"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sábado, 1 de junho de 2013

QUESTÕES DE FÉ: DEUS E O PONTO G


 A fé, dizem os teólogos, é a atitude interior daquele que crê. O verbo “crer” faz sua primeira aparição em Gênesis, 15,6, quando Deus faz a Abraão uma promessa inverossímil: “Olha agora para o céu, e conta as estrelas, se as podes contar; e acrescentou-lhe: Assim será a tua descendência”. Verdade que Jeová exagerava em sua bíblica retórica, ou talvez desconhecesse as dimensões do universo que criara, afinal se dos filhos de Abraão hoje temos uma idéia mais ou menos precisa de quantos são, das estrelas não temos idéia alguma.

Mas falava de fé: “E creu Abrão no Senhor, e o Senhor imputou-lhe isto como justiça”. Nasci ateu, como nascem todas as crianças. A fé só me foi inculcada mais tarde, através da catequese. Felizmente, para meu conforto interior, logo descobri que Deus só existia em minha cabeça. Verdade que esta certeza em muito antecede minha existência, mas que se vai fazer? Fora o Fulano aquele, ninguém nasce com a ciência infusa.

Se precisei de alguma reflexão para descrer em Deus, no chamado ponto G nunca tive muita fé. Se a idéia de Deus nasceu bem antes de mim, a idéia do ponto G surge bem depois. Sou homem antigo, quando ainda não existiam TPM, transtorno bipolar nem ponto G.

Nasci em 1947 e o tal de ponto erótico só foi aventado em 1950, pelo ginecologista alemão Ernst Gräfenberg, daí o G. Ou seja, antes de meados do século passado ninguém tinha ponto G. Ou, se tinha, jamais havia percebido. Pobre humanidade esta nossa, que durante milênios ignorou um local de prazeres inefáveis. Depois de Gräfenberg, o ponto G virou dogma. E milhares de homens e mulheres saíram em sua busca.

De minha parte, confesso que jamais o encontrei. Por outro lado, jamais o procurei. Tampouco conheci mulher que o tenha encontrado. Ponto G, para mim, faz parte das lendas urbanas. O Journal of Sexual Medicine, do King’s College London, acaba de confirmar minha descrença. A esquiva zona de prazer que existiria em certas mulheres seria um mito, dizem os pesquisadores que tentaram encontrá-la. A pesquisa, que envolveu 1800 mulheres, concluiu que o ponto G é um produto da imaginação das mulheres, encorajado pela imprensa e pelos terapeutas sexuais.

Francesas, indignadas, protestam. Em irado artigo no Libération, sem assinatura mas de óbvia lavra feminina, leio:

“Não gozem mais! Seus orgasmos não passam de auto-sugestão. No 04 de janeiro de 2010, como se fosse necessário começar o ano com um estudo que não serve para nada, uma equipe do King’s College London, composta por Tim Spector (professor de epidemiologia genética) e Andrea Burri (psicóloga de Berna), entregou o resultado da “mais extensa pesquisa jamais feita no mundo sobre o ponto G” (sic), com as seguintes conclusões: o ponto G é um dado totalmente subjetivo”.

A articulista continua derramando sua indignação. Ironiza: que as mulheres que pretendem ter um ponto G teriam imaginação excessiva. Que Andrea Burri inclusive acusou os sexólogos de ter inventado esta zona erógena, tornando assim loucas de inquietação as infelizes que não a tenham encontrado. “É totalmente irresponsável proclamar a existência de uma entidade de cuja existência não se tem prova nenhuma e, isto feito, pressionar as mulheres, que se sentem diminuídas, aleijadas pelo fato de não corresponderem à norma”.

Mutatis mutandis, é o que penso da “existência” de Deus. Com uma diferença: a suposta existência de Deus é muito útil para quem pretende exercer poder sobre seus semelhantes. O ponto G só serve para diminuir mulheres que nele acreditam mas não conseguem achá-lo.

O estudo foi feito entre 1804 mulheres, todas gêmeas, de idade entre 23 a 83 anos. Partindo do princípio de que gêmeas têm um mesmo DNA, os dois pesquisadores tentaram mostrar que não era normal que certas mulheres tivessem um ponto G e não suas irmãs. “Se o ponto G existisse, cada gêmea teria um, não é verdade?” Falso – respondem outros médicos -. As gêmeas geralmente não têm o mesmo parceiro sexual.

Argumento frágil, o destes outros médicos. É como afirmar que o ponto G não está na mulher, mas depende do parceiro. Nos anos 50, Simone de Beauvoir brandiu um argumento que empestou o feminismo durante décadas: não se nasce mulher, torna-se mulher. A sexóloga Beverly Whipple, responsável pela popularização do ponto G em 1981, retoma la Beauvoir: “Ninguém nasce com um ponto G. Encontra-se”.

Como o orgasmo, o prazer propiciado pelo ponto G seria fruto de um treinamento, de uma progressiva educação do corpo e, sobretudo... do azar. “Você pode encontrá-lo tateando. Você pode aumentar sua potência e executá-lo como a um instrumento. É como na loteria. Nem todas as mulheres o têm. Algumas o encontram em idade avançada. Outras têm a sorte de pôr o dedo em cima rapidamente”. O que me lembra o paradoxo do gato de Schrödinger, que existe e não existe ao mesmo tempo.

