Estas histórias são aquelas que os cães contam quando as chamas das fogueiras sobem alto e o vento norte sopra. Então, os círculos familiares reúnem-se cada um em torno da sua lareira, e os cachorros sentam-se em silêncio e escutam. Quando a história chega ao fim fazem muitas perguntas:
- O que é o homem?
Ou talvez:
- O que é uma cidade?
Ou ainda:
- Que é uma guerra?
Não há nenhuma resposta concreta para qualquer destas perguntas. Há suposições, teorias e muitas hipóteses, mas respostas, não.
Trecho de City, de Clifford Simak, traduzido ao português como As Cidades Mortas. A Humanidade decide deixar a Terra, desistir da sua forma humana e viver transformada em uma espécie de lagarto na superfície de Júpiter, recuperando assim a felicidade de uma vida simples. O que sobrou dos humanos vai morrendo aos poucos.
Apanho uma sinopse na rede. Dez mil anos depois, a civilização canina se espalhara por toda a Terra, incluindo o resto dos animais que, pouco a pouco, foram incluídos pelos cães na sua civilização. Todos eles são muito inteligentes, e tinham sido assim durante todo o tempo, embora os seres humanos não tenham sido capazes de perceber isso. Esta civilização é pacifista e vegetariana. Nesta ficção, os narradores são cães, que formam uma sociedade pacífica, e regularmente contam as velhas lendas sobre sua origem para seus filhotes. A lenda que mais os intriga é aquela que fala de uma criatura conhecida como ”homem”.
Fosse eu concluir a narrativa de Simak, passaria a palavra ao pitbull decano dos historiadores caninos.
- Os homens, pelo que sabemos a partir da arqueologia, constituem uma raça patética, com muita vontade de acertar, é verdade, mas sempre com resultados desastrosos. Durante séculos, conviveram com a mais nobre das espécies, a canina. Até surgir a era simbiótica, quando os cães foram escravizados e utilizados para o trabalho, caça, defesa e mesmo lazer. Nossos antepassados, sem consciência de classe ou raça, aceitaram docilmente esta condição. Foi um humano, Bruce Webster, quem nos forneceu cirurgicamente um mecanismo para a fala e uma visão aperfeiçoada. Conquistada a fala, conquistamos nossos direitos, ignorados durante milênios pelos humanos. Nosso tipo de inteligência e raciocínio nos levou a pensar de forma diferente do homem, abrindo caminho para uma nova evolução.
- Naquela época de trevas, chegamos a ser vistos como inimigos dos humanos. Um obscuro líder religioso, de nome Maomé, decretou nossa morte. Os árabes nos consideravam impuros porque, em épocas de crise, comíamos restos e carniça. Entre eles, durante muito tempo causou espécie o hábito ocidental de dar nome a cães. Quando queriam insultar alguém, chamavam-no de “cão infiel”. Pediram nossa expulsão de várias cidades da Europa, onde tínhamos conquistado considerável status. Pior que ser cachorro, era ser cachorro preto. Se alguma misericórdia podia ser concedida aos cães, aos cães pretos misericórdia alguma era permissível. Tinham de ser mortos, prioritariamente. Na dita cultura ocidental, vivemos no entanto bom momentos.
- Ocupamos espaço em disciplinas que os humanos chamavam de arte e poesia, ganhamos monumentos e túmulos. Nos instalamos na mitologia e na literatura. No final do século XX, conseguimos desbancar os humanos na simpatia dos humanos. Parece que, decepcionados com o comportamento de seus semelhantes, passaram a nos dedicar mais estima do que a eles próprios. Nossa estratégia foi simples: bastava abanarmos o rabo quando nos afagavam. Os humanos, quando afagados, muitas vezes reagiam com violência.
- Passamos então a gozar de privilégios antes só concedidos a humanos: culinária especial, hotéis, institutos de beleza, médicos especializados, psicanalistas e cuidados hospitalares. Éramos submetidos a tomografias computadorizadas e ressonância magnética, ao mesmo título que os humanos. Não mais comíamos restos de cozinha, mas chefs tratavam de nossos estômagos. Não poucos humanos morriam nas ruas de doenças decorrentes da indigência e da fome, mas a nós, caninos, nunca faltaram cuidados. Passamos a ser sujeitos das legislações. Abandonar uma criança era crime tolerado. Abandonar um canino, crime hediondo.
