A implacável oposição petista engravidou como situação e governo. Integrou-se na tal ‘política brasileira’: virou retrógrada e viu nascer a corrupção no seu ventre imaculado. Descobriu-se igualmente insegura, demagógica e populista
Não é todo dia que um programa de TV voltado ao debate, ao comentário e realizado a pelo menos quatro mãos chega aos vinte anos, como é o caso do Manhattan Connection. Dizem os entendidos que a televisão é um veiculo poderoso, mas sem a densidade da escrita, que permite não só as entrelinhas, mas a releitura. Na TV as coisas “passam”, no jornal elas ficam. Podemos recortá-las e entesourá-las como relíquias de pessoas e épocas. Ademais, a TV, mesmo gravada, precisa de um outro artefato para sua reprodução, o que não é o caso do noticiário escrito, o qual dispensa baterias.
Tudo isso para falar da minha satisfação de ter tomado parte da comemoração dos 20 anos do programa, na última sexta-feira, 22, na TV Globo, em São Paulo. O programa, idealizado e ancorado com freudiana maestria por Lucas Mendes e que tem Caio Blinder como um dos seus participantes mais intensos — Caio não faltou a nenhuma gravação desde 1993; que teve o hiper-criativo Nelsinho Motta e um polarizador mítico — Paulo Francis — que com sua poderosa figura, marcava sua presença de Nova York para o Brasil. Com a inopinada morte do Francis, em fevereiro de 1997, o programa sofreu uma reviravolta, mas encontrou outros comentaristas — como o peso-pesado Arnaldo Jabor — e sobreviveu.
Hoje, ele conta com o Lucas, o Caio, o Pedro Andrade. O Diogo Mainardi e o Ricardo Amorim — todos devidamente editados por uma paciente e competente Angélica Vieira. Todos realizando seus brilhantes, quase sempre inflamos e bem informados comentários de Manhattan, Veneza (Diogo) e São Paulo (Ricardo).
Tomei, atemorizado, parte no MC como primeiro convidado do programa em fevereiro de 97, antes da morte do Francis, e, logo depois, voltei a participar quando ele saiu do palco, num momento de triste retomada.
Nesta última sexta-feira, em São Paulo, fui honrado como como o “primeiro” a tomar parte no programa. Esse “primeiro” que, como vocês sabem, é sempre lembrado, ao lado do “último”. Estive quatro vezes na conexão e em todas descobri o meu sem jeito de comentar os fatos do mundo. Salvou-me o bom humor e o apoio generoso dos participantes. O fato é que eu me sinto melhor com a escrita que permite ponderar sobre o que se diz e que tem o poder de desdizer dizendo — essa propriedade da literatura. Mas fui e fiz o meu papel.
O convite puxou pela memória. E a grata presença dos velhos conhecidos de duas décadas — o Lucas Mendes e o Caio Blinder, levaram-me de volta a Indiana onde conheci o Caio na Universidade de Notre Dame, tendo sido professor da Alma, sua esposa. Afora isso a memória da minha participação no programa é feita de gratos fragmentos. Um deles é a surpresa de testemunhar um programa marcante pela discussão inteligente, bem-humorada e informada das coisas do mundo na televisão. Embora seja uma “conexão Manhattan” com um toque provocador e arguto de Europa dado pelo Mainardi, o programa tem um indiscutível sabor brasileiro, pois nele pipocam alegres dissidências de botecos, informações sofisticadas do melhor estilo jornalístico internacional e a pimenta de uma risonha linguagem brasileira.
Num dado momento, o Lucas (ou teria sido o Caio?) me perguntou o que eu via nesses 20 anos no mundo e no Brasil. Coisa grande demais para 2 minutos. Respondi inseguro porque sou ruim no bate-pronto. Fui hesitante ao falar sobre o mundo, e me esqueci do Brasil. Eis o que deveria ter falado:
De 1993 para cá, o Brasil abriu-se e igualou-se ideologicamente. Esquerda e direita têm sido substituídas pelo certo e pelo errado, pelo ético e pela calhordagem. Os meios não podem mais justificar os fins. O básico deste período foi ter a esquerda no poder, como tenho dito muitas vezes nesta coluna. A implacável oposição petista engravidou como situação e governo. Integrou-se na tal “política brasileira”: virou retrógrada e viu nascer a corrupção no seu ventre imaculado. Descobriu-se igualmente insegura, demagógica e populista.
Chegamos todos a um ponto comum — onde o radicalismo tem como inimigo simplesmente o bom senso. No programa eu, atabalhoado, falei do 11 de setembro. Mas nossas torres desses vinte anos são uma “jamais vista” demanda de igualdade democrática; e, no mundo, a consciência de que seus recursos são menores do que a máquina de um capitalismo ainda desenhado para consumistas ricos e celebridades amorais.
27 de março de 2013
Roberto DaMatta é antropólogo
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