"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

BASHAR AL-ASSAD, A SÍRIA E A VERDADE SOBRFE ARMAS QUÍMICAS



O pai de Bashar, Hafez al-Assad, foi brutal, mas jamais usou armas químicas. Querem saber qual foi o primeiro exército a usar gás no Oriente Médio?

Quanto maior a mentira, mais gente ela engana. Todos sabemos quem disse tal coisa – e ainda funciona. Bashar al-Assad tem armas químicas. Pode usá-las contra o próprio povo. Se usar, o Ocidente reagirá. Já ouvimos essa conversa, idêntica, ano passado – e o regime de Assad tem repetido que se – se! – tivesse armas químicas, jamais as usaria contra sírios.

O caso é que Washington já recomeçou com a cantilena do gás, outra vez. Bashar tem armas químicas. Pode usá-las contra o próprio povo. E se usá-las…

Ora, se usá-las, Obama e Madame Clinton e a OTAN ficarão muito, muito zangados. Durante toda a semana passada, todos os pseudo especialistas que consigam encontrar a Síria no mapa puseram-se a alertar o mundo, contra o gás mostarda, agentes químicos, agentes biológicos que a Síria talvez possua – e talvez use. As fontes? Os mesmos especialistas em delírios que não nos alertaram sobre o 11/9 e garantiam que Saddam teria armas de destruição em massa, em 2003: as tais "fontes não identificadas, da inteligência militar" [orig. unnamed military intelligence sources], daqui em diante referidas pela sigla FNIIM.

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GOLPE DE CENA


Agora, o golpe de cena. Alguém da Canadian Broadcasting Corporation telefonou-me essa semana para falar sobre o uso de armas químicas por Hafez al-Assad em Hama, contra o levante de muçulmanos sunitas naquela cidade em 1982. Suas fontes? As mesmas velhas FNIIM. Acontece que estive em Hama em fevereiro de 1982 – razão pela qual o canadense me telefonou – e, apesar de o exército sírio de Hafez estar massacrando, sem dúvida possível, o próprio povo (o qual, por falar nisso, estava também massacrando funcionários do regime e suas famílias), ninguém jamais usou qualquer arma química.

Não vi em Hama nenhum soldado, nem um, que usasse máscaras antigás. Nenhum civil usava máscara antigás. Não havia ali nem sinal do ar perigosamente perfumado que eu e outros jornalistas respiramos depois que nosso (então) aliado Saddam Hussein usou armas químicas contra soldados iraquianos nos anos 1980s. E nenhum das dúzias de sobreviventes civis que entrevistei nos 30 anos, de 1982 até hoje, jamais sequer mencionou armas químicas ou gás.

Pois agora, esperam que acreditemos que teriam sido usadas. E por aí vai o macabro conto de fadas da hora: Hafez al-Assad usou gás contra o próprio povo em Hama, há 30 anos. Então… o filho pode usar gás contra o próprio povo. E não bastou isso para que invadíssemos o Iraque em 2003 – porque Saddam, que usara gás contra o próprio povo, bem poderia usar outra vez?

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CONVERSA FIADA


É. Quanto maior a mentira, melhor. Não há dúvida de que nós, jornalistas, fizemos nossa parte na disseminação dessa conversa fiada. E Bashar – cujas forças cometeram iniquidades em grandes quantidades – está às vésperas de ser acusado de mais um crime que, dessa vez, não cometeu e que seu pai tampouco cometeu. É, amigos… armas químicas são más notícias. Por isso, precisamente, os EUA forneceram a Saddam os componentes para produzir as tais armas químicas, além da Alemanha (claro).

Por isso também, quando Saddam usou gás pela primeira vez em Halabja, as FNIIM disseram aos agentes da CIA que jogassem a culpa sobre o Irã. E, sim, sim, Bashar provavelmente guarda algumas ‘químicas’ em latas enferrujadas, por lá, na Síria. Madame Clinton anda perdendo o sono, preocupada com que "caiam em mãos erradas" – como se, hoje, estivessem em "mãos certas". Mas os russos disseram a Bashar que não use. Só falta, mesmo, Bashar enfurecer, agora, a única superpotência aliada que lhe resta.

Então, querem saber qual foi o primeiro exército a usar gás no Oriente Médio? Saddam? Nã-nã-não! Foram os britânicos, claro, claro, comandados pelo general Allenby, contra os turcos, no Sinai, em 1917. E é verdade.   (Artigo enviado por Sergio Caldieri)

10 de dezembro de 2021

Robert Fisk
(The Independent, UK)

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