— Liderança é o cacete—, protesta uma jovem, com a expressão rútila. Um grito da sociedade fragmentária? Ou de uma sociedade na qual o cacete é o líder?
“Alguém mandou/mandou calar a cuíca/é coisa dos home”: por volta das 17 horas da última quinta-feira o refrão de Aldir Blanc e João Bosco ronca no som de um coreto montado no Paço Imperial. A outrora sede do Império tem um clima festivo que em nada anuncia o desfecho violento da noite.
Meninas com a máscara do “V de Vingança” — ou do vinagre, conforme for — produzem autorretratos para o Instagram.
A caminho da Candelária já se ouvem, em meio a emanações de incensos, as poucas palavras de ordem que darão o tom de uma manifestação que, antes de chegar à zona de conflito, na Prefeitura, transcorrerá numa cadência mais de passeio que de passeata:
“Vem pra rua, vem”.
“Eu sou Brasileiro, com muto orgulho, com muito amor...”
“Ei, Cabral, vai... (censurado)”.
Em frente ao CCBB, o ritmo de produção de cartazes com pilô e papelão dá à concentração um ar de grêmio ginasial.
“Fora Renan, Fora Collor, Fora Sarney”.
“Corrupção é crime hediondo.”
“Relaxa, reaça”
“Não à PEC 37!”
“Se não fores bravo, serás escravo”
“Cuidado, seu voto pode levar um ladrão ao Congresso”.
“Bala de borracha não. Bala Juquinha”
Nos olhos da massa juvenil, um brilho de esperança vaga, vã, não se sabe bem em que ou em quem, num futuro, no amor, talvez.
“Amor não tem Lei”, diz um cartaz, referindo-se ao projeto da cura gay.
“Amanheceu mais uma vez. É hora de acordar novamente para vencer”.
Vencer o quê? Quem é o inimigo? E o líder?
— Liderança é o cacete — protesta uma jovem com expressão rútila.
Um desejo orgânico, sem direção? Um grito da sociedade fragmentária?
Ou uma sociedade falocêntrica, machista, homofóbica, na qual o cacete é, de fato, o líder?
Afinal, já na andança da manifestação pela Presidente Vargas, há grupos que demandam que Dilma saia do armário, tire o sapato, deixe de ser fantoche.
Ou os extremistas, que “acusam” a presidente de lesbianismo e avisam que chegou a hora de “a putaiada” (ou seja, o todo da classe política) ir para o inferno.
Há quem, no meio disso tudo, encontre tempo para a dialética do esclarecimento. Um cartaz esclarece que preço e valor são coisas distintas. Outro, informa, em poucas palavras:
“Meu cu é laico.”
Há espaço também, e muito, para o nonsense, onde mora, amiúde, o perigo:
“Não empresário”.
Que empresário? Não o quê?
Numa grande faixa sustentada por um grupo de pós-adolescentes, é pedido o impeachment de Dilma. Um homem maduro, com aparência de ex-anarquista, dirige-se a eles:
— Como assim impeachment? Pra assumir o Renan? O Temer? Vão estudar política! Vão aprender os trâmites! Bando de ignorantes!
“Ao povo, a decisão.”
Que decisão? Através de que meios? De quem é a palavra de ordem? Ao menos, surgem palpites sobre quem deve silenciar:
“Cala a boca Pelé. Cala a boca Ronaldo. Vocês, calados, são poetas” (d’après Romário).
O padrão Fifa virou sufixo para reivindicações. “Hospitais padrão Fifa. “Educação padrão Fifa.” “Magistério padrão Fifa”. “Olê, olá, o professor vale mais que o Neymar”.
Mas... o que é que o Neymar tem a ver com a história? O salário de Neymar Jr. sai do bolso do povo? Onde está o nexo?
De passagem, alguém pergunta quanto está o jogo. Espanha cinco a zero. Só?
Das janelas, papel picado: aplausos. Do céu, o rosnar de um helicóptero: o povo acena, “u-hú”, para o poder, ou a mídia?
Uma trupe vem vindo com “Pra não dizer que não falei de flores” puxada pelo compasso de um berimbau.
“Show me the money Dudu!”
Mas... whos Dudu? Ah, Paes! Uma cabeça de nego explode e a massa pede: Paz! Paz!.
Um grupo de bombeiros com enormes faixas tenta angariar alguma simpatia.
Uma faixa avisa que o Congresso se transformou no bunker dos corruptos, e está derretendo, com os dias contados. De fato, houve fogo em Brasília, mas foi no Itamaraty. E, aqui, no Terreirão do Samba.
“Ou paramos a roubalheira, ou paramos o Brasil”.
“Spring is coming”.
O Brasil, aparentemente, já parou e uma estranha primavera antecipada anuncia-se. Talvez falte dar uma organizada. Chamar Paulo Barros para dividir as alas, ou as torcidas banidas para bater o bumbo e escolher as bandeiras. Em respeito à Graúna de Henfil, mostrada por um manifestante solitário, alguma temperança se faz urgente, para que se polvilhe mais pimenta na feijoada da causa e menos gás nos olhos de quem não tem nada a ver com a sede de sangue.
22 de junho de 2013
Arnaldo Bloch, O Globo
Nenhum comentário:
Postar um comentário