O STF é a síntese da Justiça brasileira: lento, corporativo, classista, formalista e injusto
Marco Antonio Villa*
A sessão de quarta-feira do Supremo Tribunal Federal foi estarrecedora. As atenções estavam voltadas para aquela Corte, que apreciava a denúncia por parte do procurador-geral da República dos envolvidos no mensalão. Duas dúzias de advogados, regiamente pagos, estavam defendendo seus clientes.
Porém, da parte dos advogados já estamos acostumados à retórica vazia. A oratória é repetitiva, os gestos sempre iguais, como se todos (ou quase todos) tivessem passado pelo mesmo cursinho de como falar bem. Causa estranheza as homenagens que apresentam nas suas falas ora a um ministro, ora a um comentador da Constituição, ora a outro colega. Manter a atenção não é fácil, mas quem está acostumado com as sessões da TV Câmara e da TV Senado já tem know-how e consegue resistir.
O que logo chamou a atenção foi o desinteresse dos ministros - com algumas honrosas exceções - que, como diria um advogado, compõem aquela egrégia Corte. Tinha notado, em outras sessões, que durante a leitura do voto do relator ou quando um advogado defendia seu cliente, eles, os ministros, conversavam animadamente, levantavam, faziam piadas. Pareciam alunos indisciplinados, daqueles que, quando entram na sala de aula, se esparramam pelas carteiras e ouvem com displicência o professor, com a diferença que lá estavam os ministros da mais alta Corte do Brasil.
Na sessão que apreciou a denúncia do mensalão, dos dez ministros presentes, seis não paravam de acessar o computador. Dois (Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski) trocavam e-mails comentando a sessão, falando de como votar, discutindo quem deve ser o novo ministro daquela Casa, dando apelidos aos colegas (Eros Grau, o ministro, que também é poeta bissexto, é chamado de Cupido, e Ellen Gracie, a presidente, é a Professora). Conversavam com assessores (um deles estava “convencendo” um ministro a mudar seu voto!), liam notícias de jornais. Só não faziam o principal: prestar atenção em seu trabalho, que, naquele momento, era de ouvir os advogados de defesa. A ministra estava tão desatenta que nem percebeu quando foi chamada de Cármen Silva e Maria del Cármen. Outros acessavam o computador, bocejavam, demonstravam enfado, como se tudo aquilo não passasse de um rito desnecessário.
Mas o importante é que as aparências estavam mantidas. Os ministros e advogados vestiam suas togas e usavam a costumeira linguagem protocolar. O ministro Eros Grau chegou até a passar um bilhetinho para um advogado de defesa, tudo bem ao estilo do Brasil atual. A toda hora os garçons serviam os ministros e advogados; foi estabelecido um clima cordial, ameno, no plenário, salão que tem até um crucifixo próximo ao brasão da República, isto quando, desde 1890, a Igreja Católica foi separada do Estado. Ou seja, o plenário da mais alta Corte, que deve velar pela Constituição, descumpre a Carta.
Não parecia que estava sendo julgada a aceitação ou não de uma denúncia gravíssima. Quem assistiu às sessões da CPMI dos Correios sabe do que se está falando. Quem não ficou horrorizado com o depoimento de Duda Mendonça confessando espontaneamente que recebeu o pagamento dos seus préstimos no exterior? Quem não ficou horrorizado com o depoimento da diretora financeira de uma empresa de Marcos Valério relatando como entregava milhares de reais aos mensaleiros? Mas a sessão do STF seguia dando a impressão de estar julgando uma briga de vizinhos por algum motivo fortuito.
Infelizmente, aquela corte não tem bons antecedentes. A história do STF na República foi marcada pela subserviência ao Poder Executivo. Em seu governo, o marechal Floriano Peixoto (1891-1894) chegou a nomear para o Supremo um general e um médico (este, Barata Ribeiro, participou de várias sessões). O mesmo marechal Floriano ameaçou o Supremo quando este ia votar uma solicitação de habeas-corpus dizendo que, se fosse concedido, não saberia quem iria conceder o mesmo benefício aos ministros. Claro que o habeas-corpus foi negado.
