"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



terça-feira, 23 de julho de 2013

AS CRIANCINHAS AFRICANAS

           
          Artigos - Cultura 
The law of unintended consequences is stronger than the most absolute power.Theodore Dalrymple
 

REPARO NUM FENÔMENO interessante: nossos jovens idealistas preocupam-se com as criancinhas africanas. Com os velhinhos africanos. Com as mulheres africanas. E, vá lá, até mesmo com alguns daqueles homens africanos com cara de quem não comeu e, por isso mesmo, não gostou.
 
Vieram-me dois amigos, com alguma gravidade e indisfarçável orgulho, trazer as boas novas: vão meter caras em África. Vão ajudar aquele povo faminto e sofrido. Um, há de se tornar médico e embarcar imediatamente (ou seja, na mais razoável das hipóteses, em dez anos); a outra pretende ingressar numa missão de paz qualquer, e levar aos africanos as coisas todas de que precisam. Presumo que já tenha comprado alguns espelhinhos.
 
Ouço tudo isso com atenção e não posso deixar de apreciar o gesto. Aprecio a generosidade alegada, evidentemente, desses e de outros jovens. É sempre bom desligar o computador por algumas horinhas e perceber que há mundo objetivo aí fora. Mas tenho minhas ressalvas.
 
Sempre achei engraçado esse idealismo a longas distâncias. Pretende-se fazer longe, a milhares de quilômetros, aquilo que não se faz a duzentos metros. Esbanja-se um heroísmo de grandes feitos em lugar da possibilidade imediata de auxílio. O jovenzinho esquerdista pretende uma abnegação digna de Gandhi, mas não junta coragem suficiente para deixar passar a cerveja de um fim de semana.
 
E o fato é que eu não sei se eles sabem o que toda a gente sabe, mas de Bono Vox a Sharon Stone, de Paulo Coelho a Bill Gates, do Live Aid à Cruz Vermelha Internacional, todos se preocupam com as criancinhas africanas. São tantas boas intenções que não pode haver tantas boas intenções assim. Angelina Jolie se importa tanto que, sazonalmente, carrega com ela algum souvenir.
 
Ao longo de décadas, bilhões de dólares foram despejados no continente e, salvo engano, foram parar, em sua maior parte, nas mãos dos admiráveis ditadores de seus respectivos países. Com isso não quero dizer que se deixe de ajudar os países africanos, e há centenas de pessoas trabalhando anonimamente, com verdadeiro espírito de entrega e serviço, que merecem nossa mais entusiástica admiração. Quero dizer que as coisas são muito menos simples do que parecem. Generosidade, apenas, não resolve o problema, ainda que aplaque a consciência de cantores de rock.
 
Porque não é de cantores, de atrizes, de escritores que a África precisa. Muito menos de um imenso, de um inesgotável bolsa-família. Não posso acreditar que, passados tantos anos, enviado tanto dinheiro, ninguém ainda tenha percebido que esse, definitivamente, não é o problema. O problema da África são os africanos. Cruel?
 
Não, não é cruel. Não são os famintos, os culpados. Mas seus líderes, seus ditadores, seus chefes tribais, suas juntas militares, suas guerrilhas. As instituições ocidentais simplesmente não deram as caras por lá – razões históricas e geopolíticas complexas demais talvez expliquem o fenômeno – e, gostemos ou não de admitir, mesmo com os defeitos que obviamente temos, creio termos chegado mais perto de alguma coisa que vaga e equivocamente podemos chamar de civilização.
 
E é isso o que falta àquele continente. Eles não precisam de mais ONGs, de mais dinheiro, de mais fotos sempre tão kitsch do Sebastião Salgado: eles precisam é de capitalismo. ‘Selvagens’ eles já são. Estão cansados de sê-lo. Eles carecem de tudo aquilo que nos sobra – crises à parte – e de que estamos enojados. Eles precisam de uma classe média fascista e ignorante.
De empresários inescrupulosos. De instituições sólidas o suficiente para que possam ter, como assunto de grave importância a ser discutido na hora do almoço (que também teriam), se as instituições não serão por demais duras – e, portanto, intolerantes – com os nunca assaz satisfeitos grupos de gays, de feministas, de ecologistas, de ciclistas, de chauís e de pintainhos. Eles merecem o privilégio de uma desigualdade tamanha, no ótimo sentido a que estamos habituados, para que sakamotinhos também nasçam por lá.
 
Vale a pena ser missionário em África? Enquanto houver Bono Vox com a sua cantoria afetada, cheia de boas intenções e estupidez política; enquanto houver a exemplar Jolie fazendo as compras de fim de ano; e enquanto faltar hambúrgueres e refrigerantes, sempre valerá a pena que missionários aportem no continente. Mas não é só de santos e de abnegados que se fazem os países. A África também precisa conhecer a venerável figura de Ronald MacDonald.
 
23 de julho de 2013
Gustavo Nogy  
Publicado no site Ad Hominem.

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