"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

A DECISÃO DE CELSO DE MELLO RESPEITA A CONSTITUIÇÃO, O CÓDIGO PENAL E É, SIM, COERENTE COM SEU VOTO DE 1995. OU: A CONFUSÃO DE ELIO GASPARI


 
Segue trecho:
 
“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL E PENAL. ART. 15 , CAPUT E INC. III , DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. SUSPENSÃO DOS DIREITOS POLÍTICOS COMO EFEITO AUTOMÁTICO DE SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA COM TRÂNSITO EM JULGADO”.
 
Como fica claro, já na ementa, tratava-se de decidir pela autoaplicabilidade ou não do Inciso III do Artigo 15 da Constituição, a saber:


Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de:

III – condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos.
 
E Celso de Mello formou a maioria com os que entenderam então que o artigo, no caso do vereador, não era autoaplicável.
 
Desta feita, como aqui se salientou desde o início, cuida-se de outra coisa e de outros crimes. Mais do que isso: ainda que pareça um pouco estúpido ter dizê-lo, lá vai: vereador não é deputado ou senador, e está em pauta, além do Artigo 15, também o 55. E este trata exclusivamente do mandato de senador e deputado, como deixa claro seu caput:
“Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador”. Essa diferença tem sido ignorada pela turma do “é tudo igual”.
Antinomia


Celso de Mello reconheceu, como reconhecemos todos nós, e eu mesmo já escrevi a respeito, que existe, sim, uma antinomia na Constituição. Porque existe, cabe ao Supremo fazer uma interpretação harmonizadora do texto constitucional, de modo a assegurar a sua higidez. E que Antinomia é essa?
 
Ela se expressa justamente na composição dos Incisos IV e V do Artigo 55 com os parágrafos 2ª e 3ª. Segue o Artigo na íntegra, com destaque ao que é mais relevante:


Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador:


I – que infringir qualquer das proibições estabelecidas no artigo anterior;


II – cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar;
III – que deixar de comparecer, em cada sessão legislativa, à terça parte das sessões ordinárias da Casa a que pertencer, salvo licença ou missão por esta autorizada;
IV – que perder ou tiver suspensos os direitos políticos;
V – quando o decretar a Justiça Eleitoral, nos casos previstos nesta Constituição;
VI – que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado.§ 1º – É incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas.

§ 2º – Nos casos dos incisos I, II e VI, a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.

§ 3º – Nos casos previstos nos incisos III a V, a perda será declarada pela Mesa da Casa respectiva, de ofício ou mediante provocação de qualquer de seus membros, ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.
§ 4º A renúncia de parlamentar submetido a processo que vise ou possa levar à perda do mandato, nos termos deste artigo, terá seus efeitos suspensos até as deliberações finais de que tratam os §§ 2º e
 
3º. (Incluído pela Emenda Constitucional de Revisão nº 6, de 1994).
 
Retomo


Atenção, turma do “é tudo igual” — dirijo-me, claro!, aos que não estão movidos por má-fé. Estes não têm cura.


Não se cuidou — fique atento, Elio Gaspari! — do Artigo 55 naquele Recurso de 1995 porque vereador não é deputado ou senador, o que enseja que se evoque, como agora se faz, o dito-cujo.
 
Naquele caso, esgotava-se a questão do Antigo 15: autoaplicabiidade ou não do Artigo 15. Coerente com seu voto de 1995 nesse fundamento, Celso continuou a considerar, em 2012, que ele não é autoaplicável.
 
Aplica-se, desta feita, o Parágrafo 3º do Artigo 55 — isto é, cabe à Mesa da Câmara ou do Senado apenas o ato declaratório. O plenário não tem como decidir se cassa ou não o mandato porque cassado ele está pelo Artigo 92 do Código Penal.
E o que ele estabelece? Que está cassado o mandato do deputado ou senado nas seguintes hipóteses:

a) quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública;

b) quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a 4 (quatro) anos nos demais casos.
 
Interpretação harmonizadora

O que fazer deste Artigo 92 do Código Penal? Jogá-lo no lixo? Acho que não! “Ah, mas em que circunstância, então, caberá ao plenário da Câmara ou do Senado decidir, conforme estabelece o Parágrafo 2º do mesmo Artigo 55?” Ora, nos casos em que a lei for omissa e não impuser a cassação.
 