Durante a República Velha (1889-1930), vários governadores foram depostos, as eleições foram maculadas pela fraude, jornais foram censurados e proibidos, opositores foram presos, torturados, mas o Supremo silenciou. Os valores republicanos e a defesa das liberdades foram ignorados. Quando o Centro Monarquista de São Paulo, em 1897, solicitou um habeas-corpus, o STF negou. Ou seja, o direito de reunião e de manifestação foi desconsiderado. O centro não tinha importância política e nem punha em risco as instituições, mas foi proibido de continuar funcionando. Estrangeiros foram expulsos - e o STF silenciou. Opositores foram desterrados para a Amazônia - e o STF também silenciou.
O advogado e brilhante jornalista Paulo Duarte, que durante décadas escreveu no Estado, no terceiro volume das suas memórias (Selva Oscura) relata um caso, que é exemplar, do uso político do STF pelo Executivo. Em 1924, ocorreu a segunda revolução tenentista. Derrotados, alguns se retiraram para o interior, até encontrar-se com os revoltosos que vinham do sul, formando a Coluna Prestes (1924-1927). Outros acabaram presos. Um deles foi o general João Francisco. Este foi detido com seu filho de 17 anos. Duarte requereu habeas-corpus para o menor, pois a prisão era flagrantemente ilegal. Na tensa discussão no plenário do Supremo, o ministro Bento de Faria, recém-nomeado pelo presidente Artur Bernardes, em resposta à afirmação de que aquele fato era contra a lei, disse: “Mas a lei já tem sido desobedecida numerosas vezes aqui, pode ser esquecida mais uma vez.” Desnecessário dizer que o STF negou o pedido.
Quando em 1935, após a rebelião comunista, foram suspensas as garantias constitucionais, o STF secundou as determinações do Executivo. Durante todo o Estado Novo (1937-1945), aquela corte fechou os olhos às violações dos direitos humanos. Nem sequer um ministro fez um protesto, ainda que mínimo. Nada. Os ministros continuaram a rotina administrativa, mantiveram o formalismo e ignoraram o Brasil real.
Nos anos de chumbo, depois do AI-5, o STF foi um fiel seguidor da ditadura, obediente aos ditames dos generais-presidentes. Quando a ditadura aposentou compulsoriamente três ministros (Víctor Nunes Leal - este foi, posteriormente, “homenageado” dando nome à biblioteca do Supremo -, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva), logo em seguida dois presidentes da Casa demitiram-se (Antônio Gonçalves de Oliveira e Antônio Carlos Lafayete de Andrada). Contudo, os outros ministros (naquele momento o Supremo tinha 16 componentes) mantiveram-se calados. Estranhamente, no site do STF, onde o ministro Celso de Mello escreveu Algumas Notas Informativas (e Curiosas) sobre o Supremo Tribunal, este fato histórico é omitido.
A redemocratização não chegou ao Supremo, infelizmente. Tudo continuou como dantes. Quem não se lembra que o STF não questionou os absurdos jurídicos do Plano Collor? Quem não se lembra que o ex-presidente Fernando Collor foi inocentado por “falta de provas”? Quem não se lembra dos escândalos de corrupção dos últimos 20 anos e da ausência de punição por parte do Supremo? Quem não se lembra dos habeas-corpus concedidos aos salteadores dos cofres públicos, que, logo depois, fugiram do País?
A indicação dos ministros tem de passar pela aprovação do Senado. Porém, excetuando alguns nomes que foram rejeitados no governo Floriano Peixoto, todos os outros foram aprovados. As sabatinas obrigatórias tratam de assuntos secundários e o indicado já é considerado aprovado, isto antes mesmo de ser ouvido.
O STF é a síntese da Justiça brasileira: lento, corporativo, classista, formalista e injusto. É fundamental para o futuro da democracia brasileira que o Supremo mude e passe a fazer justiça e não política, no pior sentido dessa palavra. E deixe de ser, como escreveu há tantos anos João Mangabeira, o poder que mais falhou na República.
