por NOEMI JAFFE
A Cruz Vermelha, após libertá-los, levou os prisioneiros para Malmö, na Suécia, onde eles permaneceram em quarentena. Lá, com suas três primas, que sobreviveram aos campos de concentração, principalmente por terem conseguido trabalhar na cozinha, ela escreveu um diário de guerra.
Nele, procura reconstituir suas lembranças mais importantes, desde a captura até a libertação, narrando os acontecimentos como se estivesse registrando-os no momento, ou imediatamente depois de sua ocorrência.
Daí algumas imprecisões cronológicas e factuais, que decidi manter para ser fiel à escrita original. Atualmente, o diário se encontra no Museu do Holocausto, em Jerusalém.
Em fevereiro de 2009, eu e minha filha Leda fizemos uma viagem até a Alemanha e Polônia (Varsóvia, Cracóvia e Auschwitz), tentando reconstituir parte do trajeto de minha mãe durante a guerra.
O resultado dessa viagem é o livro O que os Cegos Estão Sonhando?, a ser publicado em outubro, com a edição integral do diário de LIWIA JAFFE, atualmente com 85 anos, e um misto de memórias, reflexões e ficção escritas por mim, além de um depoimento final de Leda. Parte desse livro aparece pela primeira vez aqui.
SENTA,[1] 25 DE ABRIL DE 1944_Todos à minha volta, assim como eu, estamos tristes. Sabemos o que está acontecendo e também o que acontecerá. Meu pai está sentado no sofá, durante a manhã toda, calado, fitando o nada. Por vezes, olha-nos e fecha os olhos tristes. Minha mãe nos con-sola: não acredita no mal, porém está ar-rumando as malas, faz doces e suspira fundo, sem que ninguém possa ver.
Meu irmão e eu observávamos e, sendo duas crianças, saímos para chorar. Ninguém nos conta nada, mas sabemos o que está acontecendo. Sabía-mos que no dia seguinte, às 8 horas, os alemães viriam nos buscar e nos arrancar de nosso lar.
26 DE ABRIL_Levantamo-nos bem cedo. Tudo estava arrumado. Chegaram na hora certa! Eram sete.
Um deles sentou-se junto à mesa e começou a escrever. O segundo olhou as nossas coisas e deu uma ordem:
– Arrumem suas tralhas daqui a cinco minutos. São coisas para duas se-manas. Levem comida e saiam da casa!
Está chovendo. Estamos juntos. Nossa família junto com as outras famílias judias. Vão nos levar para a escola judaica. Duas mulheres alemãs nos revistam, um por um, à procura de joias. Estamos dormindo no chão.
27 DE ABRIL_Às quatro da manhã nos escorraçam de um modo pior do que animais são tratados. Chove sem parar. Lama até os joelhos. Mulheres velhas e crianças pequenas choram. Os alemães batem em todos e gritam:
– Judeus sujos!
Nossos pés se colam à lama. Chegamos ao trem de carga com muita dor. Somos 65 pessoas em cada cabine. Não sabemos para onde estão nos levando. Mamãe nos abraça e engole as lágrimas. Estamos viajando o dia todo e nem pensamos em comida. Dormimos sentados do jeito que estávamos.
SZEGED,[2] 28 DE ABRIL_Chegamos às 11 horas com nossas bagagens nas costas, cansados. Andamos 5 quilômetros dentro da cidade. Horrível! Velhos e crianças choram, pedem ajuda. Em vão. Quem não andava apanhava. Jogamos fora muitas coisas para o peso ficar mais leve. Chegamos, com muita dificuldade.
Colocaram-nos, 65, num só quarto e ordenaram:
– Vocês devem deixar o local limpo! Levantar às cinco e meia da manhã e dormir às dez da noite! Escolham alguém do grupo para ser responsável pela ordem.
Queriam escolher mamãe. Ela não aceitou. Ficamos ali durante um mês. Comendo pó. Tínhamos ainda comida que havíamos trazido de casa.
19 DE MAIO_Inesperadamente nos expulsam da escola à meia-noite. Está escuro, não enxergamos nada. Gritaria. Pedimos que acendessem as luzes. Por sorte, conseguimos. Fora, esperava-nos uma carroça para carregar as nossas malas. Na estação de trem, tivemos de ficar numa fila. Dividiram os pacotes. Novamente dentro de vagões. Viajamos a noite inteira.
BAJA,[3] 20 DE MAIO_Chegamos pela manhã. Enfiaram-nos numa fábrica de móveis próxima à estação. Como éramos muitos, nos dividiram em dois grupos. Metade ficou na fábrica. A outra metade, também nós, acabou conduzida a um simples chiqueiro. Nós mesmos tivemos de limpar o lugar. Forraram o chão gelado com areia limpa. Ali ficamos por nove dias. Papai ficou muito doente, febre alta. Minha velha mãe também se resfriou, ficou fraca. Mamãe mostra-se forte, mas percebemos tudo. Ela nos olha o tempo todo e se esforça para tornar as coisas mais leves para todos nós. Diz que não lhe dói nada, não sente dificuldade alguma. Ela e papai suportariam juntos o dobro das coisas para que não sofrêssemos.
28 DE MAIO_Tivemos de formar uma fila às 9 horas. Os alemães fizeram uma contagem das pessoas. E nos levaram. Na mesma noite deixamos ‘‘nosso” chiqueiro e fomos conduzidos à estação. Setenta dentro de um vagão, com os pacotes, que foram atirados para dentro depois de termos entrado. Papai e mais alguém procuravam pôr alguma ordem ali. Arrumaram os pacotes. Cada um pôde se sentar sobre as suas próprias coisas.