Voltemos ao exemplo muito citado de alguém condenado, em última instância, por um acidente de trânsito, ainda que a uma pena leve (necessariamente inferior a quatro anos, claro!). Nesse caso, então, não sendo um crime contra a administração pública, o plenário da Câmara ou do Senado dará a palavra final sobre o mandato.
 
Eis um interpretação harmonizadora, que mantém a higidez dos artigos da Constituição e também do Código Penal — ou alguém vai afirmar que o Artigo 92 do Código, ao cassar mandatos, está agredindo a Carta?
 
Agora as coisas estão claras. Em sua coluna de domingo na Folha e no Globo, Elio Gaspari recorre à história para fazer confusão, não para iluminar o debate. Seu primeiro erro foi cair na cascata, plantada na imprensa por um influente advogado de mensaleiro, de que, em 1995, tratou-se de algo semelhante.
Como a premissa é falsa, a conclusão dela derivada, se lógica, é igualmente falsa.
Ainda se atrapalhando com leis e códigos, escreve Gaspari em tom de censura:
 
“Estabelece-se uma norma: 11 magistrados escolhidos monocraticamente pelo presidente da República podem cassar mandatos de parlamentares eleitos pelo povo. Essa responsabilidade é temerária e excessiva. 
 
Bem, Gaspari se opõe a que apenas SETE ministros do TSE, e não ONZE, cassem mandatos??? Alguém dirá: “Mas a lei confere esse poder à Justiça Eleitoral”. É verdade! E CONFERE AO SUPREMO A ÚLTIMA PALAVRA EM MATÉRIA CONSTITUCIONAL.
 
Que fique claro: o STF não decidiu hoje que lhe compete cassar mandatos. O QUE O STF FEZ FOI INTERPRETAR A CONSTITUIÇÃO E CONCLUIR QUE DEPUTADOS E SENADORES CASSADOS POR CRIMES CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, COM UM ANO OU MAIS DE CONDENAÇÃO (OU CONDENADOS A MAIS DE QUATRO ANOS POR QUALQUER CRIME) PERDEM AUTOMATICAMENTE OS SEUS MANDATOS.
Nesse caso, aplica-se o Parágrafo 3º do Artigo 55 da Constituição, não o 2º.
Alhos com bugalhos

Em sua coluna, Gaspari citou o caso da condenação à prisão, decidida pelo Supremo, do deputado Francisco Pinto, em outubro de 1974. Em março, às vésperas da posse de Ernesto Geisel na Presidência, o deputado Francisco Pinto, do MDB da Bahia, concedeu um entrevista chamando Augusto Pinochet, presidente chileno, de ditador, denunciando seus crimes.
 
Com base nas leis da ditadura, a Procuradoria Geral da República ofereceu denúncia contra ele no Supremo, que foi acatada. Gaspari trata isso como uma espécie de mácula na história do Supremo. A mácula, na verdade, era a ditadura, à qual também o tribunal estava submetido.
Em favor dos ministros de então, e essa informação foi omitida, deve-se destacar que Chico Pinto acabou sendo condenado pelo Código Penal, não pela Lei de Segurança Nacional, que ensejaria pena bem mais pesada. Em tempos de exceção, é preciso ficar atento às sutilezas. O próprio deputado se manifestou, então, reconhecendo que o Supremo não era livre para decidir. E NÃO ERA!
 
O que uma coisa tem a ver com outra? Em que o caso de um deputado que tem a coragem de denunciar uma ditadura… em plena ditadura (!!! )tem a ver com outros que fraudam a democracia na democracia? NADA!
 
Em que um tribunal que dribla as leis mais discricionárias de um regime de força e aplica a pena da lei mais branda, resistindo à tirania no limite do possível, tem a ver com um outro, que exerce suas prerrogativas num regime democrático? NADA TAMBÉM.
 
- João Paulo Cunha, Pedro Henry e Valdemar Costa neto não são Chico Pinto.

- Peculato, corrupção ativa, corrupção passiva e lavagem de dinheiro não se confundem com defesa da democracia e crítica a um ditador.

- Um STF submetido a um regime discricionário e sob a égide do AI-5 não é um STF cujos poderes deriva da Constituição democrática de 1988.


- Finalmente, Gaspari, o caso de 1995 não se confunde, na espécie, com o de 2012.
 
A decisão de Celso de Mello segue os fundamentos da Constituição e do Código Penal e é coerente com o seu voto de 1995. Basta atentar ao que diz a lei e não misturar alhos com bugalhos.
 
17 de dezembro de 2012
Por Reinaldo Azevedo

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