Nas democracias dá-se o contrário do que acontece no mundo físico: pra cima todo santo ajuda; pra baixo a coisa toda muda.
Fernando Henrique Cardoso sintetizou a coisa de modo brilhantemente sucinto e preciso quando disse que "Política é a arte do possível".
No seu artigo de domingo para O Estado de S. Paulo o ex-presidente do Banco Central, Pedro Malan, citando Raghuram Rajan no livro Linhas de Falha que acaba de ser lançado no Brasil (aqui), explicou com mais minúcia quais são as pedras desse caminho.
"Governos democráticos não são programados para pensar em ações que têm custos a curto prazo, mas que produzem ganhos a longo prazo - que é o típico padrão de retorno de qualquer investimento. Que por vezes governos façam estes investimentos é uma consequência ou de uma liderança incomumente corajosa ou de um eleitorado que compreende os custos de adiar escolhas difíceis. Liderança corajosa é coisa rara. Mas também é raro um eleitorado informado e comprometido, porque os próprios especialistas são muito confusos... o debate não leva a um consenso, os moderados dentre o eleitorado não sabem bem no que acreditar, e o resultado é que as escolhas de políticas seguem o caminho de menor desconforto - até que a situação se torne insustentável.
(O problema é que) as democracias são necessariamente generosas, enquanto que os mercados e a natureza não são (...) Enquanto os políticos hesitam em empreender ações dolorosas mas necessárias (...) os problemas se agravam e se tornam mais difíceis de resolver".
É sobre o fio dessa navalha que caminham neste momento França e Alemanha, enquanto a Grécia chacoalha a lâmina tornando o equilíbrio ainda mais difícil.
A Europa estrebucha. E os Estados Unidos desfrutam de uma ainda incerta "visita da saúde". Mas os dois estão longe da cura.
Não se deram conta sequer da verdadeira natureza da doença que os afeta.
Eventualmente, depois que se cansarem de chorar a perda de seus privilégios, eles despertarão para a realidade de que, num mercado de trabalho que a internet tornou planetário, o único tratamento eficaz contra a perda de salários e direitos no Ocidente é promover o rápido aumento de salários e direitos no Oriente, e que deixar de consumir avidamente as venenosas "pechinchas" produzidas daquele lado do mundo com trabalho escravo é o mais poderoso remédio contra esse mal.
Até lá, será preciso seguir tomando um coquetel de paliativos para prolongar a vida democrática ao longo do percurso ladeira abaixo, que inclui três tipos de ingredientes milimetricamente dosados: ação "aritmética" para fazer com que o buraco entre os gastos e os ganhos não continue se aprofundando, anestesias políticas para que a ingestão do remédio seja suportável e tempo para que o paciente chegue vivo ao momento da descoberta da verdadeira cura.
E como o campo da realidade oferece pouca margem de manobra, é no território do discurso, por enquanto inteiramente tomado pelos charlatões vendendo remédios milagrosos, que essa parada será decidida.
Como sempre acontece nessas horas, a função da imprensa e da academia são decisivas. E o que se viu até o momento da participação de ambas indica que elas têm sido mais parte do problema que veículos para a solução. Descrever a crise européia com o discurso maniqueísta do século passado não é só um anacronismo irresponsável. É uma temeridade criminosa.
É preciso começar já a instilar doses crescentes de realismo nesse debate para preparar a Europa para sair da paralisia que pode levá-la de volta a um passado do qual, na nova realidade do mundo, pode não haver mais retorno.
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