23 de julho de 2012
* Marco Antonio Villa é historiador, professor na UFSCar e autor, entre outros livros, de Jango, um Perfil (Editora Globo)
Marco Antonio Villa*
A sessão de quarta-feira do Supremo Tribunal Federal foi estarrecedora. As atenções estavam voltadas para aquela Corte, que apreciava a denúncia por parte do procurador-geral da República dos envolvidos no mensalão. Duas dúzias de advogados, regiamente pagos, estavam defendendo seus clientes.
Porém, da parte dos advogados já estamos acostumados à retórica vazia. A oratória é repetitiva, os gestos sempre iguais, como se todos (ou quase todos) tivessem passado pelo mesmo cursinho de como falar bem. Causa estranheza as homenagens que apresentam nas suas falas ora a um ministro, ora a um comentador da Constituição, ora a outro colega. Manter a atenção não é fácil, mas quem está acostumado com as sessões da TV Câmara e da TV Senado já tem know-how e consegue resistir.
O que logo chamou a atenção foi o desinteresse dos ministros - com algumas honrosas exceções - que, como diria um advogado, compõem aquela egrégia Corte. Tinha notado, em outras sessões, que durante a leitura do voto do relator ou quando um advogado defendia seu cliente, eles, os ministros, conversavam animadamente, levantavam, faziam piadas. Pareciam alunos indisciplinados, daqueles que, quando entram na sala de aula, se esparramam pelas carteiras e ouvem com displicência o professor, com a diferença que lá estavam os ministros da mais alta Corte do Brasil.
Na sessão que apreciou a denúncia do mensalão, dos dez ministros presentes, seis não paravam de acessar o computador. Dois (Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski) trocavam e-mails comentando a sessão, falando de como votar, discutindo quem deve ser o novo ministro daquela Casa, dando apelidos aos colegas (Eros Grau, o ministro, que também é poeta bissexto, é chamado de Cupido, e Ellen Gracie, a presidente, é a Professora). Conversavam com assessores (um deles estava “convencendo” um ministro a mudar seu voto!), liam notícias de jornais. Só não faziam o principal: prestar atenção em seu trabalho, que, naquele momento, era de ouvir os advogados de defesa. A ministra estava tão desatenta que nem percebeu quando foi chamada de Cármen Silva e Maria del Cármen. Outros acessavam o computador, bocejavam, demonstravam enfado, como se tudo aquilo não passasse de um rito desnecessário.
Mas o importante é que as aparências estavam mantidas. Os ministros e advogados vestiam suas togas e usavam a costumeira linguagem protocolar. O ministro Eros Grau chegou até a passar um bilhetinho para um advogado de defesa, tudo bem ao estilo do Brasil atual. A toda hora os garçons serviam os ministros e advogados; foi estabelecido um clima cordial, ameno, no plenário, salão que tem até um crucifixo próximo ao brasão da República, isto quando, desde 1890, a Igreja Católica foi separada do Estado. Ou seja, o plenário da mais alta Corte, que deve velar pela Constituição, descumpre a Carta.
Não parecia que estava sendo julgada a aceitação ou não de uma denúncia gravíssima. Quem assistiu às sessões da CPMI dos Correios sabe do que se está falando. Quem não ficou horrorizado com o depoimento de Duda Mendonça confessando espontaneamente que recebeu o pagamento dos seus préstimos no exterior? Quem não ficou horrorizado com o depoimento da diretora financeira de uma empresa de Marcos Valério relatando como entregava milhares de reais aos mensaleiros? Mas a sessão do STF seguia dando a impressão de estar julgando uma briga de vizinhos por algum motivo fortuito.
Infelizmente, aquela corte não tem bons antecedentes. A história do STF na República foi marcada pela subserviência ao Poder Executivo. Em seu governo, o marechal Floriano Peixoto (1891-1894) chegou a nomear para o Supremo um general e um médico (este, Barata Ribeiro, participou de várias sessões). O mesmo marechal Floriano ameaçou o Supremo quando este ia votar uma solicitação de habeas-corpus dizendo que, se fosse concedido, não saberia quem iria conceder o mesmo benefício aos ministros. Claro que o habeas-corpus foi negado.
