Fascistas e comunistas faziam graça na véspera do golpe
por Cláudio Figueiredo
Com o pseudônimo de Mendes Fradique – uma brincadeira com o nome do personagem de Eça de Queiroz, Fradique Mendes –, ele se consagrou como autor de História do Brasil pelo Método Confuso, livro no qual enxergava a realidade pelo prisma de um humor carnavalizado, de inspiração modernista. A obra foi lançada em 1920, anos antes de ele aderir ao movimento que pretendia importar os ideais de Mussolini e de Hitler. Se humoristas conservadores são espécimes raros, que dizer então de um humorista de extrema-direita?
Fenômeno semelhante iria ocorrer – na ponta oposta da ideologia – com outro humorista, Apparício Torelly, mais conhecido como o Barão de Itararé. Desde que fundara, em meados dos anos 20, o semanário A Manha, este gaúcho havia revolucionado a imprensa carioca com seu jornal de espírito vagamente anarquista, pronto a debochar do governo e da oposição, da Academia Brasileira de Letras e do papa. No mesmo período em que Madeira de Freitas viu no integralismo uma solução para pôr ordem no “Brasil confuso” que o fascinava e atormentava, à esquerda, Apparício Torelly pôs em segundo plano a persona do humorista para vestir a camisa do militante de esquerda.
Foi em 1934 – momento de radicalização no Brasil e no mundo – que Torelly deixou de lado as brincadeiras sobre “o olho de Moscou”, habituais nas páginas de A Manha, para anunciar em entrevista ao jornal O Homem Livre sua adesão à União Soviética. “Esbravejem e esperneiem os opressores”, disse. “Os que se alimentam de sangue humano, os que exploram comercial e industrialmente a dor e a miséria humanas serão finalmente dominados e esmigalhados pelo divino, biológico, irrefreável ímpeto das multidões enfurecidas!”
Com o ardor dos recém-convertidos, o jornalista anunciava: “Os russos estão construindo um arranha-céu moderno, arejado e higiênico, confortável, no meio dos casebres imundos e infectos que são as outras sociedades do Oriente e do Ocidente.” E, num estilo que parecia ter tomado emprestado às hipérboles do Barão de Itararé, insistia na imagem do edifício que haveria “de oferecer magnífico abrigo a todos os oprimidos, a todos os humilhados da Terra, iluminando como um deslumbrante clarão sideral os tormentosos e enigmáticos caminhos do futuro”.
O seu prontuário na Delegacia Especial de Segurança Política e Social foi aberto seis dias depois da entrevista, na qual saudava “o divino ímpeto das multidões enfurecidas”. O prontuário dizia: “Agitador. Colaborador do Homem Livre, do Avante, de A Manhã e diretor de A Manha, jornais reconhecidamente comunistas. Conhecido como Apporelly.”
m outubro de 1934 ocorreria a “Batalha da Praça da Sé”, na qual integrantes de grupos de esquerda enfrentaram militantes integralistas nas ruas do Centro de São Paulo, quando estes se preparavam para uma marcha liderada por Plínio Salgado. O conflito, que deixou mortos e feridos, se transformaria num símbolo das paixões da época.
Em torno do episódio, Madeira de Freitas e Apparício Torelly travariam um duelo. O primeiro na condição de redator-chefe do diário A Offensiva, principal órgão do integralismo. O segundo como o diretor do Jornal do Povo, porta-voz, ainda que oficioso, do Partido Comunista. Quatro dias depois do enfrentamento, Madeira de Freitas publicava uma nota: “Duas vanguardas defrontaram-se domingo na terra bandeirante: uma acoitada na tocaia da traição, entrincheirada com metralhadoras na couraça dos arranha-céus. Esta é a vanguarda dos negadores do Brasil. A outra, formada com seus efetivos em campo aberto, cantando o Hino Nacional e desfraldando a bandeira da pátria.”
