"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quarta-feira, 8 de agosto de 2012

O HISTÓRICO ENCONTRO ENTRE MUSSUM E AUBERON WAUGH


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Mussum estava sempre, e de alguma forma, brigando contra algum poder constituído, fosse o policial, o comandante, o chefe, o dono do bar. Diante de qualquer postura autoritária, se rebelava radicalmente.

Ontem mesmo estava lendo um texto do meu livre-pensador preferido, o jornalista inglês Auberon Waugh (1939-2001), no qual ele discorria sobre as vantagens da monarquia.

Naquele momento, tive uma iluminação, dessas que hoje me exigiria óculos de sol e filtro solar fator 30. Acho que entendi, naquele momento, e sem desconsiderar a minha dose diária de modesta genialidade, a razão pela qual os usuários do Facebook elegeram como a grande estrela da temporada aquele cujo nome quase ninguém sabia, mas cuja alcunha era famosa: Mussum.

Circulam pelo Facebook montagens de fotos do Mussum para todos os gostos. Até repaginado como Martinho Lutero. Mas antes de avançar, uma explicação sobre o nosso personagem: Mussum, cujo nome era Antônio Carlos Bernardes Gomes, tornou-se famoso no Brasil como o humorista do quarteto Os Trapalhões (Didi, Dedé, Mussum e Zacarias). Carioca, nasceu em 1941 e morreu em 1994.
Seu personagem era famoso por uma retumbante paixão pela bebida (cerveja e cachaça). Na maior parte das esquetes que protagonizava, a bebida era sua coadjuvante. Estava sempre bebendo, ou querendo beber, mas sempre parecia devidamente sóbrio. Um cavalheiro.

O fato de ser negro também ajudava nas piadas, a favor dele e contra ele. Satirizava e era satirizado. Era o seu espírito, que contribuiu para formatar o espírito do programa. N’Os Trapalhões, não parecia haver assunto que fosse tabu. Ninguém escapava das piadas: brancos (“leite azedo”), negros (“azulão”), anões (“pintor de rodapé”), feios (“filho do saci”), gordos (“rolha de poço”), carecas (“aeroporto de mosquito”) et cetera.

Mussum estava sempre, e de alguma forma, brigando contra algum poder constituído, fosse o policial, o comandante, o chefe, o dono do bar. Diante de qualquer postura autoritária, se rebelava radicalmente. Mesmo que seu comportamento houvesse causado tal reação, parecia estar nos dizendo a todo momento que a ninguém era legítimo iniciar qualquer tipo de violência, moral ou física. Palmas para o roteirista.

Sua atitude convenientemente debochada servia de escudo e lança; poderia ser usado para proteção e contra-ataque. Em ambos os casos, sua arma era sempre a piada, pedestre, vulgar, daquelas que se comunicam com todos, do porteiro ao grande empresário. Olhando em restrospecto, é possível perceber uma certa sofisticação na criação das esquetes, por mais rasteiros que fossem os gracejos.

Até onde o meu brilhantismo aristocrático me deixa ver, Mussum enfrentava a todo momento as questões políticas mais profundas que estão fora do círculo estreito da política formal e partidária, ou seja, o problema político das relações dentro da sociedade, quer seja o individualismo versus o coletivismo, a autoridade versus o autoritarismo, a liberdade versus a servidão voluntária.
Não é preciso ser muito astuto para perceber a natureza da crítica à mentalidade estatista de parte da sociedade e a intervenção do governo na esquete “O governo tá certis”. Mais palmas para o roteirista.

Num encontro imaginário, não creio que Mussum discordaria desse texto de Auberon Waugh:
“Sempre que um político fala sobre ‘as frustrações das pessoas comuns excluídas do processo decisório’, eu tendo a levantar minhas sobrancelhas. Obviamente, os políticos sofrem de extrema frustração quando excluídos desse processo – mas as pessoas comuns? Essa frase parece resumir um aspecto da doença política sobre a qual eu escrevo frequentemente aqui: a recusa das pessoas, que sofrem do desejo de impor decisões políticas sobre os outros, em acreditar que nem todo mundo é atingido da mesma forma”.
Evidentemente, não tento colocar Auberon e Mussum no mesmo patamar, até porque são incomparáveis pelo que eram e pelo que decidiram fazer com seus talentos. O aspecto mais interessante em reunir ambos num mesmo artigo, que embora despretensioso padece da pretensão de genialidade, é expor que, sim, é possível tratar de temas importantes de forma popular, ou por meio de uma linguagem comicamente mais pedestre ou de uma linguagem aristocraticamente witty.

E por que Mussum virou a estrela da temporada do Facebook? Gostaria de acreditar que foi pelos atributos que apontei; que, de certa forma, Mussum seria também, mesmo involuntariamente, um símbolo contra a tolice politicamente correta e um defensor das liberdades. Mas, cavalheiros, não sou tão otimista ou ingênuo a ponto de desconsiderar que sua redescoberta se deve ao fato de que a maioria vê nele a representação de uma graça perdida em tempos de Dilmaquinista.

08 de agosto de 2012.

Bruno Garschagen

Referência:

Auberon Waugh. “Let’s All Lie Down and Die”, in Kiss me Chudleigh – The World According to Auberon Waugh, London: Coronet, 2010.
Bruno Garschagen é mestre em Ciência Política e Relações Internacionais pelo Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa e Universidade de Oxford.

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