As primeiras avaliações de cientistas sociais do país, a partir de um dos mais qualificados, o sociólogo e ex-presidente da República, Fernando Henrique, sugerem que o julgamento da ação penal 470, conhecida como processo do mensalão, poderá mudar a cultura política brasileira.
O otimismo parte do pressuposto de que crimes políticos ganharão, doravante, um basta do império da lei. A expectativa é de que os luminares da justiça fecharão as portas ao ciclo de desmandos na política e descortinarão um novo tempo, sob a égide de padrões éticos e princípios morais.
A hipótese de que a decisão da Suprema Corte sobre o escândalo político seja um marco na história do país imbui-se, também, da crença de que a comunidade nacional assistirá a um julgamento isento e justo, posto que foram obedecidos os trâmites do contencioso de 50 mil páginas e 600 testemunhas e garantidas amplas condições de defesa aos 38 réus nele implicados.
Há razões para se apostar tanto na reordenação de nossa modelagem política, quando se sabe que reformar implica enterrar arraigados costumes, cortar privilégios, reduzir posições de grupos, enfim, travar uma guerra de muitas frentes, nas quais, como lembra o professor Samuel Huntington, inimigos e aliados mudam constantemente de lado?
O momento que vive o país, vale registrar, é propício para avanços na trajetória institucional, podendo acolher novos traços na morfologia política e comportamentos menos estabanados dos agentes políticos. Até aí tudo bem. Mas essa situação alvissareira não permite aduzir que a mais alta Corte do país, ao julgar o processo mais caudaloso de sua trajetória, consiga redesenhar o modus operandi da política.
Em se tratando desses trópicos que dão abrigo a mazelas seculares, a lição do velho Confúcio pode servir de bússola: “se queres prever o futuro, estuda o passado”. É ingenuidade pensar que, num simples passe de mágica, o Brasil terá condições de trocar de identidade.
Na acepção aqui usada, identidade quer significar os traços característicos da forma de pensar e fazer política, as cargas culturais formadas e desenvolvidas nos ciclos históricos, os vícios de nossa tradição, os valores e princípios que pincelam o ethos nacional. O que se pode destacar, isso sim, é a dualidade impressa em nossa morfologia institucional, na qual convivem, lado a lado, o moderno e o anacrônico, o legal e o extralegal, a norma jurídica (teórica) e a prática política.
Querem um exemplo? Do farto cipoal legislativo – quase 200 mil instrumentos normativos – calcula-se que menos de 1/3 entra na agenda das obrigações. Nossa tríade do Poder inspira-se nos ditames das modernas democracias. Na prática, expressa certo descompasso.
Os entraves que impedem a modernização de padrões políticos partem da relação promíscua entre o poder privado e o poder público, que advém do nosso berço civilizatório e que frutifica até hoje, como se enxerga na árvore e nos galhos do mensalão.
Por isso mesmo, é improvável que eventual condenação de acusados de desviar dinheiro público para cooptação parlamentar mude a cultura política. Aliás, não é de hoje a condenação de agentes públicos e privados flagrados com as mãos nos cofres do Tesouro nacional.
A malversação persiste.
Em muitos recantos, vêem-se casos de utilização de dinheiro, serviços e cargos públicos em ações partidárias e individuais. O que chama atenção é a continuidade de uma prática anacrônica ao lado de um sistema moderno como a urna eletrônica, que livrou o eleitor do falseamento do voto, até então uma tradição coronelista.
E por falar em coronéis, será que eles saíram da paisagem? O personalismo, que começa a iluminar os candidatos nesse início de pleito, não é, de certo modo, a sombra do coronelismo? Verbas liberadas aos amigos do governo e represadas aos adversários não expressam o afamado axioma: “aos amigos, pão; aos inimigos, pau”?
Afinal, que áreas se apresentam mais abertas e condizentes com a meta nobre da política, qual seja, a promoção da igualdade sócio-econômica e a ampliação da democracia participativa?
Vejam-se os eixos de nossa democracia. O quadro partidário é um mosaico de visões personalistas. O campo ideológico é uma colcha desbotada. Na frente eleitoral, o retrato está amarelecido na parede. Os eleitores colecionam imagens vagas e difusas de candidatos, fazendo escolhas como consumidores de uma feira, “comprando” aquele que apresenta maior beneficio ao bolso. No exame dos “produtos”, qualidades e atributos de cada um acabam entrando nos compartimentos “candidato do povão”, “amigo dos trabalhadores”, “defensor dos pobres”.
Maximizar o ganho - eis a equação de ontem e de hoje. Donde resulta a hipótese de que assuntos abstratos para as massas não influenciam muito as urnas, a não ser para consolidar posições já assumidas por grupos opostos, como tucanos e petistas.
Pode-se, até, dizer que evoluímos um pouco com a adoção do voto racional, que se expande nos conjuntos sociais, permitindo enxergar escolhas coladas em núcleos de referência (sindicatos, associações, clubes, categorias profissionais). E também defender a tese de que a elevação dos padrões de vida de grupamentos propicia um voto mais crítico e seletivo.
Da engenharia política brasileira, cujos alicerces, como se viu, estão cravados nos terrenos do conservadorismo, do personalismo, da imbricação entre a coisa pública e o interesse privado, sobram estreitas margens de modernização.
A estratégia para reordenar a política requer a conjunção de esforços envolvendo os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e os sistemas de defesa e controle, com a clarificação dos papéis do MP e da PF.
Dá para alterar os padrões políticos sem mexer no arsenal legislativo? Que disposição o Executivo tem para apoiar a reforma de práticas políticas? Sem o engajamento de todos os Poderes, é utopia imaginar que o julgamento do mensalão semeará a moral e a ética nos jardins da política.