A articulista prossegue, furiosa: “O corpo humano é tão cambiante que basta às vezes uma carícia inédita, de um(a) novo(a) parceiro(a), de uma mudança do regime alimentar ou de uma maternidade, para colocar bruscamente em tensão partes do corpo que até ali pareciam apenas mediocremente providas de nervos... Cada centímetro de pele esconde tesouros de sensações. Por que então, nestas condições, lançar-se em um estudo assim absurdo que consiste em afirmar que um lugar do corpo não é erógeno enquanto todos os outros o são, potencialmente?”. O que a autora afirma confirma minha intuição inicial. Como Deus, o ponto G está em todas as partes.

Ela insiste: “Para apreciar o vinho, certas pessoas treinam suas papilas a distinguir cada aroma. Para distinguir e memorizar os perfumes, outras participam de concursos de incenso. Aguçamos nosso olfato, como aguçamos outras sensações... provenham elas de mucosas ou não. É provavelmente aqui que falha o estudo britânico. Negando a existência do ponto G, os cientistas afirmam que liberam as mulheres (e os homens) de uma carga muito pesada de portar. Eles se equivocam.

Aqueles e aquelas que se queixam do diktat do prazer seriam bem mais aliviados ao saber que não existem um, mas centenas de pontos G, de receptores capazes de transformar os sons, as carícias, os odores, as palavras, as cores, ou os sinais químicos em tantos outros estímulos afrodisíacos. Por que circunscrever as zonas erógenas, reduzi-las a alguns dados médicos (corpúsculos de Krause, glandes de Skene, que sei eu), com esta maldita mania de objetividade?”.

Já melhorou. Neste sentido, tanto o os olhos como os ouvidos podem ser pontos G. Por que então situá-lo na vagina? É espantoso como as coisas que não existem se parecem. A moça fala em vinho e perfumes. Ora, o vinho tem consistência, tem cor, tem sabor. O perfume tem consistência, tem odor. Deus e o ponto G jamais foram vistos, não têm consistência alguma, cor muito menos, sabor nenhum, odor idem.

“Deus existe, eu O encontrei” – este é o título de um livro no qual André Frossard, editor chefe durante várias décadas do diário Le Figaro, no qual o jornalista conta sua experiência de fé. Certa vez entrou em um lugar onde alguns cristãos estavam reunidos, sendo ele incrédulo e livre-pensador, e saiu um momento mais tarde como cristão convertido. Jamais ouvi de uma mulher: “O ponto G existe, eu o encontrei”. Deus só existe na cabeça dos teólogos. E o ponto G, no bestunto dos sexólogos.

É de espantar o empenho com que o Libération, em plena França do século XXI, se lança em defesa de uma ficção de sexólogos.

Verdade que a imprensa, por mais lúcida que se pretenda, sempre acaba caindo em contos semelhantes. Em 1983, a Veja endossou como verdade científica uma brincadeira de 1º de abril, lançada pela revista inglesa New Science. Tratava-se de uma nova conquista científica, um fruto de carne, derivado da fusão da carne do boi e do tomate, que recebeu o nome de boimate. Se a editoria de ciências de Veja visse esta notícia num jornal brasileiro, evidentemente ficaria com um pé atrás. Para a revista, a experiência dos pesquisadores alemães permitia "sonhar com um tomate do qual já se colha algo parecido com um filé ao molho de tomate. E abre uma nova fronteira científica".

Isso que a New Science dava uma série de pistas para evidenciar a piada: os biólogos Barry McDonald e William Wimpey tinham esses nomes para lembrar as cadeias internacionais de alimentação McDonald´s e Wimpy´s. A Universidade de Hamburgo, palco do "grande fato", foi citada para que pudesse ser cotejada com hambúrguer. Os alertas de nada adiantaram. Como se tratava de uma prestigiosa publicação européia, a Veja embarcou com entusiasmo na piada.

Em 1988, foi a vez de uma prestigiosa revista científica de língua inglesa, a Nature, cair em barriga semelhante. Desta vez, a barriga não decorria de uma piada, mas de um embuste mesmo. Jacques Benveniste, doutor em medicina e diretor de pesquisas do Inserm, na França, criou a exótica teoria da memória da água. Isto é, a água conservaria na memória as moléculas de base com as quais havia sido colocada anteriormente em contato. A quem interessava o crime? Aos homeopatas, que se regozijaram ao supor que finalmente tinham a prova indiscutível de que a homeopatia era ciência. A memória da água fez longa carreira, mobilizou prêmios Nobel e laboratórios na Europa toda. O sóbrio Le Monde caiu como um patinho recém-emplumado, concedendo várias páginas ao embuste.

A ficção da vez agora é outra. Deus morreu, o muro de Berlim já caiu, o comunismo desmoronou, a União Soviética ruiu. O ponto G continua em pé.


01 de junho de 2013
janer cristaldo

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