Viajamos durante seis dias. Sem água, sem comida. Papai tem febre o tempo todo. Mas se faz de forte. Mamãe nos consola, nos abraça. Minha velha mãe chora. Doem-lhe as costas. Nem consegue ficar sentada mais.
AUSCHWITZ, 4 DE JUNHO_Mandaram-nos sair dos vagões sem os pacotes. Separaram homens e mulheres. Papai com meu irmão. Nós quatro numa outra fileira. Mamãe, minha priminha de 4 anos, meu primo de 8 e eu. Fila longa. Ouvimos um alemão gritar de longe: direita, esquerda... Quando chegamos mais perto, mamãe escondeu-me debaixo do casaco dela, que ela ainda possuía, esperando evitar que nos separassem.
Chegamos até o primeiro alemão. Mandou ir para a esquerda. Um outro nos examinou e nos deixou passar. Mas o terceiro ordenou que eu fosse para o lado direito. Éramos muito jovens. Eu e minha amiga Kátitza Blaier chorávamos juntas. Ela chegou depois de mim e disse que mamãe lhe gritava de longe que tomasse conta de mim.
À meia-noite entramos no campo de concentração. Caminhamos muito até chegar a um banheiro. Entramos. Dentro, estava cheio de alemães e alemãs que tiraram de nós tudo o que tínhamos ainda. Em seguida, precisamos ficar nuas e entrar num outro lugar. Havia somente mulheres ali. Cortaram os nossos cabelos. Sentia muito por meu cabelo, mas, quando pensava em meus pais, não sentia nenhuma outra dor. Tomamos um banho com água quente. Levaram-nos, molhadas ainda, para um lugar seco, onde recebemos vestidos. Era algo terrível, mas ainda assim ríamos. Uma mulher de uns 30 anos recebeu um vestido infantil curto. Tentou devolver, mas não trocaram. Algumas só recebiam uma saia sem blusa, outras só blusas sem saias. Sentia frio, nua e molhada, parada em pé ali até que chegasse a minha vez. Ganhei um vestido preto longo. Disseram-me que tenho sorte. Puseram-nos novamente em fila diante do banheiro.
Estava escuro… Era uma da manhã. Pouco mais tarde, quando os olhos se acostumaram com a escuridão, percebi que havia homens ao nosso lado. Procurava por conhecidos e então vi papai e meu irmão, que me indagavam onde estava mamãe. No momento em que tenta-va responder, vieram uns alemães e me levaram dali. Não se enxergava nada em volta. Havia fogo, chamas, e dava a impressão de que cada vez mais nos aproximávamos do fogo. Tínhamos medo, mas não chorávamos. Havia entre nós quem chorasse e gritasse e esses eram levados para um outro lugar, sei lá para onde.
Chegamos a uma construção de madeira que chamavam de “bloco”. Mil de nós fomos enfiados nesse “bloco”. Dentro também estava escuro e ouvia-se apenas uma voz rude que ordenava gritando:
– Sente-se onde estiver!
Senti um cimento úmido. Não me sentei, ajoelhei apenas. De madrugada nos mandaram sair. Mostraram como devíamos ficar paradas e leram as regras de como devíamos nos comportar. Levantar diariamente às três da madrugada, ir em fila até o banheiro, voltar em fila. Ficar em fila de cinco, que era chamada de Zeltappell.[4] Às cinco, viria um alemão que faria a contagem de quantos éramos. Às seis, seria distribuído um café e, quando ouvíssemos um sino, o Zeltappell estaria encerrado. Feita a revista, de volta ao pavilhão, em filas. Ao anoitecer, às seis da tarde, seria distribuí-do o jantar: 200 gramas de pão, sopa e uma colher de margarina.
Ficar em pé das três às seis era horrível. Quando percebíamos que não havia um alemão por perto, nos abraçávamos para não sentir tanto frio. Mal podíamos esperar por aquela água negra e quente – café aquilo não era. Uma tarde daquelas nem consegui morder o pão. Parecia um pedaço de tijolo. De fato, era feito de pó de madeira. No primeiro dia, não comi nada. Nem no segundo. Mas, depois, precisava. Eu tinha fome.
Num campo, éramos 30 mil – trinta blocos com mil pessoas cada. Campos iguais, um ao lado do outro – havia uns vinte e, mais longe, onde nem a vista chegava, havia mais. O campo tinha 1 quilômetro de comprimento. No final, havia uma guarita. O campo era cercado por arame eletrificado. Havia oito crematórios sempre acesos. Podiam-se ver as chamas.
4 DE JULHO_Ontem chegamos ao campo C. Como já não escrevo faz um mês, escreverei sobre o passado. No começo, eu passava fome e sofria muito. Nosso pavilhão era defeituoso. Quando chovia, ficávamos molhados como se estivéssemos fora, debaixo da chuva. As camas – se posso chamá-las assim – eram apenas estruturas de madeira, umas sobre as outras, três andares, com doze pessoas em cada estrutura. Frequentemente acontecia de desabarmos. Eu queria sempre ficar no andar mais alto; não havia pó e eu sentia que tinha um pouco mais de ar. Dormíamos como sardinhas em lata. Quando começava a nos doer o lado direito, sobre o qual estávamos deitadas, precisávamos deitar para o outro lado, juntas. Em casos como este é que caíamos. Aquelas sobre as quais desabávamos gritavam de dor, claro. No dia seguinte, a punição: não recebíamos comida alguma. E isso se repetia diariamente. Certo dia, Alice, minha prima, trouxe uma batata e um pedaço de repolho. Dividimos tudo em quatro pedaços e comemos como se fosse a refeição mais deliciosa.
