O comentarista Sergio Oliveira nos envia trecho do livro “Jogo Duro”, do empresário Mario Garnero, que é frequentemente citado aqui no Blog da Tribuna por Antonio Santos Aquino. Nessa parte de seu livro de memórias, Garnero cita a proteção que no governo Geisel o poderoso general Golbery do Coutto e Silva dava ao então líder sindical Lula , na intenção de criar uma alternativa de esquerda para enfraquecer Leonel Brizola, que na época seria imbatível em eleição presidencial direta.
Golbery, como se sabe, era a eminência parda (ou melhor, verde oliva) da ditadura militar, uma espécie de Rasputin fardado.
JOGO DURO
Mario Garnero
Eu me vi obrigado, no final do ano passado, a enviar um bilhetinho pessoal a um velho conhecido, dos tempos das jornadas sindicais do ABC…..
…Sentei e escrevi: Lula….achei que tinha suficiente intimidade para chamá-lo assim, embora, no envelope, dirigido ao Congresso Nacional, em Brasília, eu tenha endereçado, solenemente: A Sua Excelência, Luiz Ignácio Lula da Silva. Espero que o portador o tenha reconhecido por trás daquelas barbas.
No bilhete, tentei recordar ao constituinte mais votado de São Paulo duas ou três coisas do passado, que dizem respeito ao mais ativo líder metalúrgico de São Bernardo: ele próprio, o Lula. Não sei como o nobre parlamentar, investido de novas preocupações, anda de memória. Não custa, portanto, lembrar-lhe.
É uma preocupação justificável, pois o grande líder da esquerda brasileira costuma se esquecer, por exemplo, de que esteve recebendo lições de sindicalismo da Johns Hopkins University, nos Estados Unidos, ali por 1972, 1973, como vim a saber lá, um dia. Na universidade americana, até hoje, todos se lembram de um certo Lula com enorme carinho.
Além dos fatos que passarei a narrar, sinto-me no direito de externar minha estranheza quanto à facilidade com que se procedeu a ascensão irresistível de Lula, nos anos 70, época em que outros adversários do governo, às vezes muito mais inofensivos, foram tratados com impiedade. Lula, não – foi em frente, progrediu.
Longe de mim querer acusá-lo de ser o cabo Anselmo do ABC, mesmo porque, ao contrário do que ocorre com o próprio Lula, eu só acuso com as devidas provas. Só me reservo o direito de achar estranho.
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O PRIMEIRO LULA
Lembro-me do primeiro Lula, lá por 1976, sendo apresentado por seu patrão, Paulo Villares, ao Werner Jessen, da Mercedes-Benz, e, de repente, eis que aparece o tal Lula á frente da primeira greve que houve na indústria automobilística durante o regime militar, ele que até então era apenas o amigo do Paulo Villares, seu patrão. Recordo-me de a imprensa cobrir o Lula de elogio, estimulando-o, no momento em que a distensão apenas começava, e de um episódio que é capaz de deixar qualquer um, mesmo os desatentos, com o pé atrás.
Foi em 1978, início do mês de maio. Os metalúrgicos tinham cruzado os braços, a indústria automobilística estava parada e nós, em Brasília, em nome da Anfavea (N. R. – Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automores), conversando com o governo sobre o que fazer. Era manhã de domingo e estive com o ministro Mário Henrique Simonsen.
Ele estivera com o presidente Geisel, que recomendou moderação: tentar negociar com os grevistas, sem alarido. Imagine: era um passo que nenhum governo militar jamais dera, o da negociação com operários em greve. Geisel devia ter alguma coisa a mais na cabeça. Ele e, tenho certeza, o ministro Golbery.
Simonsen apenas comentou, de passagem, que Geisel tinha recomendado que Lula não falasse naquela noite na televisão, como estava programado. Ele era o convidado do programa “Vox Populi” (N.R. – Era uma espécie de “Roda Viva” da época), que ia ao ar na TV Cultura – o canal semi-oficial do Governo de São Paulo. Seria uma situação melindrosa. “Nem ele, nem ninguém mais que fale em greve”, ordenou Geisel.
