LEMBRANÇAS DO CACIQUE JURUNA
Ele morava no 1º andar, com doze filhos, eu no 5º, na quadra 202 Norte, dos deputados, em Brasília. Quase toda manhã, sempre entre as nove e as dez, ele chegava com um punhado de jornais, tocava a campainha, todo solene, não cumprimentava ninguém, apenas perguntava:
- Neru tá?
Ia direto para o escritório, jogava os jornais na mesa, trancava a porta:
- Neru, lê jornal pra Juruna. Jornal fala de Juruna?
Eu já tinha lido alguns, olhava rápido os outros, lia, marcava o nome dele em lápis vermelho, ele rasgava o pedaço, dobrava, punha no bolso e saía.
Este é um segredo que lhe jurei guardar enquanto ele vivesse. Cumpri.
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UM ÍNDIO GENIAL
Na Câmara, Juruna entregava os recortes à sua assessoria, como se fosse ele que tivesse lido, dizia o discurso que ia fazer, como queria fazer, escreviam o discurso para ele, liam, reliam, ele ia para a tribuna e enganava 500 políticos que se consideravam muito mais sábios e espertos do que ele.
Como se estivesse lendo, Juruna ia falando e pondo as folhas ao lado, uma a uma. Não lia nenhuma. Mas ia falando mais ou menos o que estava em cada uma. É só conferir nas notas taquigráficas da Câmara. O que ele falava era mais ou menos o que estava escrito, mas não era o que estava escrito, porque Juruna não sabia ler, só escrevia o nome. Era um genial analfabeto.
Um dia, em Roma, muito tempo depois, à beira de um Brunello di Montalcino, contei essa história a Ulysses Guimarães. Ele ficou besta:
- Que índio filho da puta. Me enganou quatro anos.
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“GOSMO” E JÔ
Ficamos amigos na campanha de 82, nós dois candidatos a deputado, no Rio. Íamos para o subúrbio, o interior, Brizola me dizia: – “Tu estás eleito. Fala no índio”. Eu falava, pedia votos para ele, ficou meu amigo eterno.
Tinha birra do Baby Bocaiúva, que o achava engraçado, ria dele e Juruna detestava quem risse dele. Desconfiou que as notas engraçadas que o Zózimo dava sobre ele na coluna eram fornecidas por Bocaiúva, vivia dizendo que ia bater em Bocaiúva: “Boca uva filho puta”. Um dia me perguntou:
- Neru, “Gosmo” veado?
- O que é isso, Juruna? Claro que não.
- “Gosmo” todo dia fala de Juruna. O que é que “Gosmo” quer?
Jô Soares criou aquele quadro na TV, magnífico, do índio que dizia: – “Ó”! Juruna ficou indignado. Um dia, chegou à tarde de Brasília, foi direto para a porta da TV Globo, esperar Jô e ficou horas, na espreita. Avisado, fui lá. Amigos já o tinham tirado. Depois, ele me disse:
- Jô não respeita Juruna. Juruna pai doze filhos e Jô: – “Ó, Ó, Ó”.
Quem quase apanha fui eu. Caí na risada.
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O GRAVADOR NU
Não entendo de índio. Mas nunca vi um índio tão índio. Os brancos, como ele chamava, o Congresso, a política, nada tirou seu jeitão, sua voz, seu tamanho, sua força, sua alma de índio. Desconfiado, era um homem puro.
Poucos exemplos haverá, nestes séculos, de um homem sair tão rápido da selva para a civilização. Aos 17 anos, em 60 (nasceu em 3 de setembro de 1943) ainda vivia nu na floresta, tentando flechar avião. Cacique xavante da aldeia Namunjurá, em São Marcos, Barra do Garça, Mato Grosso, começou a reivindicar e discordar da Funai.
Apareceu em Brasília, em 1977, com sua desconfiança e seu gravador nu. O que a Funai falava não combinava. O que os políticos prometiam, não acontecia. Em 80, presidiu o Tribunal Bertrand Russel, em Haia.
Brigou feio com um dirigente da Funai em Mato Grosso, contou a um pastor evangélico que ia matá-lo e fugir para o Paraguai. Amigo de Darcy Ribeiro, o pastor e Darcy resolveram trazer o cacique irado para o Rio.
E foi assim que Brizola o acolheu e lançou candidato a deputado. Em cinco séculos, ninguém fez tanto pelo índio brasileiro quanto ele.
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UM HOMEM PURO
Saía da Câmara, entrava no primeiro carro oficial e ia para casa. Não adiantava dizer que o carro era de outro: – “Carro povo, deputado povo”.
Na eleição indireta de 85, o coordenador da campanha de Maluf, Calim Eid, que Juruna chamava de “Galinhei”, pediu-lhe o voto e depositou um dinheiro, uma mixaria, na conta dele. De manhã, Juruna entrou em minha casa:
- Neru, Juruna pode comprar fazenda? Por que deputado branco pode comprar fazenda e Juruna não pode?
- Porque você, como eu, não tem dinheiro para comprar fazenda.
Os amigos pediram, ele reuniu a imprensa, contou a história, devolveu o dinheiro, votou em Tancredo. Morreu duro e puro, ajudado pelo PDT de Brasília.
