Durante alguns anos, depois de deixar o poder, se não passou incólume, o
general Ernesto Geisel parecia destinado a inscrever-se na crônica como um
presidente da República que acertou mais do que errou. Afinal, tanto faz os
motivos que o inspiraram, mas levantou a censura na imprensa escrita. Iniciou o
processo de abertura política e, até mesmo, nos últimos três meses de seu
governo, revogou o Ato Institucional número 5. Na coluna do “haver”, também
pesam em seu crédito a sustentação da soberania nacional, quando bateu de frente
com os Estados Unidos. A tentativa de inscrever o Brasil no clube nuclear. Uma
política energética nacionalista.
E mais a tomada pública de posição contra a tortura institucionalizada, depois do assassinato do jornalista Wladimir Herzog e do operário Manoel Fiel Filho nos porões do II Exército, em São Paulo. Um general de quatro estrelas foi demitido, tivesse ou não conhecimento dos horrores praticados à sua sombra. De quebra, Geisel livrou o movimento militar do general Silvio Frota, que despontava como presidenciável e era a encarnação do ditador irascível e truculento. O então ministro do Exército foi demitido numa verdadeira operação de guerra.
É claro que na coluna do “deve” muita coisa pesou. Censura à imprensa nos dois primeiros anos de seu governo, cassações de mandatos, decretação do recesso do Congresso, “pacote de abril”, com abomináveis casuísmos políticos destinados à preservação do poder em mãos de um regime que já fazia água. Sem falar na imposição do sucessor, general João Figueiredo, sem consulta a ninguém, nem mesmo ao Alto Comando do Exército. Até hoje há quem duvide de ter sido coincidência a morte, num espaço de nove meses, dos três principais adversários em condições de derrotar nas urnas futuras o sistema militar: Juscelino Kubitschek, João Goulart e Carlos Lacerda.
O diabo, para Geisel, é que depois de sua morte surgiu a denúncia do jornalista Elio Gaspari, aliás, seu amigo pessoal, através da divulgação, em livro, de uma degravação. Nela, em conversa como o general Dale Coutinho, o presidente da abertura defendia a eliminação física de adversários do governo, por agentes do governo. Quer dizer, justificou assassinato puro e simples daqueles que tentavam derrubar o regime, seja lá porque métodos fosse.
O ídolo foi mostrado com os pés de barro. Se não surgirem, como não surgiram até agora, contraditórios ou desmentidos eficazes, vai para o espaço a imagem do penúltimo general-presidente.
João Figueiredo, o último, foi uma espécie de Macunaíma do sistema militar. Espertíssimo, tanto que serviu a todos os antecessores, inimigos entre si. Coronel chefe da Agência Central do SNI no governo Castelo Branco, general chefe do Estado-Maior de Garrastazu Médici no comando do III Exército, no governo Costa e Silva, chefe do Gabinete Militar do presidente Médici, chefe do SNI do presidente Geisel, o último general-presidente era competente. Tríplice coroado, quer dizer, primeiro aluno em todos os cursos castrenses de que participou, buscava transmitir uma imagem anti-intelectual, antes e depois de assumir o poder. Preferia cheiro de cavalo a cheiro de povo. Fingia-se de grosso, adepto dos palavrões.
Mas logo que instalado no palácio do Planalto, levantou a censura no rádio, na televisão e nas publicações que faltavam. Mandou ao Congresso projeto de anistia aos cassados e estimulou a volta de todos os exilados. “Lugar de brasileiro é no Brasil”, afirmou ao assistir pela televisão o retorno de Leonel Brizola, Luis Carlos Prestes, Miguel Arraes e mais um monte de exilados, dos que se opunham retoricamente e dos que pegaram em armas mudar as instituições.
Ia tudo dando certo quando a direita mostrou outra vez a pata. Atentados a bancas de jornal e a livrarias que passaram a vender literatura de esquerda; bombas em automóveis e residências de líderes da oposição; cartas-bomba enviadas à Ordem dos Advogados do Brasil. À Associação Brasileira de Imprensa e à Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro. Finalmente, a tentativa de explosão do Riocentro, durante a realização de um show de música popular organizado por artistas de nítida postura oposicionista. Teria sido um massacre de centenas de jovens, não fosse a certeza de que Deus é mesmo brasileiro. Um dos petardos explodiu por antecipação, no colo de um capitão e de um sargento do Exército, no carro em que tentavam armá-lo. Um morreu, outro sobreviveu, ambos integrantes do famigerado CIEX, núcleo do terrorismo de estado.
Foi o divisor de águas, responsável até pela demissão, a pedido, do general Golbery do Couto e Silva, chefe do gabinete Civil, que exigia a apuração e a punição dos responsáveis, do capitão aos generais. Figueiredo hesitou e cedeu. Como expor seus companheiros, que governavam com ele? De que maneira arriscar-se a punir seus ministros, porque a linha de apuração dos fatos chegaria até eles? Engendrou-se uma farsa, atribuindo-se aos comunistas aquilo que o sistema fazia. Agora, com a conivência do chefe…
Do Riocentro ao final do seu mandato, atingido por grave enfarte e mil outras somatizações da impotência política, João Figueiredo transformou-se na sombra daquilo que uma vez pretendeu ser e quase conseguiu: o general-presidente responsável pela devolução da democracia do Brasil. Com a eleição de Tancredo Neves e a posse de José Sarney, encerrava-se o ciclo militar iniciado há quarenta anos.
