Artigos - Cultura
HOUVE UM TEMPO, há não muito tempo, em que um garotinho negro marotamente fumando (comendo) um cigarro (confeito) de chocolate ao leite não passava mesmo disso: um garotinho negro marotamente fumando um cigarro de chocolate ao leite. Acreditem: eu mesmo fumei o chocolate. Hoje, não mais.
Hoje, o garotinho negro marotamente fumando um cigarro de chocolate ao leite significa: a sórdida propaganda capitalista de um menino afrodescendente em situação de risco a imitar, inocentemente, o não me
nos sórdido hábito capitalista de inalar duas mil substâncias tóxicas que o vão, curto prazo, levar inevitavelmente à impotência, ao câncer e à morte. Pior: a um quadro televisivo com a gárgula vestida de branco que atende pelo nome de Drauzio Varella.
Estatísticas provam. Estatísticos – dedo em riste! – asseveram: todos os fumantes morrerão. Incrível, nunca havia pensado nisso. Mas nunca havia pensado também noutra coisa.
Nunca havia pensado no quanto, de repente, governos de todo o mundo, governantes de todos os países, burocratas, legisladores, apresentadores de televisão, esportistas, os chamados intelectuais públicos (nojo da expressão), profissionais da medicina – e, claro, o interminável Stephen Hawking, que sempre está aí pronto para achar qualquer coisa e dizer merda respectiva – resolveram cuidar da minha saúde de forma tão, como direi, paternal. Eles me proíbem aquilo que nem meus pais pensaram proibir. Eles me proíbem aquilo que nem mesmo aquele severíssimo apóstolo ousou proibir: “Experimentai tudo; ficai com o que é bom”.
São Paulo que me perdoe, mas não posso mais experimentar certas coisas. Eu, um não-fumante resignado, já estou terminantemente proibido de sequer pensar em desenvolver o hábito. Eu já não posso mais morrer como bem queira.
Tenho o estado para cuidar da minha saúde e me proibir o cigarro e – em breve, aguardem – os acúcares e as gorduras. Mas a nicotina, os acúcares e as gorduras são apenas os objetos visíveis de uma proibição muitíssimo mais abrangente, sutil e diabolicamente perigosa: eles, nossos benfeitores, nos querem proibir a linguagem.
Eles, zelosos, nos querem proteger de imagens, propagandas e expressões que nos inoculem vícios e nos levem à degradação. Ou à liberdade.
A imagem de um garoto fingindo fumar o que – todos sabiam, inclusive os garotos – não passava de um confeito de chocolate vale por toda uma declaração de princípios e representa uma época, ou o fim de uma época, em que armas de brinquedo e cigarros de chocolate não eram outra coisa senão brinquedo e chocolate.
Eu, quando criança, confesso: fumei chocolates e cometi genocídios com brinquedos. Eu sabia que adultos fumavam cigarros de verdade e homens carregavam armas de verdade.
E, curiosamente, era muito claro: adultos fumavam porque, sendo adultos, podiam fumar, fizesse mal ou não; homens carregavam armas por duas razões muito evidentes: ou eram bandidos e queriam ferir os outros, ou eram policiais e deviam nos proteger dos bandidos. Por mais simplória que fosse a solução, me parecia muito bem e os valores estavam claros pra mim e para os outros garotos que eu conhecia, negrinhos ou não (alto lá: afrodescendentinhos ou não!). Engano meu.
23 de maio de 2012
Escrito por Gustavo Nogy
HOUVE UM TEMPO, há não muito tempo, em que um garotinho negro marotamente fumando (comendo) um cigarro (confeito) de chocolate ao leite não passava mesmo disso: um garotinho negro marotamente fumando um cigarro de chocolate ao leite. Acreditem: eu mesmo fumei o chocolate. Hoje, não mais.
Hoje, o garotinho negro marotamente fumando um cigarro de chocolate ao leite significa: a sórdida propaganda capitalista de um menino afrodescendente em situação de risco a imitar, inocentemente, o não me
nos sórdido hábito capitalista de inalar duas mil substâncias tóxicas que o vão, curto prazo, levar inevitavelmente à impotência, ao câncer e à morte. Pior: a um quadro televisivo com a gárgula vestida de branco que atende pelo nome de Drauzio Varella.
Estatísticas provam. Estatísticos – dedo em riste! – asseveram: todos os fumantes morrerão. Incrível, nunca havia pensado nisso. Mas nunca havia pensado também noutra coisa.
Nunca havia pensado no quanto, de repente, governos de todo o mundo, governantes de todos os países, burocratas, legisladores, apresentadores de televisão, esportistas, os chamados intelectuais públicos (nojo da expressão), profissionais da medicina – e, claro, o interminável Stephen Hawking, que sempre está aí pronto para achar qualquer coisa e dizer merda respectiva – resolveram cuidar da minha saúde de forma tão, como direi, paternal. Eles me proíbem aquilo que nem meus pais pensaram proibir. Eles me proíbem aquilo que nem mesmo aquele severíssimo apóstolo ousou proibir: “Experimentai tudo; ficai com o que é bom”.
São Paulo que me perdoe, mas não posso mais experimentar certas coisas. Eu, um não-fumante resignado, já estou terminantemente proibido de sequer pensar em desenvolver o hábito. Eu já não posso mais morrer como bem queira.
Tenho o estado para cuidar da minha saúde e me proibir o cigarro e – em breve, aguardem – os acúcares e as gorduras. Mas a nicotina, os acúcares e as gorduras são apenas os objetos visíveis de uma proibição muitíssimo mais abrangente, sutil e diabolicamente perigosa: eles, nossos benfeitores, nos querem proibir a linguagem.
Eles, zelosos, nos querem proteger de imagens, propagandas e expressões que nos inoculem vícios e nos levem à degradação. Ou à liberdade.
A imagem de um garoto fingindo fumar o que – todos sabiam, inclusive os garotos – não passava de um confeito de chocolate vale por toda uma declaração de princípios e representa uma época, ou o fim de uma época, em que armas de brinquedo e cigarros de chocolate não eram outra coisa senão brinquedo e chocolate.
Eu, quando criança, confesso: fumei chocolates e cometi genocídios com brinquedos. Eu sabia que adultos fumavam cigarros de verdade e homens carregavam armas de verdade.
E, curiosamente, era muito claro: adultos fumavam porque, sendo adultos, podiam fumar, fizesse mal ou não; homens carregavam armas por duas razões muito evidentes: ou eram bandidos e queriam ferir os outros, ou eram policiais e deviam nos proteger dos bandidos. Por mais simplória que fosse a solução, me parecia muito bem e os valores estavam claros pra mim e para os outros garotos que eu conhecia, negrinhos ou não (alto lá: afrodescendentinhos ou não!). Engano meu.
23 de maio de 2012
Escrito por Gustavo Nogy
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