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Na prática, não é preciso suprimir uma informação que se queira suprimida. Basta que produzamos centenas de milhares de ruídos, e a verdade acaba esmagada e insignificante, sob o peso de milhões de nano-Goebbels geradores de, aspas, conteúdo.
“LULA MORREU”. Vou conferir a notícia e, sigh!, Lula não morreu. Nem mesmo “esteve ontem” no Sírio-Libanês. Para alegria de muitos e desespero de tantos outros, ele continua entre nós e deve contribuir sobremaneira para a reeleição do títere que ora nos preside. (Quem morreu parece ter sido o José Serra, mas isso são histórias outras).
Nelson Mandela morre dia sim, dia não, há pelo menos dois meses. Eu chorei sua morte ao menos cinco vezes, e ele, que nunca foi exatamente santo – amistosas atividades antes da “canonização” política não me deixam mentir – prossegue, vivo e são, até sua próxima morte em data a ser acordada. E basta trocar os nomes – de Nelson Mandela por Sílvio Santos – que tudo se passa da mesma maneira.
Outra publicação me avisa que “Papa Francisco suspende a excomunhão do padre Beto”, aquele homossexual (confere?) disfarçado de sacerdote. E lá vou eu gastar dois minutos da minha vida para confirmar que não, a excomunhão não foi suspensa coisíssima nenhuma, e tudo não passa de mais um conto ilustrado com a foto do saudoso e nunca assaz louvado Sérgio Malandro.
Dois minutos para conferir a bobagem e mais dez para prevenir três ou quatro amigos da mentira.
Meses atrás, Helena Ramirez, histórica líder do movimento feminista no Brasil, teria deixado a audiência da TV Globo estarrecida, ao declarar no programa do humorista Jô Soares que “mulher que se submete a fazer sexo na vexatória posição ‘de quatro’ está jogando no lixo as décadas de luta das mulheres conscientes”. Certas posições sexuais não seriam dignas da fêmea contemporânea e bípede. Polêmica.
Consternação nas redes sociais. Feministas libertárias criticam a feminista puritana, e a feminista puritana criticaria as feministas libertárias, tenho certeza. Se existisse.
Ocorre que não houve entrevista polêmica, Helena Ramirez é personagem tão histórica quanto a inteligência do Emir Sader e, pensando bem, aquele pernóstico também não é entrevistador, e a audiência da TV Globo não fica impressionada com porcaria alguma, há muito tempo. Mas o boato imita a vida (as senhoras e senhoritas estejam avisadas que, até segunda ordem, a posição em questão está liberada). Hoje, uma mentira contada uma única vez já se torna verdade sacrossanta e virtualmente indesmentível.
Ainda na semana passada circulava um escabroso post que mostrava chineses comendo (literalmente) criancinhas no jantar. Era picadinho de criança com batatas, criança ao molho madeira, criança-atolada.
O mundo ficou horrorizado com os chineses e os chineses responderam ao mundo (em chinês), e ninguém entendeu nada. Mas há um problema: não que os chineses sejam incapazes disso (sorry, chineses), mas o escândalo é escandalosamente falso. Eles preferem cachorros.
Pedro Doria, n’O Globo, comenta de forma bastante pertinente o fenômeno:
Quando se discute uma guerra entre a nova e a velha mídia, o argumento está deslocado. Esta é uma discussão de todo irrelevante. Tenta trazer, para o centro da conversa, a tecnologia na qual cada um se baseia. Para o jornalismo, o que importa não é o meio utilizado para veicular informação, não é a idade de quem o pratica, ou mesmo a origem profissional. O que importa é apenas o jornalismo.
O entusiasmo pelo advento da internet e pelas liberdades quase ilimitadas que ela promove deve ser temperado, mais do que nunca, com doses generosas de prudência e seriedade. Ler e ler novamente. Cruzar as fontes. E ler ainda uma vez mais.
Se o jornalismo tradicional nunca foi das atividades mais confiáveis – em virtude das preferências ideológicas, das urgências da profissão, das pressões ora econômicas, ora estatais que a mídia mainstream sofre e exerce –, isso não há de ser diferente na mídia heterodoxa, independente e colaborativa.
O caso do coletivo Fora do Eixo (Mídia Ninja) é exemplar. Alguns militantes nas ruas, câmeras nas mãos e falta de idéias na cabeça. Pablo Capilé, um dos mentores da trupe, fez fama e fortuna com esse jornalismo-verdade – que de verdade não tem rigorosamente nada, e de jornalismo tem o pior.
O fato é que nunca a verdade (sai pra lá com seu Pilatos interior!) esteve tão exposta e, a um só tempo, tão escondida sob pilhas de mentiras virtuais. Andrew Keen, em seu livro O Culto do Amador (recomendo), questiona a liberalidade com que despejamos bobagens na rede, anonimamente. Ele é bastante pessimista. Eu sou menos pessimista. Mas temos inegavelmente um problema.
Na prática, não é preciso suprimir uma informação que se queira suprimida. Basta que produzamos centenas de milhares de ruídos, e a verdade acaba esmagada e insignificante, sob o peso de milhões de nano-Goebbels geradores de, aspas, conteúdo. O maior problema é que a irresponsabilidade de muitos arruaceiros virtuais termine por justificar a sanha autoritária dos nossos legisladores.
Dizer a verdade – ou, no mínimo, ter o cuidado de distinguir entre uma informação e um hoax – é, mais do que civilizado, uma justificativa para manter os burocratas longe de nós.
A propósito: Oscar Niemeyer, aparentemente, morreu. Mas se me contassem que tudo não passou de uma brincadeira, eu acreditaria piamente. Sem conferir.
Publicado no blog Ad Hominem.
15 de agosto de 2013
Gustavo Nogy
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