"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



domingo, 28 de julho de 2013

TURISMO LITERÁRIO SE DEMOCRATIZA


Há dois dias, comentei o tal de Dia do Escritor, data tão vazia que passou despercebida. O personagem já foi em prosa e verso louvado ... pelos próprios escritores, é claro. Hoje, só chama a atenção de alguns gatos pingados. Pois o escritor, antes tido como uma espécie de farol da humanidade, vendeu-se, prostituiu-se, vulgarizou-se. Y a las pruebas me remito.

Há seis anos, uma dúzia e meia de malandros desejosos de conhecer o mundo a custas do Estado, reuniu-se em um projeto intitulado Amores Expressos, elaborou um ambicioso plano de turismo e tentou passar a conta ao contribuinte. Na ocasião, comentei a maracutaia na crônica que segue abaixo.

Dia seguinte, de Rodrigo Teixeira, o mentor das prostitutas, recebi o mail abaixo. Transcrevo, como recebi, com o português ilibado do condutor de escritores:

- Para seu conhecimento, quem está pagando pela estadia dos autores sou eu Rodrigo Teixeira. para seu conhecimento investi dinheiro meu e não publico e nem menos captado via leis de incentivo em um filme que está dando o que falar pelo seu resultado artistico e qualidade chamado Cheiro do Ralo, eu invisto em cultura, do meu bolso eu me arrisco e não consigo entender as suas acusações, leia a matéria da Folha de sabado, e quer saber projeto malandro (onde?) não existe aprovação, enfiando as mãos em dinheiro publico onde? prove que faço mau uso ou que no momento estou fazendo.

Um desmemoriado, o Rodrigo. Na Folha de São Paulo do sábado anterior, lá estava:

"O projeto, idealizado pelo produtor Rodrigo Teixeira e pelo escritor João Paulo Cuenca, tem um custo total de R$ 1,2 milhão e pleiteia verba de renúncia fiscal. Por enquanto, o processo ainda está em tramitação no Ministério da Cultura. Se a grana de incentivo não rolar, Teixeira diz que pagará do próprio bolso as viagens dos autores".

Seis anos depois, a maracutaia volta às manchetes. Leio na Folha de hoje:

Amor por encomenda

"Nem tanto amor, nem tão expresso. Mesmo com problemas, o projeto literário Amores Expressos, que levou há seis anos 17 escritores brasileiros a 17 cidades do mundo para que escrevessem histórias de amor, ainda rende rebentos. E uma "DR": obra de encomenda é arte menor?

"Mais dois livros da coleção acabam de chegar às livrarias: "Ithaca Road", de Paulo Scott, e "Digam a Satã que o Recado Foi Entendido", do colunista da Folha Daniel Pellizzari. O próximo, "Barreira", de Amilcar Bettega, será lançado no começo de agosto. Com esses, a série chega a dez livros publicados pela Companhia das Letras, editora oficial do projeto. Dos sete restantes, um foi recusado pela Companhia e saiu pela Rocco; outro, também recusado, está em negociação com outras editoras; e cinco estão sendo reescritos ou revisados, sem previsão de lançamento. (...) A possibilidade de financiamento público despertou a ira de escritores e blogueiros, que criticaram ainda a temática e o critério de escolha dos autores, que teria privilegiado amigos de Teixeira e do escritor João Paulo Cuenca, também idealizador da série”.

O problema parece ter sido o pequeno número de eleitos. Fosse o projeto mais abrangente, seria defendido com unhas e dentes pela guilda. Não é justo que apenas uma dúzia e meia de amigos do Rei saiam a gozar as delícias deste vasto mundo, quando todos delas querem usufruir.

O generoso mecenas não conseguiu enfiar a mão no bolso dos contribuintes. Pelo menos por enquanto. “Com a polêmica, Teixeira desistiu das leis de incentivo e, com dois sócios, financiou o projeto, reduzido a R$ 560 mil”.

Do que – permita—me o mecenas – muito duvido. Ninguém tira do bolso 560 mil para investir em um delírio fadado ao fracasso. Só louco rasga dinheiro e o benemérito incentivador das Letras de louco nada parece ter. De qualquer forma, Rodrigo ainda tem chances. Em troca, teria o direito de adaptar os romances para o cinema. Teríamos uma bela safra no glorioso cinema nacional, nada menos que 17 filmes.

Rodados a partir de histórias sem nexo de escritores desconhecidos. Mas algum leitor viu cineasta investir dinheiro próprio no cinema? Isto não existe no Brasil. Desta vez, lei Rouanet na certa. Se você, leitor, foi poupado em 2006, caso o projeto chegue a seus fins, agora você marcha, inexoravelmente.

Encomenda travou escritores da coleção – diz a Folha em manchete. “O tema fechado inibiu a imaginação e atrasou conclusão das histórias, dizem autores do projeto Amores Expressos (...) Crises de inspiração, acúmulo de trabalho e dificuldade em lidar com o tema da série partiram o coração de muitos escritores do projeto”.

O redator está sendo gentil. O projeto não era literário, mas turístico. É preciso ser estrangeiro ao mundo das Letras para imaginar que basta enviar um escrevinhador para um país que não conhece e cuja língua nem entende, para daí produzir um romance.

Reinaldo Moraes, que foi fazer turismo na Cidade do México no final de 2007, voltou de mãos vazias. "Esse negócio de livro de encomenda não deu certo para mim. Queria fazer um thriller simples, mas me enrolei com a genealogia do protagonista. Já estava com umas 200 páginas escritas e ele ainda não tinha chegado ao México."

Idem Lourenço Mutarelli. Concluiu seu livro sobre Nova York no começo de 2009, mas a Companhia das Letras – cúmplice da maracutaia - fez uma série de restrições. "Mas o romance era muito ruim mesmo, acabei concordado com eles", diz.

Antonio Prata – que em 2002 viu um Potosí a céu aberto no bolso do contribuinte e pedia ao governo uma carteirinha de escritor – também deu com os burros n’água. Suas vilegiaturas em Xangai deram em nada. "A dificuldade é uma questão inerente à escrita. A produção de um romance é sempre difícil, demorada, independentemente de ser encomenda ou não", argumenta.

Antonia Pellegrino foi para Bombaim em setembro de 2007. Nada feito. Adriana Lisboa foi contemplada com Paris, a pérola da coroa. Mas deparou-se com uma "questão estrutural quase insolúvel". O romance seria inspirado em uma história real, e a escritora não sabe se deixa isso explícito logo no início do livro ou não.

O turismo literário está se democratizando. Se antes era privilégio da universidade, agora se estende a escritores. Não bastasse já viverem de favores do Estado, exigem agora viagens a países distantes. Se voltam de mãos abanando, tanto faz como tanto fez. Ninguém vai cobrar mesmo.


28 de julho de 2013
janer cristaldo
 

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