Saí de Brasília naquela manhã mesmo, reconfortado pela notícia de que ao governo interessava negociar. Desci no Rio com as malas e me preparei para embarcar naquela noite para uma longa viagem de negócios que começava nos Estados Unidos e terminava no Japão. Saí de Brasília também com a informação de que Lula não ia ar naquela noite.
Mas foi, e, no auge da conflagração grevista, disse o que queria dizer, numa televisão sustentada pelo governo estadual. Fiquei sabendo da surpreendente reviravolta da história num telefonema que dei dos Estados Unidos, no dia seguinte. Senti, ali, o dedo do general Golbery.
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PEÇA SINDICAL
Mais tarde, tive condições de reconstituir melhor o episódio e apurei que Lula só foi ao ar naquele domingo porque no vai-não-vai que precedeu o programa, até uma hora e meia antes do horário, prevaleceu a opinião do Golbery, que achava importante, por alguma razão, que Lula aparecesse no vídeo. O general Dilermando Monteiro, comandante do II Exército, aceitou a argumentação, e o governador Paulo Egydio Martins, instrumentado pelo Planalto, deu o nihil obstat final ao “Vox Populi”.
Lula foi a peça sindical na estratégia de distensão tramada pelo Golbery – o que não sei dizer é se Lula sabia ou não sabia que estava desempenhando esse papel. Só isso pode explicar que, naquele mesmo ano, o governo Geisel tenha cassado o deputado Alencar Furtado, que falou uma ou outra besteira, e uns políticos inofensivos de Santos, e tenha poupado o Lula, que levantava a massa em São Bernardo. É provável que, no ABC, o governo quisesse experimentar, de fato, a distensão. Lula fez a sua parte.
Mais tarde, ele chegou a ser preso, julgado pelo Supremo Tribunal Federal, enfrentou ameaça de helicópteros do Exército voando rasantes sobre o Estádio de Vila Euclides, mas tenho um outro testemunho pessoal que demonstra tratamento respeitoso, eu diria quase especial, conferido pelo governo Geisel ao Lula – e por governo Geisel eu entendo, particularmente, o general Golbery.
JOGO DURO
Mario Garnero
Eu me vi obrigado, no final do ano passado, a enviar um bilhetinho pessoal a um velho conhecido, dos tempos das jornadas sindicais do ABC…..
…Sentei e escrevi: Lula….achei que tinha suficiente intimidade para chamá-lo assim, embora, no envelope, dirigido ao Congresso Nacional, em Brasília, eu tenha endereçado, solenemente: A Sua Excelência, Luiz Ignácio Lula da Silva. Espero que o portador o tenha reconhecido por trás daquelas barbas.
No bilhete, tentei recordar ao constituinte mais votado de São Paulo duas ou três coisas do passado, que dizem respeito ao mais ativo líder metalúrgico de São Bernardo: ele próprio, o Lula. Não sei como o nobre parlamentar, investido de novas preocupações, anda de memória. Não custa, portanto, lembrar-lhe.
É uma preocupação justificável, pois o grande líder da esquerda brasileira costuma se esquecer, por exemplo, de que esteve recebendo lições de sindicalismo da Johns Hopkins University, nos Estados Unidos, ali por 1972, 1973, como vim a saber lá, um dia. Na universidade americana, até hoje, todos se lembram de um certo Lula com enorme carinho.
Além dos fatos que passarei a narrar, sinto-me no direito de externar minha estranheza quanto à facilidade com que se procedeu a ascensão irresistível de Lula, nos anos 70, época em que outros adversários do governo, às vezes muito mais inofensivos, foram tratados com impiedade. Lula, não – foi em frente, progrediu.
