Minhas mais antigas memórias políticas vão completar meio século. Era a campanha pelo fim do parlamentarismo, imposto pelos golpistas civis e militares em 1962 para que Jango tomasse posse após a renúncia de Jânio.
Houve intensa participação popular e o rádio teve papel destacado.
O presidencialismo ganhou fácil e o estancieiro reformista governou, com plenos poderes presidenciais, durante pouco mais de um ano. Prelúdio em dor maior.
Uma segunda lembrança, na véspera do golpe militar, foi Jango no Automóvel Clube, centro do Rio, como convidado de honra numa festa promovida pela Associação de Sargentos e Suboficiais da Polícia Militar.
Num discurso inflamado, radicalizou a defesa das Reformas de Base, prometidas no grande comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964, e denunciou as manobras golpistas. Entregou de vez o pescoço aos carrascos.
Direita e esquerda disputavam espaço, verbalizando as posições de classe de uma sociedade que exigia mudanças e era assediada pelo clima sombrio da Guerra Fria.
Olhando para trás, vejo o desnível abissal entre os políticos de então e os de hoje.
Começo com Carlos Lacerda, comunista na juventude e golpista profissional desde o início dos anos 50. Jornalista e orador brilhante, chegava a intimidar seus adversários políticos quando discursava, pela extraordinária capacidade que tinha para improvisar. O Corvo, como Lan o desenhou para ilustrar matéria de Samuel Wainer, não era fácil.
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MEDIOCRIDADE
Discordo de cada pedaço de sua trajetória de udenista antidemocrático, de suas articulações antipopulares, mas sou forçado a reconhecer que ele está a anos-luz da mediocridade dos políticos que andam pedindo nosso voto. A direita também tinha seu brilho.
Uma historinha do Corvo.
Viajou alegre a Paris para “explicar” o golpe de 1964. Numa entrevista coletiva, um jornalista francês ironizou:
“Por que as revoluções sul-americanas são sempre sem sangue ?”.
Lacerda nem pestanejou:
“Porque são semelhantes às luas-de-mel francesas”.
Uma Câmara de Vereadores lotada para ouvir discursos de um político. Nem o mais delirante dos místicos, o mais descontrolado surrealista, imaginaria uma cena dessas.
E, no entanto, meus caros, isso já aconteceu. Aparício Torelly, o Barão de Itararé, foi vereador no então Distrito Federal pelo PCB.
Eleito em 1946, usou slogans inesquecíveis na campanha.
Um deles: “Mais água e mais leite, mas menos água no leite !”. Muita gente ia à Câmara só para ouvi-lo.
Quando forças reacionárias conseguiram, em 1947, a cassação do partido, ele se despediu com um discurso antológico, em que terminava dizendo: “Saio da vida pública e entro na privada”. Grande Barão !
Em outubro, elegeremos prefeitos e vereadores. A época dos grandes comícios ficou no passado. Hoje, as ferramentas mais usadas para convencer o eleitorado são os meios eletrônicos e a linguagem planejada/enganosa dos marqueteiros.
A preços monumentais. A eleição do prefeito de São Paulo, por exemplo, pode custar RS 40 milhões ao vencedor. A cereja do bolo é o chamado horário eleitoral gratuito das televisões.
O nível geral é deplorável.
Acompanhei, por duas semanas, a propaganda dos candidatos a vereador. É um choque brutal, mas reflete muito bem em que se transformou a atividade política. Valeu a pena e compartilho minhas reflexões. Com exceções moleculares, as siglas deixaram de ter qualquer significado.
Projetos ideológicos deram lugar a uma gelatina indiferenciada, não raro demagógica e oportunista. Ao invés de educar politicamente os eleitores, os candidatos repetem, mecanicamente, frases vazias e propostas incompreensíveis. Eliminaram a fronteira entre esquerda e direita.
Há uma enxurrada de religiosos candidatos e apoiadores de candidatos. Nada tenho contra quem tem fé, mas o lugar para o exercício dela não seriam os templos ? Será que estão nos oferecendo um Estado clerical ? Oportunismo barato, mas que ganha votos em grotões e currais, numa população habituada a desconfiar dos polítcos “profissionais”.
Estão querendo reeditar as capitanias hereditárias. Há pais e mães reivindicando votos para seus filhos queridos. É o voto DNA. O Neguinho da Beija-Flor está pedindo votos para sua esposa, que concorre pelo PT.
O neto do Brizola apela para o ectoplasma do avô. Que radicalizem e defendam de uma vez a volta da monarquia. Serviço completo.
Nomes e apelidos, digamos, exóticos, enfeitam (ridicularizam ?) o quadro. Dudu Bodinho, Chapisco, Cabeção, Palhaço Seboso, Carlinhos Míssil, Chico Mé, Renata do Bole-Bole (epa!), Panela, Hélio do Alho. A lista não tem fim. Seria charmoso, pitoresco, mas apenas serve para ofuscar o principal: nenhum deles parece ter a menor ideia do que é ser legislador público.
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FARSA GROTESCA
Participam de uma farsa grotesca, reedição maquiada da Lei Falcão da ditadura.
Têm alguns segundos para balbuciar meia dúzia de palavras. Os menos afortunados apenas sorriem, levantam o polegar. Nada que se assemelhe a um debate sério.
É o MERDA – Método Enéas de Rajadas Discursivas Apopléticas em ação.
No mais, há doutores paramentados com seus jalecos e estetoscópios (ah, nossa velha e renitente tradição bacharelesca), mentirosos (como o cidadão que disse ter acabado com os sequestros no Rio), artistas decadentes, diretores do Flamengo (que não se envergonham de usar a popularidade do time de futebol para enganar os eleitores; afinal de contas, trata-se de campanha para a Câmara de Vereadores, não para gerente de clube ou de estádio de futebol), tios e tias (recreadores de festas infantis).
Nas ruas, apenas gente alugada para fazer propaganda. Militância orgânica ? Onde ? As esquerdas que não desistiram da proposta socialista têm, infelizmente, baixa capilaridade social e poucos recursos para usar com eficiência os meios de comunicação de massa. Resultado: poucos votos. Se a revolução não passa pela televisão, bem, aí a conversa é outra.
A esse teatro burlesco chamam democracia.
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