O edifício político do país tem dois andares que se sustentam em uma base. O andar de cima é o mais pesado e, pela lógica, deveria se esforçar para evitar que o andar de baixo desabe sob seu peso e, mais, que os alicerces do prédio sejam suficientemente fortes e profundos para garantir a estabilidade da construção. Essa é a norma da engenharia de obras.
Ocorre que entre ela e a engenharia política há um profundo fosso, que não deixa dúvidas quanto à natureza de ambas. Não por acaso, costuma-se dizer que, na política, a geometria euclidiana deixa a desejar, eis que a menor distância entre dois pontos nem sempre é uma reta. Pode ser uma curva. E, não raras vezes, uma curva acentuada como a que se constata na idealização federativa.
A base do edifício político, formada por 5.565 municípios e construída com argamassa esfarelada e cediça, afunda a cada ciclo governativo. Por isso mesmo, agiganta-se o descompasso entre demandas crescentes das comunidades municipais e os recursos postos à sua disposição.
O dado é revelador. Do bolo das receitas públicas, os municípios ganham apenas a pequena fatia de 18%. O primeiro andar, que abriga os 27 entes estaduais, leva 28% enquanto o andar de cima abocanha 54%.
Não é de estranhar que as vitrines da base, onde vive a população, se apresentem sujas, com vidros quebrados e paredes rachadas, afastando a clientela dos seus balcões. O que fazem os munícipes?
Procuram as prateleiras de serviços dos Estados. Mas as ofertas que encontram primam pela precariedade. Ali se vêem cordões de miseráveis acumulados em camas improvisadas de estabelecimentos hospitalares no meio de imundície e aflição. Outros serviços se nivelam na deterioração porque os entes estaduais estão quebrados. É inimaginável acreditar que o país do consumo e do crédito fácil, ícone da dinâmica social, possa ser o mesmo dos desfiles escatológicos que ocorrem em quase todos os recantos.
Pior é constatar que não sinais de melhoria no horizonte.
Sobre os pequenos municípios recai maior carga. Recebem migalhas. O endividamento, por sua vez, se expande na corrente dos municípios maiores; é de 8% em municípios de ate 5 mil habitantes, chegando a 50% em municípios entre 500 e 1 milhão de habitantes, a denotar a inexorável verdade: o inchamento das cidades, conseqüência do prolongamento urbano – não resulta em desenvolvimento. Ao contrário. Do Fundo de Participação dos Municípios, os 20% mais ricos recebem R$ 289 per capita e os mais pobres, R$ 190.
Já o total das transferências (constitucionais e voluntárias) supera, segundo cálculos do sociólogo Rudá Ricci, 75% das receitas, em municípios com população de até 100 mil habitantes. Sob essa conta, a alternativa que sobra aos alcaides é recorrer a convênios com órgãos federais e estaduais. Sem verba e com verbo curto – sua voz não gera eco em Brasília – os prefeitos se vêem tolhidos na autonomia para definir coisas triviais como compra de equipamentos básicos como uma ambulância ou um trator. Os gestores das pequenas cidades acabam sendo meros gerentes de programas que escapam de sua esfera.
Ante a moldura de descalabro – a escancarar o declínio dos municípios como entes autônomos – impõe-se a questão: o que fazer e como agir para escapar ao círculo vicioso da eterna dependência? A resposta implica ampla reforma no campo municipalista. Reforma que pressupõe a formação de nova mentalidade na gestão.
Vale lembrar que a administração pública brasileira recebeu o batismo nas águas do patrimonialismo, cuja expansão ocorreu à sombra de profissionais que enxergaram na política a oportunidade de tirar proveito do aparelho burocrático do Estado.
Surgiu, então, uma classe que se refugiou no escudo patrimonialista, tendência que Oliveira Vianna, desde os anos 30, já identificava e combatia em sua cruzada contra “a degeneração do caráter nacional”, aí incluída a burocratização da vida pública.
Vianna lembrava que, no império, a relação entre “doutores e políticos” resultara na figura do fazendeiro, enquanto na República, a união entre o político e o doutor fazia nascer o burocrata. Essa semente desabrocharia nos jardins das municipalidades, multiplicando os mandatários de índole mandonista, feudal, com seus passaportes herdados das famílias.
Um novo municipalismo, portanto, seria engendrado a partir de um administrador compromissado com os valores da renovação de métodos, significando novas formas de governança, balizadas em parâmetros de eficácia, zelo, transparência e atendimento das demandas comunitárias.
Uma identidade assim definida implica respeito absoluto aos ditames da responsabilidade fiscal, um exercício financeiro compatível com a disponibilidade de recursos. E requer a eleição de prioridades escolhidas com a lupa focada nas demandas prementes e urgentes das comunidades.
Pressupõe a continuidade administrativa e o abandono da obsoleta tradição de passar uma borracha nos feitos de administrações anteriores com o intuito de imprimir a imagem do presente sobre o retrato do passado. Ancorado na hipótese de que o Estado é incapaz de prover as necessidades dos cidadãos em áreas essenciais, as administrações hão de considerar modelos de parceria com a iniciativa privada.
A concessão de serviços públicos e a realização de programas nas frentes de cultura, lazer, esportes, educação e saúde constituem desafios à espera da visão empreendedora e da criatividade dos gestores. Mas aí nasce o perigo. Tem sido frequentes denúncias de cambalachos e negociatas entre agentes da burocracia estatal, empresários e políticos.
Critérios de transparência e processos bem fundamentados, de forma a garantir a lisura dos contratos, são necessários para guiar o conceito das administrações. Como é sabido, fluxogramas, tarifas e expansão de serviços costumam ser alterados após o início dos serviços, a denotar o “jeitinho” para arrumar novas combinações. Com esses cuidados mínimos, os alicerces da base poderão manter a segurança do edifício político.