6 DE JULHO_À tarde, depois da revista do pavilhão, apareceu um homem com uma faixa vermelha no braço. Ele era chamado de kapo. Era o inspetor da cozinha. Escolheram mulheres fortes para a cozinha. Minhas três primas foram escolhidas entre quarenta mulheres. Eu estava fora dali naquela tarde, porque fui ver a Kátia. Quando cheguei, me contaram; fiquei desesperada; não queria me separar delas.
As quarenta escolhidas tinham de ficar fora da fila.
Chovia forte. Eu tinha uma blusa fina de véu com saia preta. Devíamos ficar em pé. Não podíamos sequer erguer as mãos. Quando terminou a revista, queria me enxugar um pouco com as mãos e, assustada, vi que não havia mais blusa em mim: se desfez com a chuva. Como não podia ficar em pé ali, nua, apanhei o minúsculo cobertor que já tínhamos e fiquei parada assim.
Eu e minhas primas decidimos não comer nada naquele dia. Trocamos a comida por roupas e, com isso, arrumamos um vestido para mim.
Depois disso pensamos que eu poderia juntar-me a elas na fila. Na manhã seguinte, saímos para a revista. Havia muitas de nós com cobertores. Eu estava no fim da fila e, no momento em que ninguém viu, joguei o cobertor e fiquei junto de minhas primas. Consegui. Logo depois, vieram fazer a contagem.
– Havia quarenta aqui, que eu contei; agora deveria ter quarenta, mas tem 41!
A alemã berrava furiosa:
– Se aquela que não tinha sido escolhida não se apresentar, todas serão punidas.
Não me apresentei. Estava pronta para o pior.
A alemã furiosa começou a selecionar de novo. Chegou a nossa vez. Sem uma palavra, separou minhas primas e parou diante de mim. Todos me consideravam criança: era pequena e sem cabelos parecia ter uns 15 anos.
– Escolhi você ontem?
– Sim, senhora.
– Mas você é pequena ainda e não precisa cozinhar.
– Certo. Mas não sou pequena. Tenho três primas e gostaria de ficar com elas.
Era furiosa, mas comigo brincava. Chegou a gostar de mim. Deixou-me ficar e dispensou outras cinco.
Recebemos roupas. Deram-me um vestido bonito.
Não tinha mais medo. Sempre ficava agora à frente das demais.
2 DE AGOSTO_Passou-se quase um mês desde que estou na cozinha. Eu me acostumei ao fato de que tínhamos tanta comida quanto precisássemos. Mas isso não bastava. Tínhamos muitos conhecidos passando fome. Não podíamos ficar vendo-os inertes. Era muito perigoso roubar, ainda que de modo organizado. Coitado daquele que fosse apanhado por um alemão! Ainda assim, começamos. Uma vez que os nossos conhecidos não estavam em nosso campo, tínhamos deentregar tudo pela cerca eletrificada. Apenas eu tinha coragem. O primeiro alemão que visse atiraria imediatamente. Minha mão não podia tocar no arame eletrificado, porque isso também era a morte. Mas eu não temia, não tinha medo da morte. Encarava tudo com frieza. Era assim todos os dias.
Anteontem, Hajnal,[5] uma de minhas primas, trouxe de novo quase 1 quilo de margarina. Alice escondeu logo entre os repolhos, com a intenção de tirar de lá de noite, antes de voltarmos ao barracão. Então, uma das garotas pediu que Alice lhe desse um pouco de margarina, porque ela não tinha nada.
Alice lhe respondeu que prestasse atenção para que ninguém a percebesse enquanto retirava a margarina. Mas apareceu uma alemã e a viu.
– O que você está fazendo?
Alice, assustada, respondeu:
– Peguei um pouco de margarina.
– Como assim?
– Bem, somos quatro irmãs... como não estamos nos sentindo bem, juntamos as nossas porções...
Esbofeteou Alice.
– Mostre-me suas irmãs!
Eu não estava lá. Em meu lugar, uma de nossas amigas se apresentou.
– Ah! São vocês!? Ficarão de joelhos até a revista, que é às 13h30. Se até lá vocês não confessarem quem roubou a margarina, vou jogar as quatro no crematório!
Alice não disse que foi Hajnal. Nem as outras falaram. Enquanto elas estavam ali, de joelhos, retornei. Contaram-me o que havia acontecido. Corri direto para dizer à alemã que eu era a culpada. Por que quatro devem pagar, se eles ficariam satisfeitos com uma só? Eu não tinha medo da morte.
Bati à porta. Entrei. Dentro estava a alemã acompanhada de um alemão.
– Por que você veio? O que você quer?
Naquele instante, eu não conseguia responder. Chorava e, em meio às lágrimas, disse:
– Soltem minhas primas. Elas não são culpadas. Eu roubei a margarina.
Ela correu até mim e me esbofeteou.
– E então você confessa isso assim? De onde você pegou a margarina? E sabe como você vai pagar por isso?
