Segundo Simon Romero, do The New York Times, os escritores têm uma razão a mais para viver em Buenos Aires: pensões. A cidade está concedendo pensões a escritores publicados num programa que procura fortalecer a "coluna vertebral da sociedade", como os formuladores da lei descreveram seu objetivo. Desde sua aprovação recente, mais de 80 autores foram agraciados com pensões, que podem atingir quase US$ 900 mensais, suplementando a renda magra das aposentadorias.
Para começar, me parece um tanto fora de propósito definir os escritores como coluna vertebral da sociedade. Antes de escritores, um país precisa de médicos, engenheiros, comerciantes, funcionários, produtores de bens, de tecnologia, de moradias, de comida e até mesmo de lazer. Só depois, e bem depois, vem a literatura. Pode um país viver sem literatura? Poder, pode. Tanto que muitos vivem sem praticamente nenhuma expressão literária. Primum vivere, deinde philosophari, diziam os romanos. Primeiro viver, depois filosofar. Da antiga Roma para cá, a ordem de prioridades não mudou.
Verdade que uma elevada literatura enobrece um país e civiliza seus cidadãos. A Espanha muito deve ao Quixote, assim como a Argentina ao Martín Fierro. Mas nenhum destes países pagou pensão a seus escritores. A propósito, Cervantes escreveu boa parte de sua obra nas masmorras de Oran, na Argélia, e no cárcere de Argamasilla del Alba, o qual evoca na primeira frase do Quixote:
“En un lugar de la Mancha, de cuyo nombre no quiero acordarme, no ha mucho tiempo que vivía un hidalgo de los de lanza en astillero, adarga antigua, rocín flaco y galgo corredor”.
O resto conhecemos, há mais de quatro séculos. Segundo os historiadores, ao sair do cárcere e provar sua inocência, Cervantes não encontrou editor para seu livro e em vão se dirigiu aos grandes senhores da Corte para que custeassem os gastos de edição. Que acabou sendo financiada pelo Duque de Béjar, em cujo palácio, ante um público seleto, Cervantes leu um capítulo de seu livro, “causando tão grande entusiasmo que o auditório não o deixou acabar até a leitura do último”.
Cervantes chegou à velhice pobre e só, sem pensão alguma, e recebeu enterro tão humilde quanto foi sua vida. Quanto a Fierro – essa extensão do Quixote no Plata, como pretendem alguns – foi iniciado no exílio, em Santana do Livramento. José Hernández, fazendeiro e senador da República, nunca precisou de favores do Estado para escrever sua obra-prima. Realizou o sonho de todo escritor: seu personagem matou o autor. Milhares de argentinos conhecem Fierro, sem ter idéia do autor. Quando Hernández morreu, um jornal argentino noticiou:
SE MURIÓ EL SENADOR MARTÍN FIERRO
Se a Espanha não tivesse o Quixote nem a Argentina o Martín Fierro, certamente não seriam o que são hoje. Mas, cá entre nós, não deixariam de existir. O Brasil, sem ter produzido nada semelhante, aí está.
Domingos Faustino Sarmiento, o autor de outro livro culminante da literatura argentina, autor de Facundo ou Civilização e Barbárie – livro também escrito no exílio, no Chile - foi um autodidata sem educação formal, nascido de família pobre. Eleito presidente da República em 1868, duplicou o número de escolas públicas na Argentina e construiu por volta de 100 bibliotecas públicas. Nunca recebeu esmola do Estado.
"O programa é magnífico, proporciona um pouco de dignidade aos que, como nós, batalharam a vida inteira pela literatura", disse Alberto Laiseca, de 71 anos, um dos contemplados por uma pensão estatal, que escreveu mais de uma dezena de livros de ficção de horror, incluindo O Jardim das Máquinas Falantes e As Aventuras do Professor Eusebio Filigranati.
Alguém, entre nós, ouviu um dia falar das ficções de horror de Laiseca? De seu jardim das máquinas falantes ou de suas aventuras do professor Eusebio Filigranati? Eu, que sempre me interessei pelas letras de nuestros vecinos – e que traduzi Roberto Arlt, Sábato, Borges e Bioy Casares – jamais ouvi falar. Suponho que os que me lêem muito menos. E me parece que a Argentina continuaria existindo mesmo sem essa coluna vertebral chamada Laiseca. Como escritores de vulto são raros mesmo no espaço de um século, é mais provável que a Argentina aposente escrevinhadores.
Os requisitos para obter a pensão são rígidos e ela está disponível somente para argentinos com pelo menos 15 anos de residência na cidade de Buenos Aires – escreve o repórter do NYT -. É preciso ter pelo menos 60 anos e no mínimo cinco livros publicados por editoras conhecidas, o que deixa de fora os que editam as próprias obras. O benefício é limitado aos escritores de ficção, poesia, ensaios literários e peças de teatro. "Preferimos não chamar isso de pensão, mas de um subsídio em reconhecimento da atividade literária", garantiu Graciela Aráoz, poeta que preside a Sociedade de Escritores Argentinos, com mais de 800 membros.
Para início de conversa, o programa ignora os dias de hoje, em que um escritor pode dispensar perfeitamente uma editora e editorar – e publicar – sua própria obra. Os brilhantes autores do projeto parecem jamais ter ouvido falar em ebooks. Continuando, contempla apenas os residentes na capital. Azar de quem nasceu na província. E exige a publicação de cinco livros, sem sequer definir o que entenda por livro. Plaquete de trinta páginas é livro? Se os cinco livros publicados ao longo de toda uma vida somarem 150 páginas, o autor destas 150 páginas pode ser considerado escritor? Se um jornalista reúne uns dez ou vinte ensaios literários – coisa banal na vida de um jornalista - e os encaderna em forma de livro, passa a ser considerado escritor?
Resta outra pergunta: em um país onde a imprensa é esmagada se não se serve ao governo, quais critérios definirão os pensionistas? É preciso apoiar o cristinismo? Opositor faz jus a bolsa?
No Brasil – cujos escritores há muito renunciaram à condição de coluna vertebral e se contentam com a de parasitas da sociedade – a pensão estatal foi disfarçada com outros benefícios, tais como leitura obrigatória nos currículos escolares e universitários – o que se traduz em gordos direitos autorais -, subsídios para traduções no Exterior – mais direitos autorais - e turismo literário para os amigos do Rei pelas prestigiosas capitais do Ocidente. Em vez de remunerar a submissão ao poder em final de vida, o Brasil sustenta os escritores corruptos desde a idade madura.
Comentei o assunto ano passado. De lá para cá, nada tenho a acrescentar.
27 de agosto de 2012
janer cristaldo
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