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Foi com uma das infindáveis tiradas geniais de Nelson Rodrigues que iniciei minha pergunta naquela noite de terça feira, 22 de maio, para o professor Roberto Fadel. Tentei resumir o meu questionamento para o palestrante do Sarau da Feira, aquecimento cultural para a XVI edição da Feira Pan-Amazônica na capital paraense:
"Como Nelson iria encarar, se vivo fosse, questões como cotas raciais, casamento gay e feminismo radical?" E completei: "Será que não existe uma certa exploração de Nelson Rodrigues por parte da esquerda cultural?"
A resposta que obtive resumiu-se a dizer que "hoje, mesmo com 100 anos, ele seria ainda mais conservador". Não há como discordar do professor Fadel nessa questão. De resto, o esforço de imaginação não me pareceu apropriado para a ocasião e ele parou por ali. Eu sei que não foi fácil responder.
Não é estranho que a esquerda cultural que domina esse país seja tão fascinada por um escritor e dramaturgo que, se vivo hoje em dia, seria uma pedra no sapato do politicamente correto?
Muitos foram tão politicamente conservadores e 'reacionários' como Nelson Rodrigues e solenemente ignorados e esquecidos pela esquerda. Assim foi e permanece em relação a Paulo Francis, Roberto Campos, Gustavo Corção, Bruno Tolentino, entre outros. Mas existe uma explicação plausível: a obra de Nelson Rodrigues é perfeitamente instrumentalizável para a causa do marxismo cultural na destruição da instituição da família e da moral cristã.
A própria definição de Nelson como 'anjo pornográfico" me parece ter sido assimilada em uma publicidade bem calculada para fazer do dramaturgo fluminense uma espécie de Foucault carioca, algo como uma Bruna Surfistinha de eras mais pudicas ou um prequel do Mr. Catra.
O professor, que não me parecia mal-intencionado, mas sim surfar na crista da onda 'revisionista' da obra de Nelson, respondeu a várias perguntas de uma platéia excitada, como: "Quantas prostitutas Nelson Rodrigues se relacionava por noite?" e outras do mesmo top.
Ao que respondia puxando sempre para o mesmo tom ao afirmar que Nelson era um escritor revolucionário a apontar a hipocrisia da família, do casamento e da educação cristã, etc. E quando um poeta local, ao qual não recordo o nome agora, indagou se a obra de Nelson ecoava algo da tragédia grega, do padecimento do herói frente às leis divinas, outra vez respondeu que os personagens rodrigueanos não eram 'guerreiros' (sic).
Em suma: a ordem da noite parecia ser pintar para uma platéia de estudantes de escola pública algo como Nelson ser em verdade um grande precursor dos bailes funks, das mulheres-frutas e do 'todo mundo é de todo mundo', esse ersatz nosso de cada dia. Até argumentos evolucionistas o professor usou para justificar a intensa vida de putaria que de alguma forma embasaria o espírito do grande dramaturgo boêmio...
Não é a primeira nem a última vez que assimilam a vida e a obra de outros para uma causa. Só no quesito 'o sexo como arma' temos o Dr. Freud redimensionado pela Escola de Frankfurt até parecer uma espécie de 'Marx da intimidade ocidental'. Até René Guenon, que estava mais preocupado com questões espirituais profundas teve sua crítica ao Ocidente assimilada na causa do marxismo cultural até se tornar uma espécie de Che Guevara hipster.
Mas para os revisionistas, talvez pouco importe a tônica maior da obra de Nelson Rodrigues, tão bem expressa na biografia escrita por Ruy Castro, como encontrada no excelente site do Grupo Tempo:
"a ficção, para ser purificadora, precisa ser atroz. O personagem é vil, para que não o sejamos. Ele realiza a miséria inconfessa de cada um de nós. A partir do momento em que Ana Karenina, ou Bovary, trai, muitas senhoras da vida real deixarão de fazê-lo. No ‘Crime e Castigo’, Raskolnikov mata uma velha e, no mesmo instante, o ódio social que fermenta em nós estará diminuído, aplacado. Ele matou por todos. E, no teatro, que é mais plástico, direto, e de um impacto tão mais puro, esse fenômeno de transferência torna-se mais válido. Para salvar a platéia, é preciso encher o palco de assassinos, de adúlteros, de insanos e, em suma, de uma rajada de monstros. São os nossos monstros, dos quais eventualmente nos libertamos, para depois recriá-los."
Ora, não se enganem. A obra de Nelson Rodrigues, que completa 100 anos de nascimento nesse ano de 2012, só tem lugar no cânone 'progressista' da esquerda por servir bem como introdução a uma aula de 'educação' sexual. Por que não se interessam pelos relatos de proximidade da morte expressos em "Lições de Abismo" de Corção; pela obra poética colossal de Murilo Mendes, um homem que foi do ateísmo ao catolicismo mais místico; ou mesmo em escrever algo sério sobre a dramaturgia do paraense Carlos Correia Santos - aliás mediador do Sarau da Feira (que acaba de encenar um monólogo que praticamente encerra em texto teatral o que seria uma mentalidade revolucionária)?
Ora, porque não 'contribuem' em nada para a 'quebra de paradigmas sociais' no contexto de 'transformação social' das esquerdas.O que não deixa de ser uma relação conflituosa, cheia de ambiguidades - a elite prafentex não deixa de padecer de fascínio perante ao monstro reacionário que consegue ser mais safadinho do que uma Maria do Rosário. Daí é preciso 'democratizá-lo'. Ou seja, mistificá-lo até que o verdadeiro Nelson desapareça no entulho de estudos e montagens como apenas um velho machista. Machista - que inclusive era uma das definições, ao meu ver, simplistas, do professor palestrante.
Nelson mostrava 'A vida como ela é', doa a quem doer. O sexo, a hipocrisia das famílias, dos casais e da sociedade carioca eram instrumentos para a pena de Nelson expressar a 'a miséria inconfessa de cada um de nós' e não um fim em si mesmo. Por isso, o 'anjo pornográfico' era conservador de direita.
E certamente abominaria, tal como abominou também Pier Paolo Pasolini, essa banalização do pornográfico. Até os filmes pornôs antigos valorizavam a putaria em contextos de traição e de controvérsia amorosa. Hoje os atores só passam a mão na bunda da moça e já vão logo aos finalmentes. É isso o que querem fazer com Nelson Rodrigues.
Pelo visto, no que depender da hegemonia educacional e cultural da esquerda que instrumentaliza os debates públicos, toda nudez (de sinceridade) ainda será - e muito! - castigada.
P.S.: Já está mais do que na hora dos conservadores, direitistas, liberais e reacionários em geral comentarem a cena cultural brasileira. Ocupar os espaços do debate sobre as artes em geral. Falta crítica teatral, cinematográfica, de artes plásticas, musical do ponto de vista do legado intelectual do conservadorismo, por exemplo. E ainda tem bons artistas por aí que merecem ser resenhados. É preciso paciência e o exercício da sensibilidade.
01 de junho de 2012
Luiz Fernando Vaz
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