– Sei! Perdão! Vi sobre a mesa e peguei. Não faço nunca mais.
– Agora vou mostrar o que você vai receber por causa disso. Você nunca mais vai ver a luz do sol. Isso eu garanto!
Tentei implorar clemência, mas ela nem queria ouvir.
O alemão perguntou:
– Quantos anos você tem?
Claro que eu disse um ano a menos.
– Dezesseis.
– Dezesseis anos e ainda não sabe que não pode fazer isso?
Olhou a alemã e sussurrou:
– Não seja tão rígida. Você está vendo que ela ainda é jovem.
A alemã, enfurecida:
– Por que você a defende? Irei até o chefe do campo. Ele dará um jeito nela.
E saiu. Enquanto isso, ele me conduziu para fora, até um monte de tijolos. Ordenou que me ajoelhasse e que segurasse um tijolo enorme sobre a cabe-ça. Apanhei o tijolo, mas logo precisei colocar de volta, porque não consegui erguê-lo.
O alemão olhava meu sofrimento. E disse:
– Olhe, se você não se esforçar, ela vai voltar. Sabe o que espera por você?
Levantei o tijolo, com um esforço enorme, mas não conseguia segurar. Caiu sobre a minha cabeça. Pensei que fosse desmaiar. Mas fui forte. Lágrimas caíam de meus olhos feito chuva, não porque eu estivesse arrependida, mas de dor mesmo. Fique ali, de joelhos, por duas horas. Apareceu o alemão e disse:
– Levante-se! Entre na cozinha e continue trabalhando!
Coloquei o tijolo no chão e tentei levantar. O lugar duro em que fiquei ajoelhada machucou tanto meus joelhos que caí. Ouvi novamente a voz do alemão. Quis levantar, mas não consegui. Fiquei sentada uns dez minutos. Depois voltei para a cozinha, onde desmaiei. Minhas primas choravam; puseram compressas frias em mim; me consolaram até eu melhorar.
1º DE SETEMBRO_Tive muitas dores na perna. Já era o segundo dia assim, sem conseguir trabalhar. Pensei que nunca mais seria capaz. Mas não podia fazer nada. Aqueles para quem eu levava coisas estavam famintos. E eu tinha comida à mão. Não suportava a impossibilidade de lhes levar.
* * *
5 DE ABRIL DE 1945_Não estamos nem vivos nem mortos. De 120, sobraram cinquenta. Estamos entre Bendorf e o campo de Bergen-Belsen. Estamos perto de Hamburgo, mas não há como viajar daqui para a frente. Os aviões nos sobrevoam o tempo todo; os homens nos consolam e dizem que a libertação está próxima. Mas não acreditamos. Já tenho dificuldade para falar. Pedimos ao alemão que não nos torture mais; não queremos viver mais, que nos mate. Ele também nos consola:
– Vocês e nós também, estamos todos passando fome. A libertação está próxima. Aguentem mais um pouco.
Estamos em (ilegível).Não sabemos se aguentaremos um dia mais sem comida. Faz seis dias que não comemos. Pedimos, chorando, que o alemão nos mate.
– Está bem, se a vontade de vocês é essa... Nem eu posso ficar vendo o sofrimento de vocês. À tarde, às 3 horas, posso atender ao pedido de vocês.
Agrupamo-nos em turmas de cinquenta. Aguardamos a morte por fuzilamento. São cinco horas em ponto. Os alemães estão prontos. Esperamos em pé o chefe do campo. Chegou às cinco e meia, com o rosto contente:
– Crianças, vocês estão salvas.
À noite chegarão dois caminhões de pão. Os alemães estão todos alegres e todos estão com fome. Retornamos ao vagão. Passou da meia-noite e nada de pão. Gememos em voz alta, mas as nossas vozes não podem ser ouvidas longe.
6 DE ABRIL_Todos os que não morreram estão dentro do vagão, e não estão bem conscientes. Eu também pareço embriagada; não enxergo; parece que tenho espuma na boca. Ao meio-dia chegaram os caminhões com pão. As alemãs mesmo estão cortando e distribuindo. Cada um de nós recebe meio pão com margarina. Trouxeram pão da Suécia. Novamente temos um pouco de forças. Comemos pouco, porque guardamos também para as outras mulheres. De noite, viajamos para mais longe.
Chove. Saímos do vagão. Chegamos às 6 horas. O campo não é longe da estação, mas ainda assim nos molhamos todas até chegarmos. Levaram os doentes (ilegível), nós fomos para o pavilhão. Estava quente, havia aquecimento. Ganhamos comida. Alice e Hajnal foram trabalhar na cozinha e, assim, tínhamos um pouco mais. Recebi remédio para a minha perna.
25 DE ABRIL_Depois da revista pela qual passamos, duas vezes, não retornamos ao bloco. Fomos para a estação. Não nos aguardavam vagões, mas um trem elétrico que nos levou em grupos de sessenta. Retornavam a cada hora. Pela primeira vez me senti semelhante a um ser humano. Dentro do trem, pudemos sentar em assentos forrados. Às cinco, chegamos a Hamburgo. O campo também é próximo à estação. Ali recebemos cada uma um prato de sopa de beterraba. Comemos tudo. No pavilhão, novamente, somos muitas numa cama. Tive sorte: éramos em oito.
