A estação de Ludmila
MOSCOU – Ludmila era interprete, jovem e bela. Falava espanhol e português, no Festival Mundial da Juventude, aqui em Moscou, em 1957. Tinha uma mãe em Moscou, um irmão em Praga e um avô no Cáucaso.
Acabado o Festival, onde a havia visto umas três vezes, mas muito rapidamente, destacaram-na para acompanhar-me como tradutora em debates e palestras em Moscou, na Universidade da Amizade dos Povos . No fim dos debates, almoçávamos ou jantávamos juntos. Cada dia mais debates, cada dia mais juntos. Falávamos de tudo, sobretudo de nós, que tínhamos exatamente os mesmos 25 anos e os mesmos sonhos. Quando eu passava para a política soviética, ela sorria um sorriso enigmático e calava. Estava profissionalmente impedida de avançar o sinal politico. Ela não avançava, avancei eu.
Já me desmanchando de encantos, depois de um doce jantar no restaurante do hotel “Ukraina”, para onde me transferiram depois do Festival, porque o hotel Zariá estava ocupado pelos estudantes da Universidade, pedi ao garçon duas vodcas e um bloco.
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PAPOULAS
Escrevi ali um poema, se é que podia chamar de poema. Era um beijo gráfico, quente e túmido como os beijos de amor : “Rosa de Moscou”. Falava dos jardins de papoulas que cobriam Moscou naquele outono: – “Papoula / flor do ópio / flor do amor / embriagas os deuses / mas nada / embriaga tanto / quanto / a rosa de Moscou”. Ficou com ela, não lembro o resto. Pediu para eu assinar, assinei : – “Para Ludmila, minha Rosa de Moscou”.
Ela não podia subir a meu apartamento, eu não podia ir à casa da mãe dela e dela. Mas nunca mais fomos os mesmos.
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STALIN
Numa outra noite mágica, caminhando depois do jantar no jardim de papoulas perto do hotel, Ludmila começou a cantar “Móscova Vétchera” (“Tardes de Moscou”) e pela primeira vez me levou à sua casa. O avô estava doente, sua mãe fôra para o Cáucaso. A casa, nos subúrbios de Moscou, pequena e ajardinada, era nossa para o fim de semana. E de metrô. Na sala, emoldurado e pendurado, meu “Rosa de Moscou” para ela. Ludmila não falava do pai. Eu perguntava, ela ficava calada, os grandes olhos caucasianos parados, longe. Insisti, disse apenas:
- Morreu. Era jornalista, como você.
E chorou devagarinho. De madrugada, já quietos de amor, forcei : – Seu pai morreu de que?
Ludmila passou a mão embaixo do queixo, como se fosse uma navalha, fez uma cara de horror e disse baixinho : – Stalin.
E dormiu chorando em meus braços a saudade do pai assassinado por Stalin. As lagrimas de Ludmila lavaram o que me restava de comunismo.
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O TREM
No fim de semana em Moscou, voltamos à casinha pequena e ajardinada. Pela terceira vez. O avô de Ludmila nunca mais voltou do Cáucaso. Morreu lá, sem ela revê-lo. Prometi jamais escrever-lhe nem falar em seu nome no que escrevesse ou publicasse. Perderia emprego, carreira, quem sabe a liberdade. Guardei minha “Rosa de Moscou” só para mim. Quando Ludmila apareceu no hotel de manhã, com o bilhete na mão, para levar-me até a estação ferroviária, meu coração vacilou. Sabia que ia perdâ-la para sempre. Aquele era um mundo que engolia as pessoas. Como poderia dar-lhe um beijo de despedida? Queria, mas não devia. Percebeu:
- Não fique triste assim, que ainda vai ser pior para mim do que já é. Não falta muito para eu perder você. Nunca pensei que aquele jantar, aquele poema, aquelas noites, fossem fazer comigo o que fizeram. Se eu pudesse, sumiria com você. Mas não vamos estragar nosso ultimo almoço. Marquei seu trem para o fim da tarde. Vamos almoçar em um restaurante pequeno, muito bonitinho, perto da ferroviária. Juro que não vou chorar.
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O BEIJO
E chorou. No fim, brindamos nossa devastadora e silenciosa dor como Stalin brindava com Churchill. Com um conhaque da Geórgia. Quando o trem deu o segundo aviso de partida, fraquejei : – Perdão, não resisto, vou lhe dar um beijo.
- Dê, meu amor, mas rápido. Aqui há olhos de todo lado.
Nunca mais a vi. Em 1990, Adido Cultural em Paris, vim a Moscou para tentar descobri-la. Impossível. Cada esquina continuou uma fantasia. Um pedaço de mim está até hoje naquela estação de Ludmila.
05 de abril de 2012
Sebastião Nery
Um painel político do momento histórico em que vivem o país e o mundo. Pretende ser um observatório dos principais acontecimentos que dominam o cenário político nacional e internacional, e um canal de denúncias da corrupção e da violência, que afrontam a cidadania. Este não é um blog partidário, visto que partidos não representam idéias, mas interesses de grupos, e servem apenas para encobrir o oportunismo político de bandidos. Não obstante, seguimos o caminho da direita. Semitam rectam.
"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)
"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)
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