05 de agosto de 2012
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação
O otimismo parte do pressuposto de que crimes políticos ganharão, doravante, um basta do império da lei. A expectativa é de que os luminares da justiça fecharão as portas ao ciclo de desmandos na política e descortinarão um novo tempo, sob a égide de padrões éticos e princípios morais.
A hipótese de que a decisão da Suprema Corte sobre o escândalo político seja um marco na história do país imbui-se, também, da crença de que a comunidade nacional assistirá a um julgamento isento e justo, posto que foram obedecidos os trâmites do contencioso de 50 mil páginas e 600 testemunhas e garantidas amplas condições de defesa aos 38 réus nele implicados.
Há razões para se apostar tanto na reordenação de nossa modelagem política, quando se sabe que reformar implica enterrar arraigados costumes, cortar privilégios, reduzir posições de grupos, enfim, travar uma guerra de muitas frentes, nas quais, como lembra o professor Samuel Huntington, inimigos e aliados mudam constantemente de lado?
O momento que vive o país, vale registrar, é propício para avanços na trajetória institucional, podendo acolher novos traços na morfologia política e comportamentos menos estabanados dos agentes políticos. Até aí tudo bem. Mas essa situação alvissareira não permite aduzir que a mais alta Corte do país, ao julgar o processo mais caudaloso de sua trajetória, consiga redesenhar o modus operandi da política.
Em se tratando desses trópicos que dão abrigo a mazelas seculares, a lição do velho Confúcio pode servir de bússola: “se queres prever o futuro, estuda o passado”. É ingenuidade pensar que, num simples passe de mágica, o Brasil terá condições de trocar de identidade.
Na acepção aqui usada, identidade quer significar os traços característicos da forma de pensar e fazer política, as cargas culturais formadas e desenvolvidas nos ciclos históricos, os vícios de nossa tradição, os valores e princípios que pincelam o ethos nacional. O que se pode destacar, isso sim, é a dualidade impressa em nossa morfologia institucional, na qual convivem, lado a lado, o moderno e o anacrônico, o legal e o extralegal, a norma jurídica (teórica) e a prática política.
Querem um exemplo? Do farto cipoal legislativo – quase 200 mil instrumentos normativos – calcula-se que menos de 1/3 entra na agenda das obrigações. Nossa tríade do Poder inspira-se nos ditames das modernas democracias. Na prática, expressa certo descompasso.
Os entraves que impedem a modernização de padrões políticos partem da relação promíscua entre o poder privado e o poder público, que advém do nosso berço civilizatório e que frutifica até hoje, como se enxerga na árvore e nos galhos do mensalão.
Por isso mesmo, é improvável que eventual condenação de acusados de desviar dinheiro público para cooptação parlamentar mude a cultura política. Aliás, não é de hoje a condenação de agentes públicos e privados flagrados com as mãos nos cofres do Tesouro nacional.
A malversação persiste.
Em muitos recantos, vêem-se casos de utilização de dinheiro, serviços e cargos públicos em ações partidárias e individuais. O que chama atenção é a continuidade de uma prática anacrônica ao lado de um sistema moderno como a urna eletrônica, que livrou o eleitor do falseamento do voto, até então uma tradição coronelista.
E por falar em coronéis, será que eles saíram da paisagem? O personalismo, que começa a iluminar os candidatos nesse início de pleito, não é, de certo modo, a sombra do coronelismo? Verbas liberadas aos amigos do governo e represadas aos adversários não expressam o afamado axioma: “aos amigos, pão; aos inimigos, pau”?
Afinal, que áreas se apresentam mais abertas e condizentes com a meta nobre da política, qual seja, a promoção da igualdade sócio-econômica e a ampliação da democracia participativa?
Vejam-se os eixos de nossa democracia. O quadro partidário é um mosaico de visões personalistas. O campo ideológico é uma colcha desbotada. Na frente eleitoral, o retrato está amarelecido na parede. Os eleitores colecionam imagens vagas e difusas de candidatos, fazendo escolhas como consumidores de uma feira, “comprando” aquele que apresenta maior beneficio ao bolso. No exame dos “produtos”, qualidades e atributos de cada um acabam entrando nos compartimentos “candidato do povão”, “amigo dos trabalhadores”, “defensor dos pobres”.
Maximizar o ganho - eis a equação de ontem e de hoje. Donde resulta a hipótese de que assuntos abstratos para as massas não influenciam muito as urnas, a não ser para consolidar posições já assumidas por grupos opostos, como tucanos e petistas.
Pode-se, até, dizer que evoluímos um pouco com a adoção do voto racional, que se expande nos conjuntos sociais, permitindo enxergar escolhas coladas em núcleos de referência (sindicatos, associações, clubes, categorias profissionais). E também defender a tese de que a elevação dos padrões de vida de grupamentos propicia um voto mais crítico e seletivo.
Da engenharia política brasileira, cujos alicerces, como se viu, estão cravados nos terrenos do conservadorismo, do personalismo, da imbricação entre a coisa pública e o interesse privado, sobram estreitas margens de modernização.
A estratégia para reordenar a política requer a conjunção de esforços envolvendo os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e os sistemas de defesa e controle, com a clarificação dos papéis do MP e da PF.
Dá para alterar os padrões políticos sem mexer no arsenal legislativo? Que disposição o Executivo tem para apoiar a reforma de práticas políticas? Sem o engajamento de todos os Poderes, é utopia imaginar que o julgamento do mensalão semeará a moral e a ética nos jardins da política.
05 de agosto de 2012
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação
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