Na Itália democrática de 1986, a anárquica Rádio Radicale queria saber o que
pensavam seus ouvintes e ofereceu um número de telefone grátis, prometendo
colocar no ar, sem cortes, todas as mensagens de um minuto que fossem gravadas
anonimamente nas suas secretárias eletrônicas.
Durante um mês, dia e noite, todo o país ouviu estupefato uma torrente dantesca de insultos, xingamentos, preconceitos, canalhices, palavrões, blasfêmias e covardias.
Milaneses contra napolitanos, romanos esculachando sicilianos, napolitanos detonando florentinos, pobres amaldiçoando ricos, ricos debochando de pobres, fascistas achincalhando comunistas e vice-versa, mulheres barbarizando homens, gays, o papa, num vale tudo de todos contra todos, até a rádio ser fechada sob a acusação de vilipendiar as instituições e fazer apologia do fascismo.
Para um estrangeiro como eu, o festival de ódio turbinado pela exuberante verve peninsular era de matar de rir, mas para meus amigos italianos era de matar de vergonha. Como se odiavam, como eram ressentidos, invejosos, intolerantes, apesar dos seus séculos de cultura e civilização, lamentavam os intelectuais.
Os políticos tentavam minimizar como um "desabafo nacional" passageiro. O vero é que a combinação de liberdade e anonimato trouxe o pior dos italianos à tona, sem censura, do fundo do coração. E, como dizia minha avó, a boca fala das abundâncias do coração. Pelo menos eles perderam algumas velhas ilusões e ficaram se conhecendo melhor.
Mas, nem o anarquista mais otimista poderia imaginar que era apenas uma modesta antecipação da plena liberdade de opinião na era da internet. Hoje, qualquer um pode descarregar anonimamente todos os seus ódios, insultos e maldições sobre quem ou o que quiser, em texto, áudio ou vídeo. Não apenas suas opiniões, crenças ou ideologias, mas todos os dejetos digitais que revelam mais do malfalante que do malfalado.
Nelson Rodrigues dizia que, se todo mundo soubesse da vida sexual de todo mundo, ninguém falaria com ninguém. Imaginem se todos soubessem os nomes e as caras dos autores das mensagens de ódio na internet.
24 de agosto de 2012
Nelson Motta - O Estado de São Paulo
Durante um mês, dia e noite, todo o país ouviu estupefato uma torrente dantesca de insultos, xingamentos, preconceitos, canalhices, palavrões, blasfêmias e covardias.
Milaneses contra napolitanos, romanos esculachando sicilianos, napolitanos detonando florentinos, pobres amaldiçoando ricos, ricos debochando de pobres, fascistas achincalhando comunistas e vice-versa, mulheres barbarizando homens, gays, o papa, num vale tudo de todos contra todos, até a rádio ser fechada sob a acusação de vilipendiar as instituições e fazer apologia do fascismo.
Para um estrangeiro como eu, o festival de ódio turbinado pela exuberante verve peninsular era de matar de rir, mas para meus amigos italianos era de matar de vergonha. Como se odiavam, como eram ressentidos, invejosos, intolerantes, apesar dos seus séculos de cultura e civilização, lamentavam os intelectuais.
Os políticos tentavam minimizar como um "desabafo nacional" passageiro. O vero é que a combinação de liberdade e anonimato trouxe o pior dos italianos à tona, sem censura, do fundo do coração. E, como dizia minha avó, a boca fala das abundâncias do coração. Pelo menos eles perderam algumas velhas ilusões e ficaram se conhecendo melhor.
Mas, nem o anarquista mais otimista poderia imaginar que era apenas uma modesta antecipação da plena liberdade de opinião na era da internet. Hoje, qualquer um pode descarregar anonimamente todos os seus ódios, insultos e maldições sobre quem ou o que quiser, em texto, áudio ou vídeo. Não apenas suas opiniões, crenças ou ideologias, mas todos os dejetos digitais que revelam mais do malfalante que do malfalado.
Nelson Rodrigues dizia que, se todo mundo soubesse da vida sexual de todo mundo, ninguém falaria com ninguém. Imaginem se todos soubessem os nomes e as caras dos autores das mensagens de ódio na internet.
24 de agosto de 2012
Nelson Motta - O Estado de São Paulo
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