HAMBURGO, 28 DE ABRIL_Chove muito há dois dias. Temos uma alemã que nos bate muito; temos medo. Ouvimos secretamente que estão perto de Hamburgo e que, em breve, sairemos daqui também. Pensamos de novo em vagões e fome.
29 DE ABRIL_Uma alemã chegou ao pavilhão e nos expulsou. Ainda chovia. Saímos do campo em filas. Vemos um soldado alemão diante dos portões com uma cruz vermelha. Estamos diante de vagões. Vagões solitários fechados. Palha dentro do vagão. Diante dos vagões, a Wehrmacht e os SS.[6] Não sabíamos o que aquilo poderia significar. Coisas boas não poderíamos suspeitar. Eu queria comer e minhas primas estavam com medo. Gizika dizia o tempo todo:
– Crianças, economizemos o pão, porque não sabemos durante quanto tempo não teremos mais.
PADBORG,[7] 10 DE MAIO_Atravessamos a fronteira alemã. Estamos na Dinamarca. O alemão saltou do trem e gritou:
– Hitler morreu! O trabalho está concluído.
Enfermeiras dinamarquesas, com uniformes brancos da Cruz Vermelha, vêm nos retirar dos vagões. Oferecem doces. Atiram-nos flores e nos levam de ônibus, cinquenta de cada vez. Chegamos a uma propriedade rural. Discursaram para nós. Que não nos aborreçamos por ter de dormir, esta noite, sobre palha. Que levemos em conta que estamos sujas. Ganhamos excelentes cobertores ingleses. Como já estava escuro, não ganhamos comida. Deitamo-nos.
2 DE MAIO[8]_Um trem nos esperava na estação. Viajamos de segunda classe. Assentos de couro, grande limpeza. Dentro, enfermeiras da Cruz Vermelha distribuíram um pacote para cada um. No pacote, dois pedaços de pão branco com manteiga e queijo; dois pedaços de pão escuro com ovos e presunto, com um copo de cacau e um tablete de chocolate.
Os dinamarqueses foram à estação. Enfeitaram o trem com flores. Atiravam dentro do trem balas, chocolate, doces, e o que cada um possuía.
Durante o caminho, eles nos gritam:
– Hurra! (Viva!)
Já estamos viajando há muito tempo. Ao nosso lado, passam vagões com alemães. A enfermeira nos conta que eles estão voltando da Suécia.
COPENHAGUE, 5 DE JUNHO_Chegamos às oito da manhã em Copenhague. O trem parou diante do porto. Já nos aguardava um navio enorme de três andares. Quando saímos do trem, cada pessoa recebeu um litro de iogurte, que bebemos imediatamente, e doces. Depois, para o refeitório. No navio, entravam cinquenta por vez. Sentamo-nos em quatro a cada mesa. Vieram garçons com o cardápio.
– O que desejam?
Não conseguíamos ter palavras. A enfermeira percebeu isso e fez o pedido por nós.
Café com leite quente, flocos de aveia, pão com manteiga e depois bolo.
O mar é lindo. Verde-escuro, transparente. As gaivotas esvoaçam e eu observo tudo, como num sonho. Liberdade maravilhosa. Não há mais cerca elétrica, ninguém nos vigia, comida quanto desejássemos.
Fico imóvel no convés do navio, vejo como as gaivotas brincam, como o mar balança em ondas. Sinto uma alegria até o fundo de minha alma, e as lágrimas escorrem feito chuva. Como minha querida mãe ficaria contente se estivesse comigo. Papai talvez esteja em casa com meu irmão, mas e mamãe? É possível que nunca mais a veja. Sinto a liberdade maravilhosa e sinto saudades de meus pais. Minhas primas me consolam.
Às oito da noite chegamos ao porto sueco de Malmö. Quando o navio aportou, começaram a estourar fogos de artifício festivos. Os habitantes de Malmö estavam quase todos ali. De repente, um profundo silêncio. O ministro do rei veio fazer um discurso em sueco e em alemão. Depois entoaram o hino, outro foguetório, e nos aplaudiram com muita alegria.
– Hurra! Viva! Viva!
Isso durou quase meia hora.
Nós que estávamos no navio derramávamos lágrimas de felicidade. Nos recebem assim, a nós, que há oito dias ainda estávamos sendo espancados, cuspidos, como os mais selvagens dos selvagens – não podia ser verdade. Chorávamos, tínhamos todos o mesmo sentimento. Os suecos perceberam e alguns choravam conosco. Consolavam-nos, não entendíamos o que diziam, mas sentíamos que eles nos consolavam.
Depois vieram cônsules de vários países e cantaram seus hinos conosco. Primeiro, o holandês, porque havia mais deles. A seguir, os tchecoslovacos, os húngaros, e, depois, nós, os iugoslavos. Ainda havia um cônsul do rei iugoslavo, e cantamos Боже правде,[9] nós que não tínhamos nada a ver com política.[10]
Descemos do navio em seguida. Um ônibus nos aguardava. Diante dele, nos deram chocolate quente, bolos, e então tivemos de subir.
A cidade de Malmö é muito bem iluminada, parece o interior de uma casa. Andamos bastante tempo até que o ônibus parou diante de um prédio. Descemos. Era uma casa de banhos.
Primeiro tomamos um banho. Desinfetaram-nos da cabeça aos pés. Em seguida, numa outra sala, um médico nos esperava. Aquelas que estavam doentes foram imediatamente encaminhadas ao hospital. Limparam a ferida na minha perna e nos deram roupas novas. Prontas, limpas, voltamos ao ônibus.
