"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quinta-feira, 6 de setembro de 2012

MEU PAI E OS JUDEUS

    
          Artigos - Cultura 
       
FranciscoRaphaelDePaolaOs episódios a que me refiro já foram brevemente relatados há mais de dez anos numa discussão sobre meu artigo O Conflito do Oriente Médio no site Digestivo Cultural.
Antes de voltar a eles preciso apresentar meu pai.
Francisco Raphael De Paola nasceu em 1909 em Pelotas (RS), filho de imigrantes italianos.

Minha avó provavelmente foi gerada em Mantova, pois a bisa chegou grávida ao Brasil – ela com 15 anos e ele com 18, fugindo da fome na região - e o parto se deu, depois da travessia de navio e da subida da serra gaúcha em lombo de burro, em Bento Gonçalves (RS).

Meu avô era calabrês e quando aqui chegou encontrou minha avó viúva com 3 filhos. Meu pai foi o primeiro rebento deste segundo casamento. Seguindo a tradição de meu avô dedicou-se ao comércio de artigos musicais e fotografia, se estabelecendo em 1935 em Rio Grande, RS, com uma filial da loja de Pelotas, então administrada por minha avó e um tio – meu avô morrera em 1916.

O primeiro episódio ocorreu exatamente em função do endereço, dois anos antes do meu nascimento. Como era hábito em cidades do interior os comerciantes construíam suas moradias no sobrado por cima da loja. Nesta rua comercial tinham estabelecimentos de vários tipos e com comerciantes de várias etnias. O de meu pai ficava entre duas lojas, uma de um espanhol franquista e outra de um italiano fascista, primo de minha avó. Havia outros italianos e muitos judeus: um alfaiate, um fotógrafo artístico, dois donos de lojas de móveis e outros que não lembro.

Quando o Brasil declarou guerra às potências do Eixo, contra a vontade do ditador Vargas pressionado por Roosevelt, turbas ensandecidas açuladas por trabalhistas e comunistas – as maiorias políticas na cidade predominantemente portuária e industrial – passaram a invadir e destruir todas as propriedades de italianos e alemães.
Quando chegaram às portas da loja de meu pai, os judeus da rua bloquearam a entrada e defenderam meu pai do saque dizendo-se judeus que se responsabilizavam por um homem que abominava o racismo.

Assim mesmo vim a conhecer meu pai: acreditava na igualdade entre os homens e na liberdade de todos. Getulista de primeira hora – com 20 anos lutou na Revolução de 30 – desiludiu-se com os rumos tomados pelo trabalhismo depois de 37.

O segundo episódio ocorreu em 1969. Na década de 60 uma empresa de material fotográfico e fitas magnéticas da Alemanha Oriental, ORWO, baseada na antiga Agfa Wolfen, na qual foi desenvolvido o primeiro filme colorido em 1936, o Agfacolor, inundou o mundo ocidental com seus produtos.

Por duas vezes a firma de meu pai foi a maior distribuidora no Rio Grande do Sul e ele pai foi brindado, junto com outros representantes brasileiros, com uma viagem à República (muy) Democrática Alemã. Desde que chegou lá ficara abismado ao ver os desfiles militares com soldados de uniforme cinza esverdeado e capacete idêntico aos da Wermacht marchando em passo de ganso. Posteriormente, num banquete de recepção em Dresden, logo após a visita a Karl-Marx-Stadt, ocorreu algo detestável.

Antes, porém, é necessário descrever a aparência física de meu pai: ruivo, pele quase translúcida e pouco resistente ao sol, sardento, facilmente confundível com um ashkenazi (a foto acima não faz justiça).

Pois, no referido banquete o ministro do Comércio Exterior da RDA deveria sentar-se entre meu pai e um representante de São Paulo, descendente de alemães. Ao olhar para meu pai ele disse: Não sento ao lado de judeus! Meu pai não falava alemão, mas entendeu o recado – já fora confundido com judeus muitas outras vezes - proferido em tom muito agressivo.
Pediu ao colega paulista que traduzisse sua resposta: Engano seu, excelência, não sou judeu. Mas me sentiria muito honrado em pertencer à raça que produziu gênios com Freud, Einstein, grandes artistas e escritores e, lembre Sr Ministro, até mesmo Karl Marx,de cujas idéias o Sr, assim como seus colegas de governo, certamente se sentem tão orgulhosos de colocar em prática.

Pasmem os leitores, ele foi aplaudido por grande parte dos comensais. O ministro, apoplético, sentou-se onde devia, mas não lhe dirigiu a palavra outra vez.

Nota:

Para publicação no jornal Visão Judaica, de Curitiba.

Possivelmente inspirado pela bela iniciativa do Co-editor deste jornal, Szyja Lorber e sua irmã, o livro As Catorze Vidas de David - O Menino que tinha nome de Rei. Também não deve ser coincidência que a idéia me tenha ocorrido quando comemorávamos o Dia dos Pais na minha casa num almoço com a presença de meus filhos e netos.

Escrito por Heitor De Paola

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