Dias depois o Jornal do Povo respondia a “Madeira de Freitas, teórico do integralismo” em artigo que levava o mesmo título de “Duas vanguardas”: “De um lado a milícia da camisa verde, foi esta a vanguarda da contrarrevolução, vanguarda armada até os dentes que desfilou ali para intimidar a população faminta de São Paulo. Do outro lado encontrava-se a vanguarda do proletariado, sem bandeira brasileira, sem hino nacional, cantando a Internacional. Foi a frente única proletária que fez debandar vergonhosamente a miliciada fascista, que correu da Praça da Sé por três vezes, apesar do apoio dos ‘tiras’ da Ordem Social.”
Era uma grande ironia que dois humoristas, conhecidos pela inventividade, trocassem salvas de lugares-comuns e disparassem as mesmas fórmulas rancorosas. As coincidências obedecem a uma simetria curiosa. Ambos tinham vindo da província para a capital do país – um do Rio Grande do Sul, outro do Espírito Santo. Os dois tinham estudado medicina e, embora apenas Madeira de Freitas tivesse se formado e atuado como médico, os dois alimentavam ambições científicas: Torelly dedicando-se ao estudo da febre aftosa, e o outro a pesquisas sobre a diabete. Os dois tinham se tornado humoristas de uma mesma família espiritual, àquela dedicada ao nonsense, à subversão da linguagem empolada e à sátira dirigida contra as elites. Ambos se tornariam conhecidos por seus pseudônimos, formalizando assim uma espécie de dupla personalidade: Apparício Torelly, como o Barão de Itararé; Madeira de Freitas, como Mendes Fradique.
Os dois criariam seus próprios jornais de humor, animados por estilos personalíssimos: o Barão, com A Manha, e Madeira de Freitas, com O Macaco. Ainda que dedicados ao humor, ambos seriam convocados, na mesma ocasião, a dirigir jornais “sérios”, a serviço de posições antagônicas: Torelly com o comunista Jornal do Povo, Madeira de Freitas com o integralista A Offensiva. Finalmente, ambos pagariam caro por isso, sendo presos em consequência de levantes armados contra o governo Vargas promovidos por seus respectivos movimentos: um após a insurreição comunista de novembro de 1935, o outro depois da tentativa de golpe integralista de maio de 1938.
osé Madeira de Freitas (1893–1944) entrou no mundo do humor – e também no círculo da Confeitaria Colombo e da boemia carioca – pelas mãos de Emílio de Menezes. Vindo do Espírito Santo para estudar medicina no Rio, começou a carreira como desenhista na revista Rio Ilustrado. Mas foi na revista D. Quixote, a partir de 1919, publicando semanalmente os capítulos da História do Brasil pelo Método Confuso, que ganhou notoriedade. Editada em forma de livro em 1920, ela ganharia sete edições.
A obra, que pretendia rivalizar com um compêndio de Rocha Pombo, abria com uma carta apócrifa de Rui Barbosa: “Tanto me chegaram às mãos os oito volumes da primeira edição da sua História do Brasil pelo Método Confuso,dei-me pressa em sorver-lhes o conteúdo, o que fiz de um só trago.” E acompanhava as primeiras movimentações dos navegadores portugueses: “A Escola de Sagres, em sessão solene, estabeleceu as bases da descoberta do Brasil. O europeu, péssimo estudante de geografia, ignorava, como ainda hoje, a existência do resto do mundo.” Engrossada por Sancho Pança, a expedição de Cabral tem um primeiro dia cheio por aqui: “Antes, porém, de se recolherem aos seus aposentos, os descobridores posaram para Victor Meireles, rezando nessa ocasião a primeira missa no Brasil.”
Apesar de conhecido pela abordagem carnavalesca da história do Brasil, o humorista odiava o Carnaval. E também o jazz, os arranha-céus, os automóveis, o dólar, as lutas de boxe e tudo o mais que pudesse ser associado à contemporaneidade ou a tradições e costumes estrangeiros. Todos viraram alvo das crônicas que publicaria nos anos 20 e 30 na Gazeta de Notícias e em O Jornal.