Não andamos muito. Descemos do ônibus, dois a dois, como bons estudantes. Ficamos olhando ao redor como se nunca na vida tivéssemos visto algo bonito. No 1º andar, apenas vinte de nós num quarto. Limpeza absoluta. Flores nas janelas. Camas brancas. Ficamos imóveis em pé. Olhamos uns para os outros; todos têm a mesma expressão. Um médico está parado ali adiante e uma de nós o inquire:
– Senhor, por favor, diga quantas de nós deveremos deitar numa cama?
Pergunta risível, mas ele não sorriu. Sabia o quanto havíamos sofrido até então. Em voz baixa, e em alemão corrente, respondeu:
– Queridas crianças. Vocês estão na Suécia, em que cada ser humano tem amor igual um pelo outro. Não temos arames à nossa volta, vocês estão livres. Vocês irão se alimentar e descansar, o quanto desejarem. Esse será o vosso quarto. Há vinte camas e vocês são vinte também. Entrem e durmam bem!
FOME
No começo a gente não conseguia comer o pão, porque parecia feito de serragem. Depois, quando já sentíamos muita fome, chegávamos a esconder o pão embaixo do travesseiro, para ninguém roubar. Nós éramos quatro e a Gisie dividia o pão em quatro partes, para comermos uma porção e deixarmos as outras duas para mais tarde, porque só tinha pão uma vez por dia. A Gisie era a mais velha, ela era como a chefe de nós quatro: Alice, Hajnal, Gisie e eu.
Parece que a necessidade de comer, para quem passa fome, é mais forte do que a própria necessidade de viver. Havia muito poucos casos de suicídio nos campos de concentração, um gesto que não seria tão difícil. Era só atirar-se contra o arame eletrificado. Mas quase ninguém fazia isso; havia o próximo pão.
Viver, assim, reduz-se praticamente a comer; ou melhor, comer é mais do que viver. Depois de terminada a guerra, quando Liwia estava indo para a Suécia, levada pela Cruz Vermelha, todos lhe ofereciam comida. Chocolates, pão, guloseimas, todos jogavam comida para dentro do trem, felizes de poder alimentar aqueles que tinham passado fome. Mesmo no campo, o assunto principal era a comida, e muitos, provavelmente, sobreviveram para lembrar da comida, para conversar sobre a comida, além de simplesmente para comer. Não se comia para viver; vivia-se para comer.
Saber se relacionar com a comida, dividindo-a em várias partes, guardando-a, barganhando com ela, fazendo do pão uma moeda cara, garantia de mais um dia, para então consagrar-se à próxima busca de pão. Essa manutenção ínfima do corpo e de algum resto de astúcia permitia aos prisioneiros, à noite, durante o trabalho ou em algum momento de conversa, falar sobre outras comidas, mais sofisticadas, gesticular sobre elas e fazer de conta que elas existiam. Parece que os sonhos também eram preenchidos com comida.
O corpo e a alma – Que alma? O que é a alma de um prisioneiro faminto, de qualquer pessoa faminta? A fome faz pensar que a alma é simplesmente uma invenção do corpo, para aqueles que estão abastecidos e não precisam pensar em comida – de uma pessoa com fome são uma demanda permanente por comida. Como se os humanos se tornassem parasitas, vermes enlouquecidos, girando desnecessariamente num vácuo, desesperados atrás de migalhas, não para viver, mas simplesmente para comê-las. Comer para comer.
Esse processo de animalização reforçava a ideia que os nazistas tinham de que osprisioneiros eram mesmo como animais e isso os fazia sentir ainda mais ódio, como se a animalização justificasse a perseguição. Não seria muito mais digno se matar? Por que se humilhar tanto para conseguir um pedaço de pão duro e velho? As pessoas roubavam pão umas das outras, tiravam pão de cadáveres – por quê?
Muitos israelenses condenam os judeus dos campos de concentração por não terem resistido mais e melhor; por te-rem se submetido tão brandamente, animalescamente, por uma ração de sopa, por um pedaço de pão. Há uma inversão e uma perversão nessas ideias. Ninguém que não esteja passando ou tenha passado fome tem a mais remota noção do que ela seja e dos efeitos que ela provoca no comportamento humano, por mais ética que a pessoa seja. Ninguém sabe se a vida ou, mais absurdamente ainda, os valores de alguém são mais importantes do que comer, quando não se tem comida. Da parte dos nazistas, sua tática consistia em transformar os efeitos da carência de tudo – a fome, a sede, o frio, a sujeira – em causa; como se tudo estivesse acontecendo porque os judeus fossem originalmente como animais, e não o contrário. Essa é a formação básica do processo de alienação: trocar os efeitos pelas causas.
Nas páginas do diário de Liwia, como nas de vários outros sobreviventes, fala-se muito de comida. Um nabo, uma fatia de maçã, cascas de batata, metade de uma ração de sopa congelada e infectada, um resto de manteiga, tudo é motivo para viver mais um dia, e a vida, nessas condições, é um dia. Ela conta das batatas podres que comeu, dando muita risada. Comíamos batatas podres como se fosse ouro! Nunca comi nada tão gostoso. Sabe, quando a gente tem fome, tudo parece bom!
