Ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres Britto afirma que o país não pode entregar o monopólio das investigações criminais a órgãos subordinados ao Poder Executivo: 'O MP não é subordinado a ninguém.'
Carlos Ayres Britto, em sua última sessão à frente do Supremo Tribunal Federal, no ano passado (Ueslei Marcelino/Reuters)
"A PEC 37 mutila o MP funcionalmente, ela desnatura e aparta o MP de si mesmo. Sobra o quê? O MP fica praticamente reduzido a um ornamento gráfico no sítio escriturário da Constituição"
Nas últimas semanas, para supresa até mesmo de integrantes do Ministério Público, faixas e cartazes contra a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) número 37 passaram a fazer parte do amplo cardápio de reivindicações dos protestos que tomaram as ruas de todo o país.
A reação foi imediata: o Congresso recuou e decidiu adiar a votação da proposta - já há quem defenda, inclusive, que ela não saia mais gaveta. Batizada de "PEC da Impunidade" por promotores e procuradores, a proposta proíbe o Ministério de Público de conduzir investigações criminais, prerrogativa que passaria a ser exclusiva das polícias.
Ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Carlos Ayres Britto avalia que a sociedade está “passando um pito” no poder público. “A PEC 37 quer enforcar quem nunca roeu a corda, o Ministério Público”, disse o ex-ministro ao site de VEJA.
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A PEC 37 serve a que interesses?
A PEC 37 quer enforcar quem nunca roeu a corda, o Ministério Público. Acho um equívoco de quem propôs e de quem está aderindo. O Ministério Público, pela Constituição, está habilitado, sim, a desencadear investigações no campo mais genérico do direito, já que ele é defensor da ordem jurídica, e no campo específico do direito penal. O Ministério Público tem um papel totalmente independente, e não apenas com atuação subsidiária [à polícia]. O MP é independente até dos três poderes.
Existe corporativismo exacerbado nessa discussão sobre a PEC 37? Virou um cabo de guerra entre polícia e MP?
As associações majoritárias de policiais civis e militares estão contra a PEC 37. Entendem por modo cientificamente correto que o MP dispõe da competência constitucional para a investigação lato sensu, seja no campo penal, seja no campo do combate à improbidade administrativa e em outras áreas, como defesa das populações indígenas, defesa do meio ambiente, defesa dos direitos à saúde e à educação. Não tem que ter nenhum tipo de amarra ao MP.
O que diz a PEC 37
A PEC define como competência "privativa" da polícia as investigações criminais ao acrescentar um parágrafo ao artigo 144 da Constituição. O texto passaria a ter a seguinte redação: "A apuração das infrações penais (...) incumbe privativamente às polícias federal e civis dos estados e do Distrito Federal."
- O que diz a Constituição:A legislação brasileira confere à polícia a tarefa de apurar infrações penais, mas em momento algum afirma que essa atribuição é exclusiva da categoria policial. No caso do Ministério Público, a Constituição não lhe dá explicitamente essa prerrogativa, mas tampouco lhe proíbe. É nesse vácuo da legislação que defensores da PEC 37 tentam agora agir.
- Votação:
As propostas de emenda à Constituição, como a PEC 37, tem um regime diferenciado de votação e, para serem aprovadas, exigem quórum mínimo de 3/5 de votos favoráveis do total de membros da Casa (308 votos na Câmara e 49 no Senado) e apreciação em dois turnos tanto na Câmara quanto no Senado.
O Ministério Público é um defensor da ordem jurídica e é o intérprete isento dos princípios e regras constitutivos dessa ordem jurídica. Há abusos localizadamente, topicamente, pontualmente, mas não como característica central. Claro que a polícia tem evoluído, sobretudo a Polícia Federal, por exemplo, e também as polícias dos estados, civil, militar. É possível trabalhar com essa ideia de evolução no âmbito das estruturas policiais. Mas o fato é que as instituições policiais são hierarquicamente subordinadas a chefias do Poder Executivo. Então não se pode entregar o monopólio do inquérito policial, da investigação criminal a órgãos subordinados ao Poder Executivo. O MP não é subordinado a ninguém.
