O Brasil evolui pelo que perde e não pelo que ganha. Sempre houve no País uma desmontagem contínua de ilusões históricas. Este é nosso torto processo: com as ilusões perdidas, com a história em marcha à ré, estranhamente, andamos para a frente. O Brasil se descobre por subtração, não por soma. Chegaremos a uma vida social mais civilizada quando as ilusões chegarem ao ponto zero.
Por isso, acho muito boas as decepções recentes. Elas nos fazem avançar mesmo de lado, como siris-do-mangue. Por decepções, fomos aprendendo, ou melhor, desaprendendo.
Nos anos 60, “desaprendemos” a fé numa revolução mágica do ‘povo’, com a súbita irrupção dos militares. Nos anos 70, descremos do voluntarismo místico da contracultura e da guerrilha suicida.
Nos 80, com as dificuldades da restauração democrática, aprendemos com o tumor na barriga do Tancredo, com o homem da ditadura Sarney assumindo o Poder (sempre esse homem fatal…) e descobrimos que a democracia era “de boca” e ainda não estava entranhada em nossas instituições.
Nos anos 90, tivemos a preciosíssima desilusão com o Collor, aprendemos muito com seu fracasso. O impeachment foi um ponto luminoso em nossa formação e nos trouxe a fome pela organização de uma república democrática. FHC foi um parêntesis em nossa tradição presidencial, mas ele e nós nos desiludimos porque achávamos que a racionalidade seria bem recebida. Não foi. FHC só foi eleito pelo Plano Real; depois, a população não entendeu mais nada nem ele explicou. As importantes realizações de seu governo foram incompreensíveis para as massas: uma responsabilização maior da opinião pública, o fim do “finalismo”, a recusa ao salvacionismo, a responsabilidade fiscal, as privatizações, as tentativas de reforma institucional e a sensatez macroeconômica.
De 2002 em diante, a importância da administração e das reformas internas (“neoliberais”, claro) foi substituída pela truculência dos pelegos chegados ao poder. A verdade é que os petistas nunca acreditaram na “democracia burguesa”; como disse um intelectual da USP – “democracia é papo para enrolar o povo”.
Não entenderam com suas doenças infantis que a democracia não é um meio, mas um fim em si mesmo; ou melhor, até entendem, mas não a querem. Nada disso; tudo que construíram, com sua invejável fé militante, foi um novo patrimonialismo de Estado, com a desculpa de que “em vez de burgueses mamando na viúva, nós, do povo, nela mamaremos”.
E tudo isso em nome do raciocínio deslumbrado de Lula, lutando por si mesmo: “Eu sou do povo; logo, luto pelo povo”. E assim, com teses de 100 anos atrás e com o narcisismo do Lula, voltou o formato do Brasil que o Plano Real e FHC tentaram interromper. Com suas alianças com a direita feudal, Lula revigorou o pior problema do País: o patrimonialismo endêmico.
Ou seja, nem a social-democracia de colarinho-branco nem a de macacão rolaram, porque o Brasil profundo resiste às ideias claras, à racionalidade, a qualquer vontade política generosa. Em nossa história, tudo vai devagar e só algumas migalhas frutificam. Nos últimos anos, tudo que aconteceu é muito mais o produto de influência econômica externa e da espantosa resistência colonial do Atraso, do que de nossos desejos. Somos filhos bastardos de um progresso que não planejamos.
A única revolução que se faria no Brasil seria o enxugamento de um Estado que come a nação, com gastos crescentes, inchado de privilégios e clientelismo, um Estado que não tem como investir e que leva a presidente a medidas paliativas. A única revolução seria administrativa, apontada na educação em massa, nas reformas institucionais, mas altos e baixos cleros não permitem, mesmo agora que a bolha do Brasil Bric ameaça explodir.
Estamos diante de um momento histórico gravíssimo, com os dois tumores gêmeos de nossa doença: a direita do atraso e a esquerda do atraso. Como escreveu Bobbio, se há uma coisa que une esquerda e direita é o ódio à democracia.
Esta crise é tão sintomática, tão exemplar para a mudança do País, que não pode ser desperdiçada pelos pensadores livres. É uma tomografia que mostra as glândulas, as secreções do corpo brasileiro – um diagnóstico completo. Este espasmo de verdade, esta brutal explosão de nossas vísceras talvez seja perdida, porque as manobras do atraso de direita e do atraso de esquerda trabalham unidos para que a mentira vença.
Agora estamos diante da cachoeira de descobertas sobre a conjunção carnal entre a coisa pública e privada. E vemos que só os verdadeiros corruptos conhecem profundamente a verdade nacional. Tudo que surgiu sobre nossa vida política nos foi revelado por dois malandros: o mensalão foi um presente de Roberto Jefferson à nossa opinião pública e a CPI veio pelos malfeitos de Cachoeira e Demóstenes. E tentando desmantelar as verdades descobertas está o ex-presidente, no exercício de seu cinismo egoísta e ambicioso, pensando apenas em sua imagem no futuro.
Além disso, vivemos em suspense diante de nossa fragilidade jurídica: um ministro do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, segura o processo do mensalão sem prazo de entrega. Por teimosia ou caturrice ou sabemos lá por quê, ele se arrisca a ser o responsável pela desmoralização do STF.
Mas, assim mesmo, com o engarrafamento dos escândalos, tem havido um avanço em nossa consciência crítica. Estamos bem menos “alienados”. E, por mais que se destruam as instituições, as conquistas da democracia não vão sumir, por conta da maior complexidade da economia e da política, que a abertura permitiu. Estamos mais desiludidos, porém mais sábios.