Durante a República Velha (1889-1930), vários governadores foram depostos, as eleições foram maculadas pela fraude, jornais foram censurados e proibidos, opositores foram presos, torturados, mas o Supremo silenciou. Os valores republicanos e a defesa das liberdades foram ignorados. Quando o Centro Monarquista de São Paulo, em 1897, solicitou um habeas-corpus, o STF negou. Ou seja, o direito de reunião e de manifestação foi desconsiderado. O centro não tinha importância política e nem punha em risco as instituições, mas foi proibido de continuar funcionando. Estrangeiros foram expulsos - e o STF silenciou. Opositores foram desterrados para a Amazônia - e o STF também silenciou.
O advogado e brilhante jornalista Paulo Duarte, que durante décadas escreveu no Estado, no terceiro volume das suas memórias (Selva Oscura) relata um caso, que é exemplar, do uso político do STF pelo Executivo. Em 1924, ocorreu a segunda revolução tenentista. Derrotados, alguns se retiraram para o interior, até encontrar-se com os revoltosos que vinham do sul, formando a Coluna Prestes (1924-1927). Outros acabaram presos. Um deles foi o general João Francisco. Este foi detido com seu filho de 17 anos. Duarte requereu habeas-corpus para o menor, pois a prisão era flagrantemente ilegal. Na tensa discussão no plenário do Supremo, o ministro Bento de Faria, recém-nomeado pelo presidente Artur Bernardes, em resposta à afirmação de que aquele fato era contra a lei, disse: “Mas a lei já tem sido desobedecida numerosas vezes aqui, pode ser esquecida mais uma vez.” Desnecessário dizer que o STF negou o pedido.
Quando em 1935, após a rebelião comunista, foram suspensas as garantias constitucionais, o STF secundou as determinações do Executivo. Durante todo o Estado Novo (1937-1945), aquela corte fechou os olhos às violações dos direitos humanos. Nem sequer um ministro fez um protesto, ainda que mínimo. Nada. Os ministros continuaram a rotina administrativa, mantiveram o formalismo e ignoraram o Brasil real.
Nos anos de chumbo, depois do AI-5, o STF foi um fiel seguidor da ditadura, obediente aos ditames dos generais-presidentes. Quando a ditadura aposentou compulsoriamente três ministros (Víctor Nunes Leal - este foi, posteriormente, “homenageado” dando nome à biblioteca do Supremo -, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva), logo em seguida dois presidentes da Casa demitiram-se (Antônio Gonçalves de Oliveira e Antônio Carlos Lafayete de Andrada). Contudo, os outros ministros (naquele momento o Supremo tinha 16 componentes) mantiveram-se calados. Estranhamente, no site do STF, onde o ministro Celso de Mello escreveu Algumas Notas Informativas (e Curiosas) sobre o Supremo Tribunal, este fato histórico é omitido.
A redemocratização não chegou ao Supremo, infelizmente. Tudo continuou como dantes. Quem não se lembra que o STF não questionou os absurdos jurídicos do Plano Collor? Quem não se lembra que o ex-presidente Fernando Collor foi inocentado por “falta de provas”? Quem não se lembra dos escândalos de corrupção dos últimos 20 anos e da ausência de punição por parte do Supremo? Quem não se lembra dos habeas-corpus concedidos aos salteadores dos cofres públicos, que, logo depois, fugiram do País?
A indicação dos ministros tem de passar pela aprovação do Senado. Porém, excetuando alguns nomes que foram rejeitados no governo Floriano Peixoto, todos os outros foram aprovados. As sabatinas obrigatórias tratam de assuntos secundários e o indicado já é considerado aprovado, isto antes mesmo de ser ouvido.
O STF é a síntese da Justiça brasileira: lento, corporativo, classista, formalista e injusto. É fundamental para o futuro da democracia brasileira que o Supremo mude e passe a fazer justiça e não política, no pior sentido dessa palavra. E deixe de ser, como escreveu há tantos anos João Mangabeira, o poder que mais falhou na República.
23 de julho de 2012
* Marco Antonio Villa é historiador, professor na UFSCar e autor, entre outros livros, de Jango, um Perfil (Editora Globo)
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