Parlamentares chegaram a falar abertamente em aprovar a PEC 37 com o argumento de que o MP estaria “incomodando” deputados e senadores.
O Ministério Público tem sido a instituição pública que sabe dar conta do recado constitucional. Ele tem sido um ponto fora da curva. Qual curva? Da impunidade quanto àqueles que cometem crimes propriamente ditos ou improbidade administrativa. O MP tem encarnado seu papel, cumprido suas funções e servido aos valores determinantes de sua própria existência.
Julgamentos importantes, como o mensalão e denúncias grandes de improbidade, teriam tido o mesmo resultado se a PEC 37 estivesse em vigor?
O MP no mensalão teve o papel de órgão acusador. As alegações finais do processo penal foram feitas pelo Ministério Público, pelo procurador-geral da República. Um procurador foi o Antonio Fernando de Souza, e o outro Roberto Gurgel, ambos grandes agentes públicos, respeitáveis, competentes, desassombrados do ponto de vista da sua independência. O MP fez seu papel no mensalão. A PEC 37 mutila o MP funcionalmente, ela desnatura e aparta o MP de si mesmo. Sobra o quê? O MP, sem esse poder de investigação por conta própria, fica praticamente reduzido a um ornamento gráfico no sítio escriturário da Constituição e das leis.
O ministro José Dias Toffoli, do STF, falou em um prazo de dois anos para o fim do julgamento do mensalão. O senhor acredita em prazo semelhante?
Não tenho prognóstico para isso. Mas o processo foi legitimamente conduzido, debatido, votado, dosimetrado, tudo à luz do dia, de forma transparente, com todo respeito às garantias constitucionais do contraditório entre acusação e defesa e do próprio contraditório argumentativo no seio dos ministros, sobretudo do ministro revisor [Ricardo Lewandowski] e do ministro relator [Joaquim Barbosa]. Foi um processo revestido de toda a legitimidade. Temos ministros responsáveis, competentes, devotados. E agora o ministro Joaquim Barbosa, que é o presidente da Casa e o relator do processo, saberá honrar as tradições do STF.
Como o senhor avalia essa onda de manifestações pelo país?
Vejo essas manifestações como uma ativação da cidadania no curso de uma democracia que veio para ficar e que é para valer. As pessoas querem se informar para se comunicar, para se conectar com consciência, protagonizando ações com plena consciência e ciência das coisas. Como majoritariamente os movimentos não descambaram para a violência, saúdo esses movimentos, os aplaudo e os vejo como uma advertência às instituições e às autoridades. É como se o povo estivesse a dizer, e de fato está dizendo, ‘olha, nós estamos saindo da virtualidade das redes sociais para a factualidade das praças e das ruas porque não aceitamos mais o não-fazer, o não cumprir o seu papel com rigor das instituições e dos agentes públicos’. O povo está se dotando da legítima autoridade de passar um pito nas autoridades.
O poder de investigação do Ministério Público
Caso Celso Daniel
Em 18 de janeiro de 2002, o então prefeito de Santo André (SP) e coordenador da campanha de Lula, Celso Daniel, foi sequestrado e encontrado morto dois dias depois, com onze tiros e sinais de tortura. O MP discordou da posição da polícia de que o crime foi de natureza comum e abriu uma investigação sobre o caso. Para o órgão, o assassinato foi de motivação política, e o empresário Sérgio Gomes da Silva, o Sombra, o mandante da morte.
Segundo os irmãos da vítima, o prefeito foi assassinado porque tinha um dossiê sobre a corrupção em Santo André para financiar as campanhas do PT, que era de conhecimento da cúpula petista. A tese das investigações do MP é que desentendimentos sobre a partilha dos recursos teriam motivado o assassinato.
Além de Sombra, o MP denunciou seis pessoas que foram condenadas pelo crime entre agosto de 2010 e novembro de 2012 com penas que variam de dezoito a 24 anos de prisão. O julgamento do suposto mandante, previsto para março de 2013, foi adiado e ficará parado até a decisão de dois habeas corpus pendentes no STJ e STF.
22 de junho de 2013
Laryssa Borges, Veja
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