Que falta desaprender agora, para chegarmos ao futuro de uma desilusão?
Arnaldo Jabor
06 de junho de 2012
Estadão
Por isso, acho muito boas as decepções recentes. Elas nos fazem avançar mesmo de lado, como siris-do-mangue. Por decepções, fomos aprendendo, ou melhor, desaprendendo.
Nos anos 60, “desaprendemos” a fé numa revolução mágica do ‘povo’, com a súbita irrupção dos militares. Nos anos 70, descremos do voluntarismo místico da contracultura e da guerrilha suicida.
Nos 80, com as dificuldades da restauração democrática, aprendemos com o tumor na barriga do Tancredo, com o homem da ditadura Sarney assumindo o Poder (sempre esse homem fatal…) e descobrimos que a democracia era “de boca” e ainda não estava entranhada em nossas instituições.
Nos anos 90, tivemos a preciosíssima desilusão com o Collor, aprendemos muito com seu fracasso. O impeachment foi um ponto luminoso em nossa formação e nos trouxe a fome pela organização de uma república democrática. FHC foi um parêntesis em nossa tradição presidencial, mas ele e nós nos desiludimos porque achávamos que a racionalidade seria bem recebida. Não foi. FHC só foi eleito pelo Plano Real; depois, a população não entendeu mais nada nem ele explicou. As importantes realizações de seu governo foram incompreensíveis para as massas: uma responsabilização maior da opinião pública, o fim do “finalismo”, a recusa ao salvacionismo, a responsabilidade fiscal, as privatizações, as tentativas de reforma institucional e a sensatez macroeconômica.
De 2002 em diante, a importância da administração e das reformas internas (“neoliberais”, claro) foi substituída pela truculência dos pelegos chegados ao poder. A verdade é que os petistas nunca acreditaram na “democracia burguesa”; como disse um intelectual da USP – “democracia é papo para enrolar o povo”.
Não entenderam com suas doenças infantis que a democracia não é um meio, mas um fim em si mesmo; ou melhor, até entendem, mas não a querem. Nada disso; tudo que construíram, com sua invejável fé militante, foi um novo patrimonialismo de Estado, com a desculpa de que “em vez de burgueses mamando na viúva, nós, do povo, nela mamaremos”.
E tudo isso em nome do raciocínio deslumbrado de Lula, lutando por si mesmo: “Eu sou do povo; logo, luto pelo povo”. E assim, com teses de 100 anos atrás e com o narcisismo do Lula, voltou o formato do Brasil que o Plano Real e FHC tentaram interromper. Com suas alianças com a direita feudal, Lula revigorou o pior problema do País: o patrimonialismo endêmico.
Ou seja, nem a social-democracia de colarinho-branco nem a de macacão rolaram, porque o Brasil profundo resiste às ideias claras, à racionalidade, a qualquer vontade política generosa. Em nossa história, tudo vai devagar e só algumas migalhas frutificam. Nos últimos anos, tudo que aconteceu é muito mais o produto de influência econômica externa e da espantosa resistência colonial do Atraso, do que de nossos desejos. Somos filhos bastardos de um progresso que não planejamos.
A única revolução que se faria no Brasil seria o enxugamento de um Estado que come a nação, com gastos crescentes, inchado de privilégios e clientelismo, um Estado que não tem como investir e que leva a presidente a medidas paliativas. A única revolução seria administrativa, apontada na educação em massa, nas reformas institucionais, mas altos e baixos cleros não permitem, mesmo agora que a bolha do Brasil Bric ameaça explodir.
Estamos diante de um momento histórico gravíssimo, com os dois tumores gêmeos de nossa doença: a direita do atraso e a esquerda do atraso. Como escreveu Bobbio, se há uma coisa que une esquerda e direita é o ódio à democracia.
Esta crise é tão sintomática, tão exemplar para a mudança do País, que não pode ser desperdiçada pelos pensadores livres. É uma tomografia que mostra as glândulas, as secreções do corpo brasileiro – um diagnóstico completo. Este espasmo de verdade, esta brutal explosão de nossas vísceras talvez seja perdida, porque as manobras do atraso de direita e do atraso de esquerda trabalham unidos para que a mentira vença.
Agora estamos diante da cachoeira de descobertas sobre a conjunção carnal entre a coisa pública e privada. E vemos que só os verdadeiros corruptos conhecem profundamente a verdade nacional. Tudo que surgiu sobre nossa vida política nos foi revelado por dois malandros: o mensalão foi um presente de Roberto Jefferson à nossa opinião pública e a CPI veio pelos malfeitos de Cachoeira e Demóstenes. E tentando desmantelar as verdades descobertas está o ex-presidente, no exercício de seu cinismo egoísta e ambicioso, pensando apenas em sua imagem no futuro.
Além disso, vivemos em suspense diante de nossa fragilidade jurídica: um ministro do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, segura o processo do mensalão sem prazo de entrega. Por teimosia ou caturrice ou sabemos lá por quê, ele se arrisca a ser o responsável pela desmoralização do STF.
Mas, assim mesmo, com o engarrafamento dos escândalos, tem havido um avanço em nossa consciência crítica. Estamos bem menos “alienados”. E, por mais que se destruam as instituições, as conquistas da democracia não vão sumir, por conta da maior complexidade da economia e da política, que a abertura permitiu. Estamos mais desiludidos, porém mais sábios.
Que falta desaprender agora, para chegarmos ao futuro de uma desilusão?
Arnaldo Jabor
06 de junho de 2012
Estadão
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