01 de julho de 2012
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político.
Ocorre que entre ela e a engenharia política há um profundo fosso, que não deixa dúvidas quanto à natureza de ambas. Não por acaso, costuma-se dizer que, na política, a geometria euclidiana deixa a desejar, eis que a menor distância entre dois pontos nem sempre é uma reta. Pode ser uma curva. E, não raras vezes, uma curva acentuada como a que se constata na idealização federativa.
A base do edifício político, formada por 5.565 municípios e construída com argamassa esfarelada e cediça, afunda a cada ciclo governativo. Por isso mesmo, agiganta-se o descompasso entre demandas crescentes das comunidades municipais e os recursos postos à sua disposição.
O dado é revelador. Do bolo das receitas públicas, os municípios ganham apenas a pequena fatia de 18%. O primeiro andar, que abriga os 27 entes estaduais, leva 28% enquanto o andar de cima abocanha 54%.
Não é de estranhar que as vitrines da base, onde vive a população, se apresentem sujas, com vidros quebrados e paredes rachadas, afastando a clientela dos seus balcões. O que fazem os munícipes?
Procuram as prateleiras de serviços dos Estados. Mas as ofertas que encontram primam pela precariedade. Ali se vêem cordões de miseráveis acumulados em camas improvisadas de estabelecimentos hospitalares no meio de imundície e aflição. Outros serviços se nivelam na deterioração porque os entes estaduais estão quebrados. É inimaginável acreditar que o país do consumo e do crédito fácil, ícone da dinâmica social, possa ser o mesmo dos desfiles escatológicos que ocorrem em quase todos os recantos.
Pior é constatar que não sinais de melhoria no horizonte.
Sobre os pequenos municípios recai maior carga. Recebem migalhas. O endividamento, por sua vez, se expande na corrente dos municípios maiores; é de 8% em municípios de ate 5 mil habitantes, chegando a 50% em municípios entre 500 e 1 milhão de habitantes, a denotar a inexorável verdade: o inchamento das cidades, conseqüência do prolongamento urbano – não resulta em desenvolvimento. Ao contrário. Do Fundo de Participação dos Municípios, os 20% mais ricos recebem R$ 289 per capita e os mais pobres, R$ 190.
Já o total das transferências (constitucionais e voluntárias) supera, segundo cálculos do sociólogo Rudá Ricci, 75% das receitas, em municípios com população de até 100 mil habitantes. Sob essa conta, a alternativa que sobra aos alcaides é recorrer a convênios com órgãos federais e estaduais. Sem verba e com verbo curto – sua voz não gera eco em Brasília – os prefeitos se vêem tolhidos na autonomia para definir coisas triviais como compra de equipamentos básicos como uma ambulância ou um trator. Os gestores das pequenas cidades acabam sendo meros gerentes de programas que escapam de sua esfera.
Ante a moldura de descalabro – a escancarar o declínio dos municípios como entes autônomos – impõe-se a questão: o que fazer e como agir para escapar ao círculo vicioso da eterna dependência? A resposta implica ampla reforma no campo municipalista. Reforma que pressupõe a formação de nova mentalidade na gestão.
Vale lembrar que a administração pública brasileira recebeu o batismo nas águas do patrimonialismo, cuja expansão ocorreu à sombra de profissionais que enxergaram na política a oportunidade de tirar proveito do aparelho burocrático do Estado.
Surgiu, então, uma classe que se refugiou no escudo patrimonialista, tendência que Oliveira Vianna, desde os anos 30, já identificava e combatia em sua cruzada contra “a degeneração do caráter nacional”, aí incluída a burocratização da vida pública.
Vianna lembrava que, no império, a relação entre “doutores e políticos” resultara na figura do fazendeiro, enquanto na República, a união entre o político e o doutor fazia nascer o burocrata. Essa semente desabrocharia nos jardins das municipalidades, multiplicando os mandatários de índole mandonista, feudal, com seus passaportes herdados das famílias.
Um novo municipalismo, portanto, seria engendrado a partir de um administrador compromissado com os valores da renovação de métodos, significando novas formas de governança, balizadas em parâmetros de eficácia, zelo, transparência e atendimento das demandas comunitárias.
Uma identidade assim definida implica respeito absoluto aos ditames da responsabilidade fiscal, um exercício financeiro compatível com a disponibilidade de recursos. E requer a eleição de prioridades escolhidas com a lupa focada nas demandas prementes e urgentes das comunidades.
Pressupõe a continuidade administrativa e o abandono da obsoleta tradição de passar uma borracha nos feitos de administrações anteriores com o intuito de imprimir a imagem do presente sobre o retrato do passado. Ancorado na hipótese de que o Estado é incapaz de prover as necessidades dos cidadãos em áreas essenciais, as administrações hão de considerar modelos de parceria com a iniciativa privada.
A concessão de serviços públicos e a realização de programas nas frentes de cultura, lazer, esportes, educação e saúde constituem desafios à espera da visão empreendedora e da criatividade dos gestores. Mas aí nasce o perigo. Tem sido frequentes denúncias de cambalachos e negociatas entre agentes da burocracia estatal, empresários e políticos.
Critérios de transparência e processos bem fundamentados, de forma a garantir a lisura dos contratos, são necessários para guiar o conceito das administrações. Como é sabido, fluxogramas, tarifas e expansão de serviços costumam ser alterados após o início dos serviços, a denotar o “jeitinho” para arrumar novas combinações. Com esses cuidados mínimos, os alicerces da base poderão manter a segurança do edifício político.
01 de julho de 2012
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político.
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