“Somos homens e não autômatos, comemos carne e não conceitos, bebemos vinho e não silogismos, fazemos o amor com indivíduos doutro sexo e não com a dialética”, escreveu Alberto Moravia, um dos bons escritores esquecidos do século passado. Rebelde, o italiano não via com bons olhos a família, que definia como uma fortaleza de egoísmo, onde os pais são os generais e os filhos os soldados.
Dito isto, é difícil conceber que surja algo inteligente no cérebro de psicanalistas, estes senhores que reduzem a complexos conceitos os mais singelos sentimentos humanos. Leio na Zero Hora reportagem sobre a amizade, segundo a qual pesquisas feitas em diferentes partes do mundo apontam que, apesar dos milhares de amigos virtuais na internet, há cada vez menos amigos do peito no mundo real.
Até aí morreu o Neves. Ainda há pouco eu escrevia sobre o empobrecimento das palavras em nossa era internética. No Facebook são definidos como amigos pessoas que jamais vimos e de cuja existência nada sabemos. Há quem se jacte de ter milhões de amigos, quando na verdade não tem um único amigo. Amigos jamais são milhões. Se tivermos dez deles, já podemos nos dar por felizes. Continua a reportagem:
“Nos Estados Unidos, por exemplo, a média de amigos íntimos por pessoa caiu de três para dois em duas décadas. Em 1985, 10% dos norte-americanos relatavam não ter ninguém com quem discutir assuntos pessoais importantes. Em 2010, o índice saltara para 25% — e outros 20% diziam ter como único confidente não um amigo, mas o cônjuge. Os brasileiros seguem a mesma tendência:
— A redução da amizade também ocorre no Brasil. Há cada vez mais dificuldade de achar amigos e compartilhar a intimidade. O afastamento decorre do ritmo acelerado da vida. As pessoas estão com muito trabalho, sem tempo para passar com os outros — afirma a professora de psicologia Luciana Karine de Souza, que tematizou a amizade em seu doutorado pela UFRGS.
O que é uma grossa bobagem. Sem falar que é muito difícil definir estatisticamente a ocorrência da amizade em um país, por mais acelerado que seja o ritmo de vida, sempre sobra tempo para a amizade. Se a quisermos cultivar, é claro. E se temos condições de cultivá-la. Em crônica passada, eu afirmava que um dos elementos constitutivos da amizade é a honestidade. Impossível ser amigo de alguém quando se é desonesto. A desonestidade limita muito mais o número de amigos que qualquer ritmo de vida.
Mas o coroamento das sandices vai ocorrer com as declarações do psicanalista Robson de Freitas Pereira – 30 anos de experiência no ofício, salienta a reportagem - segundo o qual as amizades tornaram-se tão valorizadas que são consideradas relações mais estáveis até do que os casamentos. Ninguém quer arriscar-se a perdê-las, por receio da solidão. A tendência é de se apegar, mesmo que o amigo não atenda às expectativas. — Ter um amigo se tornou tão importante que as pessoas fazem mais esforço para salvar uma amizade do que para salvar um casamento — garante Pereira.
E aqui reside o paradoxo. Pereira faz uma distinção entre amizade e casamento. Ora, se alguém não tem como amigo a pessoa com quem dorme todas as noites e divide o mesmo teto, esse alguém arrisca acordar esquartejado.
Na crônica policial, não é raro encontrar casais que viveram juntos até a velhice e, de repente, um estoura a cabeça do outro. São vidas equivocadas, que viveram o tempo todo enganando um ao outro. Anos e anos sem conhecer a pessoa que dorme ao lado. Há quem fundamente a vida conjugal no tal de amor, sentimento assassino que provoca tragédias todos os dias. Amor é doença. Amizade é lucidez. Prefiro a amizade, mesmo na relação com mulheres. Em algum momento do Quarteto da Alexandria, Lawrence Durrel dizia ser a amizade preferível ao amor porque mais duradoura. Verdade que amigos também perdemos, mas a ninguém ocorre matar alguém porque perdeu sua amizade.
A reportagem ainda cita um estudo recém-publicado na Inglaterra pela centenária Sociological Review. A partir da análise de centenas de relatos de vida, o trabalho demonstra que os amigos se transformam com insistente freqüência em uma chateação — mas mesmo assim pouca gente parece disposta a se desfazer deles. Perde-se a piada, mas não se perde o amigo.
“O trabalho saltou do mundo acadêmico para as conversas de mesa de bar por desafiar uma concepção arraigada, eivada de romantismo: a de que a amizade é sempre uma relação baseada no benefício e no prazer mútuos. Ela é isso, certamente. Mas também é a arte de engolir sapos, de levar desaforos para casa e de suportar momentos de tédio absoluto”.
É de perguntar-se com qual conceito de amizade lidam os autores do estudo. Não posso conceber amizade como a arte de engolir sapos, de levar desaforos para casa ou de suportar momentos de tédio absoluto. Se isso ocorre em suas relações, sinal que você está implorando a consideração de um chato. Sapos somos obrigados a engolir nas relações profissionais, quando a manutenção do trabalho depende da anuência a um chefe autoritário. Desaforo não é coisa que se leve para casa e se você tem momentos de tédio absoluto com um amigo, tire esta idéia da cabeça: não se trata de um amigo, mas de um chato que você, carente de relações, se sente obrigado a suportar.
Em meio a isso, a colunista de ZH Célia Ribeiro, perita em assuntos de etiqueta, dá seu pitaco:
— Amizade não é só alegria e oba-oba. É um diálogo, um jogo de parceria. Sem manter esse jogo, ela não resiste. Ser amigo é abrir parênteses dos próprios interesses e dar atenção aos interesses do amigo, mesmo que eles sejam chatos. É telefonar, apesar de não ter vontade. É comparecer à homenagem feita ao amigo e ouvir a discurseira — afirma.
De minha parte, penso que ser amigo é não comparecer à homenagem feita ao amigo e muito menos ouvir a discurseira. Se amizade é algo desconfortável, então não vale a pena ser cultivada. Às vezes amigos me convidam para eventos culturais. Minha primeira pergunta é: vai ter palestra sobre literatura? Se tiver, não vou. Não suporto ouvir alguém teorizando sobre literatura. E nossa amizade persiste.
Amizade, penso, é não ter papas na língua na hora de conversar. Se o amigo está precisando de pedagógica carraspana por seus gestos, da carraspana não deve ser poupado. Amigo é quem me alerta de meus defeitos, não quem louva minhas virtudes.
Sempre fui apaixonado por minha mulher – a que partiu – mas nossa relação logo transformou-se em amizade. Não sou autoridade para falar de casamentos, afinal só tive um, e isso depois de prometer-me durante anos que jamais casaria. Acontece. Ninguém é dono de seu destino. Até hoje procuro preservar este sentimento com as relações que um dia tive, e esta me parece ser a melhor fórmula de bem viver.
Quanto a separar casamento de amizade, isto me parece explicar porque os psicanalistas são o mais das vezes pobres diabos, em geral pulando de um divórcio para outro e sempre obcecados com a mãe. Sem saber gerir a própria vida, cobram altos preços para orientar a vida de outros.
Costumo afirmar que há embustes que só colam com pessoas cultas. É o caso do marxismo e da psicanálise. Homem inculto não cai nessas vigarices. Mas não nos enganemos. Psicanalistas não são panacas. São hábeis manipuladores da linguagem e conhecem o básico para enganar o próximo.
Panaca é quem os paga.
18 de junho de 2012
janer cristaldo
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