Talvez fosse por isso que ela transformava várias comidas, durante a nossa infância, em brincadeira. Tinha as salsichas cortadas em pedacinhos e montadas sobre bolinhas de pão preto, espetadas com um palito de dente: eram os soldadinhos. Tinha o frango cozido no centro do prato, cercado de arroz e o molho esbranquiçado nas bordas: era a ilha. Os bolinhos de massa de batata recheados de geleia e, com os restos da massa, umas tirinhas, que eram as cobrinhas. Os ovos com espinafre; a sopa de pêssego e claras de neve; o sorvete de café no canudinho. O goulash, o cholent, que ela ficava preparando durante toda a noite, acordando duas vezes para mexer na panela. Carne, ovos, batata e feijão branco, tudo misturado. Comida de quem não tem o que comer e, misturando tudo, inventa um prato que acaba sendo incorporado à culinária. O bife de contrafilé, passado só na manteiga, sem bater e frito na chapa. Os jantares de sexta-feira, quando vinham a avó e seu irmão, o tio Artur.
Jantares caprichados, com entrada, prato principal e sobremesa. Ela nunca foi muito esmerada na cozinha, nem nunca soube fazer muitos pratos, mas dominava perfeitamente aqueles que fazia. E os bolos de Yom Kippur: rocambole de chocolate, com o chocolate respingando quente; rocambole de nozes. Macarrão com geleia no forno. Ela parece ter mais prazer em ver os outros comerem do que em comer propriamente. Come muito pouco e nunca gostou de restaurantes. Sempre quer dividir as porções e não se conforma com os pratos individuais.
Toda a estratégia nazista de liquidação, de extermínio radical, além do assassinato direto, consistia em produzir fome. A fome é a pior privação, a mais bestial de todas, e era ela que sustentava todo o processo paranoico e de extermínio da identidade humana e cultural dos prisioneiros. Não se tratava somente da dificuldade material e logística de enviar todos para as câmaras de gás; era uma etapa necessária do trabalho de diluição do homem no homem. Os campos de concentração são a fome; mais do que tudo é ela a determinante de todos os outros acontecimentos, belos ou horríveis.
PALAVRA
Mãe, se você precisar se lembrar de alguma palavra que diziam no campo, qual seria? Achtunge Zeltappell. Só me lembro dessas duas. Mas você não se lembra de mais nenhuma palavra? Não, não me lembro, não. Só isso que você quer saber?
A filha fica irritada. Como é possível ela não se lembrar de mais nenhuma palavra, se passou onze meses no campo? Nem palavras dos oficiais, nem dos outros prisioneiros, nem as que ela mesma deve ter pensado? Por que não se lembra de palavras, se não existe nada mais importante do que elas? E ela ainda pergunta se é só isso que a filha quer saber. Como se fosse pouco.
Liwia tem vergonha de que o diário que ela escreveu na Suécia seja publicado, porque acha que não tem estilo literário nenhum e sabe que o texto da filha vai ser carregado de estilo. Não há como comparar, a mãe pensa. Como aquele diário tão simples, tão sem palavras, poderá aparecer junto com as impressões da filha, que se preocupa tanto com a forma como as coisas são ditas? Ela não entende que é justamente isso o que a filha procura. Tem vergonha, eventualmente, das palavras de que se lembra. Não são palavras à altura dos pensamentos complexos da filha.
Como será para ela ter uma filha que se ocupa de palavras? Será que isso a faz se sentir mais envergonhada, orgulhosa, medrosa ou será que foram justamente as palavras e as não palavras dela que fizeram a filha escolhê-las para viver? Afinal, a filha está tentando dizer o que ela não quis, não pode dizer. A filha sabe e a mãe autoriza que essas palavras sejam ditas agora, da maneira que a filha quiser. Como ela poderá escolher as palavras das quais a mãe não se lembra? A filha fantasia: se tivesse estado lá, se lembraria de tantas coisas. Outra licença indevida, como tantas que acontecem nesse sequestro e apropriação das palavras da mãe. É preciso roubar um pouco da vida do pai, da mãe, para conseguir sustentar sua sobrevivência. Ter estado onde eles estiveram, em seu lugar, é uma fantasia ridícula, mas inevitável. É um capricho, uma veleidade, mas é também uma redenção. O desejo de salvar um pouco o sofrimento já vivido.
Achtung significa atenção. Zeltap-pell significa chamada. Atenção, ao menos em português, é um chamado para que alguém seja mais cuidadoso, olhe mais em redor, fique mais concentrado, mas também é o cuidado que se tem para com alguém, um olhar mais demorado, alguma forma de carinho. Mas em alemão, não. Achtung, em alemão e nessas condições, quer dizer: é proibido! Não faça isso! Uma falsa advertência. Um disfarce, como se dizendo: se você fizer isso, será punido. Mas que diferença isso faz, se, mesmo não fazendo aquilo, o prisioneiro também será punido? Para que prestar atenção? Para que advertir? Como é difícil entender a lógica do medo que se instala na linguagem, o porquê da linguagem recrudescer um medo que está além e aquém dela. Como se ela fosse um anteparo: se o soldado não disser Achtung, quem sabe o prisioneiro não poderá se sentir mais tranquilo? Mas, se ele disser, é melhor se precaver.
A filha não entende nada. Como ela reagiria diante de umAchtung que, na verdade, não quer dizer nada? A filha não aguenta palavras que não querem dizer nada. Fica escarafunchandoo significado de cada placa de trânsito; apoia-se na etimologia de cada coisa para entendê-la melhor, esmiuçá-la até transformá-la em alguma possibili-dade de poesia.
