"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quinta-feira, 19 de julho de 2012

A ÚLTIMA VIAGEM DE JOÃO GOULART

Saio do hotel em Montevidéu, entro na primeira livraria, vejo na vitrine: “João Goulart – Recuerdos En Su Exílio Uruguaio” (Edicions de la Plaza, janeiro de 2003), de Jorge Otero, veterano jornalista daqui, ex-diretor do “El Dia”, durante muitos anos o mais importantes do Uruguai. Entre tantas, conta e inédita e dramática última viagem, de Jango, de Paris a Buenos Aires.
No dia 12 de outubro de 76, João Goulart e Jorge Otero, que se haviam reencontrado em Paris, embarcaram nas Aerolineas Argentinas, direto para Buenos Aires. Jango, proibido de passar pelo Brasil e sem passaporte brasileiro, que a ditadura lhe tomou, viajava com um passaporte do Paraguai.
Hospedado no hotel Claridge (Champs Elysées, 72), Jango havia passado algum tempo na França (Paris e Lyon), examinando o coração, quando recebeu dos médicos remédios e uma dura dieta, que cumpria mal.
Estava muito assustado com as notícias macabras da “Operação Condor” no Cone Sul (as ditaduras chilena, brasileira, argentina e uruguaia haviam planejado matar seus principais adversários) e sobretudo com o assassinato do general boliviano Juan José Torres, em Buenos Aires, e a misteriosa morte de Juscelino, dois meses antes (22 de agosto de 76).
Eram coincidênciais demais. Decidiu arrumar seus negócios no Uruguai e Argentina e voltar logo para morar seguro em Paris e também ficar mais perto dos filhos João Vicente e Denise, que estudavam em Londres.

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UM SUSTO NO CÉU

De repente, no silêncio da noite, como na canção de Peninha por Caetano, voando sobre o Atlântico, Jango acordou com a voz do comandante:
- “Atenção, por favor. Os fortes ventos que estamos enfrentando nos obrigam a fazer uma escala técnica no Recife, para recarregar o combustível. A demora no aeroporto será de aproximadamente 45 minutos. Obrigado”.
Jango percebe o perigo, diz a Jorge Otero:
- “Estou proibido de entrar em território brasileiro. Comprei esta passagem com o compromisso de não fazer uma só escala. Então que o avião retorne à Europa.”
Vão à cabine falar com o comandante, um comissário de bordo impede, mas afinal o comandante sai e ouve Jango:
- “Sou o ex-presidente João Goulart, do Brasil. Estou como asilado na Argentina (era no Uruguai, mas estava vivendo mais na Argentina). Se o avião descer no Brasil, serei preso. O senhor deve devolver-me à Europa ou levar-me aonde quiser. A qualquer lugar, menos ao Brasil”.

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SER PRESO NO RECIFE

O comandante estava “rígido e surpreso, com burocrática energia”:
- “É impossível atendê-lo. Os ventos frontais foram muito superiores ao previstos e por isso gastamos muito mais gasolina do que habitualmente. Quando o senhor comprou a passagem, tinha que saber das escalas assinaladas para uma emergência. Recife é o aeroporto mais perto”.
- “Mas, comandante, ninguém me avisou nada. Serei retirado do avião e preso. E o senhor será o responsável”.
- “Senhor, não entrará ninguém no avião. A esta hora só está acordado o responsável pela torre de controle , que vai chamar o pessoal do abastecimento. Não há ninguém no aeroporto”.
- “Desculpe, comandante. Mas meu nome está na lista de passageiros que o senhor deverá entregar. Será só uma questão de minutos que venham do quartel e me levem preso. Contra mim, foi decretada uma ordem de prisão pela ditadura brasileira. Não posso entrar no Brasil, porque serei preso”.
- “Senhor, este é um avião argentino, sob meu comando. Não permitirei a ninguém que leve nenhum dos passageiros sob minha responsabilidade. Estamos em território argentino”.
- “Comandante, esta é uma aeronave civil. O senhor não vai poder fazer nada quando entrar aqui um punhado de soldados. A responsabilidade por isso, que certamente surpreenderá o mundo, será exclusivamente do senhor”.
- “Vou ver o que posso fazer. Mas não alimentem muitas esperanças”.
E voltou para a cabine. Eles, para os lugares deles.

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BELCHIOR MARQUES

O jornalista tentou aliviar a barra de Jango:
- “O senhor me disse em Madri que comprou a passagem em nome de Belchior Marques. Talvez não se dêem conta de quem é esse nome”.
- “É possível, Jorge. Mas o chefe da guarnição militar do Recife foi promovido por mim. Tem que saber quem é o passageiro Belchior Marques”.
O tempo vai passando e nada. De repente, de novo a voz do comandante:
- ‘‘Atenção, por favor. Aqui fala o comandante. Quero informar que os cálculos do combustível que resta e a sensível melhora nos ventos tornam desnecessário descer no Recife. O vôo será sem escalas até Buenos Aires”.
Jango afinal voltou a dormir de novo. Menos de dois meses depois (6 de dezembro de 76), em sua fazenda, em Mercedes, na Argentina, o maltratado e sofrido coração parou. Como JK e Lacerda, morreu também misteriosamente.

Sebastião Nery
19 de julho de 2012

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