Sebastião Nery
01 de julho de 2012
Ele morava no 1º andar, com doze filhos, eu no 5º, na quadra 202 Norte, dos deputados, em Brasília. Quase toda manhã, sempre entre as nove e as dez, ele chegava com um punhado de jornais, tocava a campainha, todo solene, não cumprimentava ninguém, apenas perguntava:
- Neru tá?
Ia direto para o escritório, jogava os jornais na mesa, trancava a porta:
- Neru, lê jornal pra Juruna. Jornal fala de Juruna?
Eu já tinha lido alguns, olhava rápido os outros, lia, marcava o nome dele em lápis vermelho, ele rasgava o pedaço, dobrava, punha no bolso e saía.
Este é um segredo que lhe jurei guardar enquanto ele vivesse. Cumpri.
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UM ÍNDIO GENIAL
Na Câmara, Juruna entregava os recortes à sua assessoria, como se fosse ele que tivesse lido, dizia o discurso que ia fazer, como queria fazer, escreviam o discurso para ele, liam, reliam, ele ia para a tribuna e enganava 500 políticos que se consideravam muito mais sábios e espertos do que ele.
Como se estivesse lendo, Juruna ia falando e pondo as folhas ao lado, uma a uma. Não lia nenhuma. Mas ia falando mais ou menos o que estava em cada uma. É só conferir nas notas taquigráficas da Câmara. O que ele falava era mais ou menos o que estava escrito, mas não era o que estava escrito, porque Juruna não sabia ler, só escrevia o nome. Era um genial analfabeto.
Um dia, em Roma, muito tempo depois, à beira de um Brunello di Montalcino, contei essa história a Ulysses Guimarães. Ele ficou besta:
- Que índio filho da puta. Me enganou quatro anos.
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“GOSMO” E JÔ
Ficamos amigos na campanha de 82, nós dois candidatos a deputado, no Rio. Íamos para o subúrbio, o interior, Brizola me dizia: – “Tu estás eleito. Fala no índio”. Eu falava, pedia votos para ele, ficou meu amigo eterno.
Tinha birra do Baby Bocaiúva, que o achava engraçado, ria dele e Juruna detestava quem risse dele. Desconfiou que as notas engraçadas que o Zózimo dava sobre ele na coluna eram fornecidas por Bocaiúva, vivia dizendo que ia bater em Bocaiúva: “Boca uva filho puta”. Um dia me perguntou:
- Neru, “Gosmo” veado?
- O que é isso, Juruna? Claro que não.
- “Gosmo” todo dia fala de Juruna. O que é que “Gosmo” quer?
Jô Soares criou aquele quadro na TV, magnífico, do índio que dizia: – “Ó”! Juruna ficou indignado. Um dia, chegou à tarde de Brasília, foi direto para a porta da TV Globo, esperar Jô e ficou horas, na espreita. Avisado, fui lá. Amigos já o tinham tirado. Depois, ele me disse:
- Jô não respeita Juruna. Juruna pai doze filhos e Jô: – “Ó, Ó, Ó”.
Quem quase apanha fui eu. Caí na risada.
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O GRAVADOR NU
Não entendo de índio. Mas nunca vi um índio tão índio. Os brancos, como ele chamava, o Congresso, a política, nada tirou seu jeitão, sua voz, seu tamanho, sua força, sua alma de índio. Desconfiado, era um homem puro.
Poucos exemplos haverá, nestes séculos, de um homem sair tão rápido da selva para a civilização. Aos 17 anos, em 60 (nasceu em 3 de setembro de 1943) ainda vivia nu na floresta, tentando flechar avião. Cacique xavante da aldeia Namunjurá, em São Marcos, Barra do Garça, Mato Grosso, começou a reivindicar e discordar da Funai.
Apareceu em Brasília, em 1977, com sua desconfiança e seu gravador nu. O que a Funai falava não combinava. O que os políticos prometiam, não acontecia. Em 80, presidiu o Tribunal Bertrand Russel, em Haia.
Brigou feio com um dirigente da Funai em Mato Grosso, contou a um pastor evangélico que ia matá-lo e fugir para o Paraguai. Amigo de Darcy Ribeiro, o pastor e Darcy resolveram trazer o cacique irado para o Rio.
E foi assim que Brizola o acolheu e lançou candidato a deputado. Em cinco séculos, ninguém fez tanto pelo índio brasileiro quanto ele.
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UM HOMEM PURO
Saía da Câmara, entrava no primeiro carro oficial e ia para casa. Não adiantava dizer que o carro era de outro: – “Carro povo, deputado povo”.
Na eleição indireta de 85, o coordenador da campanha de Maluf, Calim Eid, que Juruna chamava de “Galinhei”, pediu-lhe o voto e depositou um dinheiro, uma mixaria, na conta dele. De manhã, Juruna entrou em minha casa:
- Neru, Juruna pode comprar fazenda? Por que deputado branco pode comprar fazenda e Juruna não pode?
- Porque você, como eu, não tem dinheiro para comprar fazenda.
Os amigos pediram, ele reuniu a imprensa, contou a história, devolveu o dinheiro, votou em Tancredo. Morreu duro e puro, ajudado pelo PDT de Brasília.
Sebastião Nery
01 de julho de 2012
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