Esse é o título de uma obra do antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, um ensaio de grande alcance intelectual. Não deveria estrear abrindo um texto como este. Mas ele me parece muito mais forte do que o título de um romance. Além do mais, contar de forma romanesca o que se passa na cena política brasileira nos levaria à banalidade do “a madame saiu às 5 horas”.
O mel – com seu duplo sentido para os ameríndios, alimento
e sexo, daí a expressão lua de mel – é um ponto de partida mais rico para
chegarmos às cinzas de um projeto que se intitulava de transformação, no
princípio do século.
O mel como sexo não é o tema aqui. Com o tempo, aprendi que
a química humana é irredutível a um esquema lógico. Pessoas se aproximam e se
afastam de forma surpreendente e, em vez de pensar em algum controle mental
desse processo, é melhor deixar que se desenrole com suas inevitáveis
surpresas.
Também não interessa aqui a questão quem está dando para
quem. Interessa saber o que está sendo dado. O ex-senador Gilberto Miranda quer
duas ilhas, uma onde construiu uma casa e outra onde pretende construir um porto
particular.
De ilha em ilha, os senadores acabam ocupando um
arquipélago. Lembro-me da discussão pública que tive com o então senador Ney
Suassuna, que queria ocupar uma ilha na Estação Ecológica de Tamoios, em Angra
dos Reis (RJ).
De modo geral, eles compram um barraco ou qualquer instalação
modesta de um eventual morador da ilha e, em seguida, reivindicam seu pleno uso,
como se fossem, realmente, os donos.
Concordo com o poeta quando diz que nenhum homem é uma
ilha. Mas acrescento: nenhum homem deveria ter uma ilha. Entregar uma ilha é
mais concreto do que a corrupção que desvia recursos. Não se trata de dinheiro,
mas de um pedaço do território nacional.
O homem-chave desse processo, Paulo Vieira, disse numa
ligação interceptada que as coisas seriam facilitadas por um funcionário desde
que se colocasse “mel na chupeta”. O mel ressurge aí não exatamente como
alimento, mas com seu poder de sedução. Ele é a forma enganadora de tornar
suportável o conteúdo da mamadeira. Nas cinzas de uma promessa de renovação,
instala-se uma difusa certeza de que a vida só é tragável com a chupeta empapada
de mel. E que só tem sentido participar do governo para
enriquecer.
Como na canção de Chico Buarque, aparece uma mulher que diz
sim por uma coisa à toa, uma noitada boa, um cinema, um botequim. Uma cirurgia,
um emprego, um cruzeiro com Bruno e Marrone.
Não se pode reduzir a análise à trajetória da secretária
Rosemary Nóvoa de Noronha. O nome de Paulo Vieira foi rejeitado pelo Senado, mas
o governo decidiu forçar a barra, tanto do ponto vista político como regimental.
Ao tomar uma decisão dessa ordem, o governo não sabia por quem estava
atropelando o Congresso Nacional? Será que, no convívio com Rosemary, Lula nunca
questionou: mas quem é esse cara que foi rejeitado pelo Congresso, por que vale
a pena insistir nele?
A manobra para garantir o cargo a Paulo Vieira a qualquer
custo contou com o apoio de senadores. Romero Jucá articulou e agora diz que nem
se lembra do caso. Magno Malta fez um recurso para tornar viável a nova escolha
de Vieira. Se lhe perguntarem, dificilmente dirá alguma coisa. José Sarney,
então, é uma esfinge.
Acreditar que todo esse processo tenha tido como dínamo
apenas o poder de sedução feminino bloqueia outros caminhos para conhecer o que
se passou. Um governo não atropela o Congresso para impor uma indicação se não a
considerar de grande importância estratégica. Vendo por outro ângulo, um governo
não deixa de reexaminar uma indicação quando ela é rejeitada pelo
Senado.
Os franceses aconselham a procurar a mulher (“cherchez la
femme“) nesses casos intrincados. Mas aqui talvez valha a pena distanciar-se
dela e olhar para a montanha de cinzas que o projeto de renovação nos
legou.
O governo e alguns senadores foram cúmplices objetivos de
uma quadrilha em formação. Eles estavam negociando ilhas, patrimônio físico do
Brasil. A entrega, por meio da chupeta melada, de uma parte do território
nacional é algo muito grave para se reduzir a um folhetim, apesar da beleza dos
versos de Chico Buarque.
O Congresso parece que não tem condições de investigar.
Talvez nem queira. Mas um dia isso cai nas mãos de um setor independente da
Justiça. E de novo todos ficarão angustiados com a palavra dosimetria, pensando
no remédio amargo depois de anos de “mel na chupeta”.
Da minha parte, afirmo apenas que objetivamente a quadrilha
imposta pelo governo ao Congresso estava negociando uma parte do Brasil. Dose
dupla.
Não adianta insinuar que o coração tem razões que a própria
razão desconhece. Quando começam a levar nossas ilhas, é preciso dizer
basta.
A quadrilha que negociava ilhas é apenas uma irrupção na
montanha de cinzas. É preciso dinheiro para manter a máquina partidária,
garantir eleições, pagar marqueteiros. É preciso dinheiro para se manter no
poder. Só assim se faz dinheiro. Para continuar no poder.
Do mel às cinzas, vão-se desfazendo os mitos políticos. A
apuração e a publicidade do episódio vão ajudar a compreender melhor a atmosfera
de um governo de coalizão de partidos e algumas facções, como a que opera no
Porto de Santos.
Não sei o que sairá disso. Mas é preciso, pelo menos,
salvar as ilhas dos piratas. O governo foi na direção certa quando mandou
examinar todos os outros processos que passaram pelo grupo. Mas não respondeu a
uma pergunta que deveria ter sido dirigida ao próprio governo: como foi possível
fazer essa indicação, atropelar o Congresso por ela e não monitorar uma escolha
tão polêmica?
No mínimo, foi um delírio autoritário. É difícil pensar que
sejam tão inocentes as pessoas que dirigem o Brasil hoje. Muitas têm uma longa
trajetória. Quando vão encarar a realidade de uma vez por todas, sem
tergiversar?
15 de dezembro de 2012
Fernando Gabeira
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