(Continua amanhã)
Carlos Chagas
01 de julho de 2012
E mais a tomada pública de posição contra a tortura institucionalizada, depois do assassinato do jornalista Wladimir Herzog e do operário Manoel Fiel Filho nos porões do II Exército, em São Paulo. Um general de quatro estrelas foi demitido, tivesse ou não conhecimento dos horrores praticados à sua sombra. De quebra, Geisel livrou o movimento militar do general Silvio Frota, que despontava como presidenciável e era a encarnação do ditador irascível e truculento. O então ministro do Exército foi demitido numa verdadeira operação de guerra.
É claro que na coluna do “deve” muita coisa pesou. Censura à imprensa nos dois primeiros anos de seu governo, cassações de mandatos, decretação do recesso do Congresso, “pacote de abril”, com abomináveis casuísmos políticos destinados à preservação do poder em mãos de um regime que já fazia água. Sem falar na imposição do sucessor, general João Figueiredo, sem consulta a ninguém, nem mesmo ao Alto Comando do Exército. Até hoje há quem duvide de ter sido coincidência a morte, num espaço de nove meses, dos três principais adversários em condições de derrotar nas urnas futuras o sistema militar: Juscelino Kubitschek, João Goulart e Carlos Lacerda.
O diabo, para Geisel, é que depois de sua morte surgiu a denúncia do jornalista Elio Gaspari, aliás, seu amigo pessoal, através da divulgação, em livro, de uma degravação. Nela, em conversa como o general Dale Coutinho, o presidente da abertura defendia a eliminação física de adversários do governo, por agentes do governo. Quer dizer, justificou assassinato puro e simples daqueles que tentavam derrubar o regime, seja lá porque métodos fosse.
O ídolo foi mostrado com os pés de barro. Se não surgirem, como não surgiram até agora, contraditórios ou desmentidos eficazes, vai para o espaço a imagem do penúltimo general-presidente.
João Figueiredo, o último, foi uma espécie de Macunaíma do sistema militar. Espertíssimo, tanto que serviu a todos os antecessores, inimigos entre si. Coronel chefe da Agência Central do SNI no governo Castelo Branco, general chefe do Estado-Maior de Garrastazu Médici no comando do III Exército, no governo Costa e Silva, chefe do Gabinete Militar do presidente Médici, chefe do SNI do presidente Geisel, o último general-presidente era competente. Tríplice coroado, quer dizer, primeiro aluno em todos os cursos castrenses de que participou, buscava transmitir uma imagem anti-intelectual, antes e depois de assumir o poder. Preferia cheiro de cavalo a cheiro de povo. Fingia-se de grosso, adepto dos palavrões.
Mas logo que instalado no palácio do Planalto, levantou a censura no rádio, na televisão e nas publicações que faltavam. Mandou ao Congresso projeto de anistia aos cassados e estimulou a volta de todos os exilados. “Lugar de brasileiro é no Brasil”, afirmou ao assistir pela televisão o retorno de Leonel Brizola, Luis Carlos Prestes, Miguel Arraes e mais um monte de exilados, dos que se opunham retoricamente e dos que pegaram em armas mudar as instituições.
Ia tudo dando certo quando a direita mostrou outra vez a pata. Atentados a bancas de jornal e a livrarias que passaram a vender literatura de esquerda; bombas em automóveis e residências de líderes da oposição; cartas-bomba enviadas à Ordem dos Advogados do Brasil. À Associação Brasileira de Imprensa e à Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro. Finalmente, a tentativa de explosão do Riocentro, durante a realização de um show de música popular organizado por artistas de nítida postura oposicionista. Teria sido um massacre de centenas de jovens, não fosse a certeza de que Deus é mesmo brasileiro. Um dos petardos explodiu por antecipação, no colo de um capitão e de um sargento do Exército, no carro em que tentavam armá-lo. Um morreu, outro sobreviveu, ambos integrantes do famigerado CIEX, núcleo do terrorismo de estado.
Foi o divisor de águas, responsável até pela demissão, a pedido, do general Golbery do Couto e Silva, chefe do gabinete Civil, que exigia a apuração e a punição dos responsáveis, do capitão aos generais. Figueiredo hesitou e cedeu. Como expor seus companheiros, que governavam com ele? De que maneira arriscar-se a punir seus ministros, porque a linha de apuração dos fatos chegaria até eles? Engendrou-se uma farsa, atribuindo-se aos comunistas aquilo que o sistema fazia. Agora, com a conivência do chefe…
Do Riocentro ao final do seu mandato, atingido por grave enfarte e mil outras somatizações da impotência política, João Figueiredo transformou-se na sombra daquilo que uma vez pretendeu ser e quase conseguiu: o general-presidente responsável pela devolução da democracia do Brasil. Com a eleição de Tancredo Neves e a posse de José Sarney, encerrava-se o ciclo militar iniciado há quarenta anos.
(Continua amanhã)
Carlos Chagas
01 de julho de 2012
Nenhum comentário:
Postar um comentário