Longe de mim querer acusá-lo de ser o cabo Anselmo do ABC, mesmo porque, ao contrário do que ocorre com o próprio Lula, eu só acuso com as devidas provas. Só me reservo o direito de achar estranho.
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O PRIMEIRO LULA
Lembro-me do primeiro Lula, lá por 1976, sendo apresentado por seu patrão, Paulo Villares, ao Werner Jessen, da Mercedes-Benz, e, de repente, eis que aparece o tal Lula á frente da primeira greve que houve na indústria automobilística durante o regime militar, ele que até então era apenas o amigo do Paulo Villares, seu patrão. Recordo-me de a imprensa cobrir o Lula de elogio, estimulando-o, no momento em que a distensão apenas começava, e de um episódio que é capaz de deixar qualquer um, mesmo os desatentos, com o pé atrás.
Foi em 1978, início do mês de maio. Os metalúrgicos tinham cruzado os braços, a indústria automobilística estava parada e nós, em Brasília, em nome da Anfavea (N. R. – Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automores), conversando com o governo sobre o que fazer. Era manhã de domingo e estive com o ministro Mário Henrique Simonsen.
Ele estivera com o presidente Geisel, que recomendou moderação: tentar negociar com os grevistas, sem alarido. Imagine: era um passo que nenhum governo militar jamais dera, o da negociação com operários em greve. Geisel devia ter alguma coisa a mais na cabeça. Ele e, tenho certeza, o ministro Golbery.
Simonsen apenas comentou, de passagem, que Geisel tinha recomendado que Lula não falasse naquela noite na televisão, como estava programado. Ele era o convidado do programa “Vox Populi” (N.R. – Era uma espécie de “Roda Viva” da época), que ia ao ar na TV Cultura – o canal semi-oficial do Governo de São Paulo. Seria uma situação melindrosa. “Nem ele, nem ninguém mais que fale em greve”, ordenou Geisel.
Saí de Brasília naquela manhã mesmo, reconfortado pela notícia de que ao governo interessava negociar. Desci no Rio com as malas e me preparei para embarcar naquela noite para uma longa viagem de negócios que começava nos Estados Unidos e terminava no Japão. Saí de Brasília também com a informação de que Lula não ia ar naquela noite.
Mas foi, e, no auge da conflagração grevista, disse o que queria dizer, numa televisão sustentada pelo governo estadual. Fiquei sabendo da surpreendente reviravolta da história num telefonema que dei dos Estados Unidos, no dia seguinte. Senti, ali, o dedo do general Golbery.
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PEÇA SINDICAL
Mais tarde, tive condições de reconstituir melhor o episódio e apurei que Lula só foi ao ar naquele domingo porque no vai-não-vai que precedeu o programa, até uma hora e meia antes do horário, prevaleceu a opinião do Golbery, que achava importante, por alguma razão, que Lula aparecesse no vídeo. O general Dilermando Monteiro, comandante do II Exército, aceitou a argumentação, e o governador Paulo Egydio Martins, instrumentado pelo Planalto, deu o nihil obstat final ao “Vox Populi”.
Lula foi a peça sindical na estratégia de distensão tramada pelo Golbery – o que não sei dizer é se Lula sabia ou não sabia que estava desempenhando esse papel. Só isso pode explicar que, naquele mesmo ano, o governo Geisel tenha cassado o deputado Alencar Furtado, que falou uma ou outra besteira, e uns políticos inofensivos de Santos, e tenha poupado o Lula, que levantava a massa em São Bernardo. É provável que, no ABC, o governo quisesse experimentar, de fato, a distensão. Lula fez a sua parte.
Mais tarde, ele chegou a ser preso, julgado pelo Supremo Tribunal Federal, enfrentou ameaça de helicópteros do Exército voando rasantes sobre o Estádio de Vila Euclides, mas tenho um outro testemunho pessoal que demonstra tratamento respeitoso, eu diria quase especial, conferido pelo governo Geisel ao Lula – e por governo Geisel eu entendo, particularmente, o general Golbery.
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