filho, mesmo que pequeno. Detalhe: homens e mulheres não podem se olhar nos olhos. Nem podem apertar a mão um do outro. Qualquer transgressão a estas regras lhe significarão dissabores com a polícia moral.

Um homem e uma mulher solteiros não podem ficar sozinhos sob o mesmo teto. Consta que Oriana Fallaci teve de casar-se com seu guia enquanto esperava uma entrevista com o aiatolá Khomeiny. A escritora não confirma o fato, mas em uma de suas entrevistas deixou a hipótese no ar. O que não deve ter sido um problema para a italiana. O Irã admite o chamado sigheh, o matrimônio temporário que pode durar alguns minutos ou 99 anos. O casamento é feito mediante a recitação de um versículo do Alcorão. O contrato oral não precisa ser registrado, e o versículo pode ser lido por qualquer um.

A prática tem seus convenientes. Num passe de mágica,a prostituição deixa de existir. O que há são relações normais entre duas pessoas casadas. Mas falava de turistas. No feminino. De modo geral, um homem não se sentirá desconfortável no Irã. Mas cuidado. Se você for homossexual e quiser praticar o esporte em terras muçulmanas, arrisca a pena de morte. Outro detalhe: álcool, nem em sonhos. Alá não gosta.

Não se pede a um suplemento de turismo um estudo de sociologia sobre a condição feminina em um país. Ocorre que estas restrições afetam as turistas e, assim sendo, deveriam constar de uma reportagem cujo objetivo é incitar a viagens. Estes dados são vitais para a decisão de viajar ou não viajar.

A omissão pode ser do correspondente. Ou mais provavelmente do editor. Os suplementos de turismo nacionais tendem a induzir o leitor a viajar, sem alertá-lo para eventuais dissabores que o esperam na viagem.

Seja como for, a Folha está enganando seus leitores.


24 de maio de 2012
janer cristaldo

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