- No início do século XXI, alguns milênios antes do desaparecimento da raça humana, um fugaz fenômeno entusiasmou nossos antigos senhores, a Internet, uma rede eletrônica de comunicação que pretendia aproximar os humanos de si mesmo. O resultado foi paradoxal: afastou-os uns dos outros e aproximou-os ... dos cães. A morte de um canino passou a ser mais chorada que a de um humano. Fêmeas humanas sem filhotes passaram a adotar os nossos. Nosso padrão de vida subiu consideravelmente, muito além do padrão gozado por milhões de humanos no planeta. Os caninos tornaram-se o centro das atenções humanas, em detrimento do próprio ser humano. Havia inclusive mulheres que renunciavam a viagens e visitas a amigos para não ter de abandonar seus entes queridos.
- Alguns espécimes de nossa raça andaram, é verdade, em momentos de desequilíbrio emotivo, estraçalhando e mesmo comendo alguns humanos, preferentemente seus filhotes. Curiosamente, humano algum condenou estes ocasionais exageros. Pelo contrário, reuniam-se em redes sociais para condenar qualquer agressão humana, por mínima que fosse, a nossos semelhantes.
- Viciados por um maniqueísmo ancestral, os humanos nos dividiram em duas facções antagônicas, os cães do bem e os cães do mal. Por cães do bem, entendiam-se aqueles cãezinhos fofos e frágeis, que substituíam amigos e filhos para mulheres carentes. Os machos humanos eram de difícil trato, não se deixavam manipular nem domesticar. Os cãezinhos fofos e frágeis também tinham suas idiossincrasias, mas sabiam fingir docilidade. Na hora de passear pelas cidades, eram eles que decidiam seus rumos e arrastavam, altaneiros, seus donos pelas cordas que os conduziam. Sem nada exigir, impunham horários e ritmos de vida àqueles que julgavam controlá-los.
- Já os mais dotados e valentes de nossa raça, pitbulls, buldogs, schäferhunds, rotweillers, filas, fomos ostracizados e jogados nas hostes dos cães do mal. Só porque temos boas presas, fomos comparados a facínoras armados, motoristas bêbados, assassinos inveterados. Nossas raças passaram a carregar os estigmas de grupos religiosos extremados da época. Se um crente do Islã – religião que dominou o planeta antes que os humanos o abandonassem - em um momento de desvario, matava três ou quatro mil pessoas, todos os demais islamitas era responsabilizados. Só porque algum pitbull, cá e lá, matou um humano, nossa estirpe toda foi estigmatizada. Não éramos mais cães. Passamos a ser feras. E como todas as feras, imprevisíveis, capazes de atacar pessoas e feri-las.
- Um episódio já quase esquecido pelos séculos serviu para resgatar nossa dignidade. Ocorreu nos primeiros lustros do XXI. Em uma capital de um ignoto país chamado Rio Grande do Sul – Porto Alegre, ou talvez Pouso Alegre, conforme os historiadores – um dos nossos morreu como mártir em um campus universitário. Dada nossa má reputação histórica, éramos obrigados por lei a portar focinheiras, enforcadores e guias. Uma pitbull, que passeava pelo gramado desprovida destes freios, foi mal interpretada quando dirigiu-se, um pouco entusiasticamente, a um vigia da universidade. Que a fuzilou sumariamente.
- O caso invadiu as ditas redes sociais. Humanas que jamais moveram um dedo em defesa de seus semelhantes, tomaram as dores de nossa mártir. Na época, minorias raciais, religiosas ou eróticas eram perseguidas por espécimes de outras raças, crenças ou preferências sexuais. Estes sentimentos tomaram denominações diversas, tais como preconceito, homofobia, xenofobia, islamofobia. Na hoje extinta Porto Alegre, ocorreu naqueles dias a percepção que tais sentimentos não se dirigiam apenas aos humanos, mas também aos caninos. Uma evidente pitbullfobia era alimentada pelos humanos extremados.
- Do episódio de Porto Alegre resultaram as leis antipitbullfobia, vigentes durante cerca de um milênio, último resquício de dignidade dos humanos antes de seu desaparecimento da face da terra.
11 de abril de 2012
janer cristaldo
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