O Zeltappell era a chamada que os nazistas faziam várias vezes por dia, com o pretexto de verificar se todos os números batiam, se os prisioneiros da manhã eram os mesmos da noite, se ninguém havia sumido, fugido, adoecido, dormido, morrido.
Atenção e chamada foram as duas únicas palavras que sobraram na memória dela, de onze meses de terror. Como se o campo tivesse sido uma sala de aula. Atenção para a chamada.
Se a filha precisasse se lembrar de algumas palavras que simbolizam sua mãe, diria “que que fala quê?” – que é o que ela diz quando quer se lembrar de algum assunto que esqueceu. É sua maneira de dizer: “O que eu queria falar?” “Premiera”, que é o seu jeito de dizer “primeira”. “Volan”, que é “volante”. “Que tem novidade?”, no lugar de “Tem alguma novidade?”. No news, good news. “Não tem importância” e “Que que tem?”. Ela transforma várias palavras e perguntas do dia a dia em música. Se alguém diz que quer comer, ela canta: “Comer, comer, é o melhor para poder crescer!” Até hoje ela não aprendeu a falar o xingamento “Vai tomar banho”. Diz assim: “Vai tomando banho.” Sempre que alguém a fechava no trânsito, era isso o que ela dizia, enquanto ainda dirigia: “Vai tomando banho.” É o pior xingamento que ela consegue dirigir a alguém.
Nos últimos anos, ela tem, cada vez mais, ficado em silêncio. Nas reuniões familiares, o que ela mais faz é ficar olhando; um pouco para o vazio, um pouco para as pessoas. Às vezes ela solta um: “Tudo isso saiu de mim!”
No casamento da neta, era inevitável vê-la embaixo da chupá[11]e pensar: ela saiu da guerra e agora está ali, vendo a neta se casar no Brasil. Onde a história foi parar? Como os caminhos foram percorridos? Qual será a sensação de ter estado lá e agora estar aqui? Qual é o percurso estabelecido pela memória que passa por essas duas coisas? A impressão que dá, quando ela queda silenciosa, é que algo assim deve estar passando, mesmo que em silêncio, por sua cabeça. Olhos queveem, mais do que palavras que possam dizer este pequeno absurdo que é essa mudança de destino. Como é possível uma só vida encerrar duas possibilidades tão distintas? Que palavras poderiam dizer isso? Achtung e Zeltappell? Onde foram parar estas palavras, agora? Em que boca elas estão, por quem elas estão sendo ditas, que palavras podemos dizer nós, que palavras ela pode lembrar, tanto quanto aquelas que ela esqueceu?
Quais são as palavras que ela esqueceu?
Um dia, ao telefone, ela, que gosta de ficar imaginando situações, perguntou à filha: “Filha, o que os cegos estão sonhando?” De início, a filha não entendeu. Parecia tratar-se de cegos específicos em uma situação específica e que aqueles cegos estariam sonhando alguma coisa naquele instante. Ela acrescentou: “Sim! O que eles estão sonhando, se não enxergam? Como podem ver imagens nossonhos?” Então a filha entendeu e se lembrou de que a mãe confunde os usos do presente simples e do presente contínuo. “O que os cegos estão sonhando?”, na verdade, é “O que os cegos sonham?”. Mas, de uma forma inesperada e subitamente bela, aquela frase, em sua suspensão do tempo, em seu deslocamento gramatical e semântico e em seu significado autônomo, como que independente de qualquer lógica narrativa, sintetiza exa-tamente o estar no mundo da mãe. Como se ela estivesse fincada no presente contínuo, num eterno vir a ser, maravilhada com as possibilidades do mundo e da natureza. Houve a guerra, houve o exílio, o sofrimento, tudo. Mas esse passado, que houve e que não é negado, mas esquecido, se mistura, em sua memória, a uma disposição perene para o presente, sem o domínio perfeito da gramática, mas como uma apropriação deslocada, em que a percepção das coisas importa mais do que as coisas mesmo.
13 de setembro de 2012
[1]Senta, cidade na província sérvia
chamada Vojvodina (pronuncia-se “vóivodina”), às margens do rio Tisa.
[2]Szeged, a terceira maior cidade da
Hungria, ao sul do país, próxima à fronteira com a Sérvia.
[3]Baja (pronuncia-se “báia”) é um
vilarejo na Hungria, a 150 quilômetros ao sul de Budapeste. Fica ao norte da
fronteira entre Hungria, Croácia e Sérvia.
[4]Revista de pavilhão.
[5]Hajnal (pronuncia-se “cainal”) é um
nome húngaro.
[6]Nome das Forças Armadas da Alemanha
nazista, entre 1935 e 1945. As Waffen-ss eram o braço do esquadrão de proteção
do Partido Nazista, que reunia as polícias secreta e política.
[7]Pequena cidade da Dinamarca, na
fronteira com a Alemanha.
[8]A data correta seria 2 de junho.
[9]Pronuncia-se “boje pravde” – são as
primeiras palavras dos versos do hino nacional da Sérvia: Ó, Deus da
justiça.
[10]Alusão ao fato de que o regime
monárquico da dinastia dos Karad-jord-jevićfoi derrubado por Tito, que proclamou
a República e instaurou um regime socialista unipartidário, com o fim da Segunda
Guerra Mundial.
[11]Espécie de tenda sob a qual se
realiza o casamento judaico.
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