Já Apparício Torelly (1895–1971) se desdobrava em A Manha como homem de imprensa, magnata, estadista, revolucionário, cientista e literato. Todas essas facetas se fundiam no epíteto “o nosso querido diretor”, com o qual ironizava os empresários da imprensa, sempre prontos a plantar autoelogios em suas colunas.
A megalomania farsesca culminou no título de nobreza com que se autoagraciou por feitos supostamente praticados durante a Revolução de 30: Barão de Itararé. O nome era uma alusão ao palco de batalha que nunca aconteceu, marcando o choque entre as forças de Getúlio Vargas e as tropas fiéis a Washington Luís. Com o título, criou cerimoniais, solenidades e uma guarda de honra que rivalizava em luxo e sofisticação com a Guarda Suíça, do Vaticano. Envergava, além disso, uma infinidade de trajes de gala, sempre minuciosamente descritos, como seu “brioso uniforme anfíbio de marechal-almirante” ou seu “finíssimo guarda-pó de palha de seda, escondendo discretamente a sua comenda da Ordem do Banho, sempre desobedecida, e fazendo-se encimar por seu chapéu de coco da Bahia, que usa com licença especial do papa”.
Não eram só os políticos que sofriam na sua pena. Na Manha, nem a ciência era deixada em paz. Torelly publicou, a pedido do diretor da Faculdade de Medicina, um edital com os títulos das últimas teses ali apresentadas, todas mencionando os nomes verdadeiros de médicos conhecidos: “Dr. Motta Maia: ‘Estudo sobre a possibilidade da transplantação das barbas do dr. Estelita Lins na careca do professor Aloysio de Castro’.” Ou ainda este, que fazia menção a um político da época: “Dr. Genival Londres: ‘Um caso interessante de bulimia – Lopes Gonçalves e sua capacidade gástrica’ (estudo de zoologia comparada).”
uando, em abril de 1934, a Academia Brasileira de Letras perdeu num único mês três dos seus integrantes, só A Manha fugiu ao tom adotado pelos outros jornais ao comentar a morte do filólogo João Ribeiro, do poeta Augusto de Lima e do ensaísta Gregório da Fonseca. Mais do que um hipócrita, dizia o semanário, Itararé seria “um refinado Tartufo” se dissesse que “sentiu imensamente a morte dos três grandes acadêmicos”. Apenas dois dias depois de o terceiro e último caixão ter baixado à sepultura, A Manha apressou-se em abrir em cinco colunas da sua primeira página a manchete “Itararé, candidato às três vagas da Academia”.
O perfil do “extraordinário polígrafo” revelava um nome de peso: “Jornalista de combate; político de atitudes definidas; internacionalista de alto bordo; jurista de borla e cabelo; engenheiro de pontes e calçadas; astrônomo de alentada cultura sideral; filósofo de profundas interpretações metafísicas.” E explicava sua tática: candidatando-se às três poltronas, no mínimo pegaria uma. “Se colar as três, será para transformá-las, todas, numa metamorfose ovidiana de marcenaria, num confortável sofá, onde o notável monarca possa espraiar abundantemente os ilustres e venerandos fundilhos.”
Em caso de fiasco, se dizia pronto a denunciar o caráter elitista da instituição e propor um sistema mais democrático. Por ele, a Academia adotaria a partir de então a “fórmula-ônibus”, admitindo quarenta imortais sentados e outros vinte em pé.
m sua única incursão literária, Madeira de Freitas publicou, em 1926, o romance Dr. Voronoff, que mereceu elogios de Monteiro Lobato, Coelho Neto e Tristão de Ataíde. Seu personagem principal era, como o autor, um médico capixaba que vivia no Rio. Mas, ao contrário de Madeira de Freitas, o dr. Eduardo Marinho era um homem rico. Já maduro, apaixona-se por uma condessa, porém o relacionamento esbarra num problema técnico: sua impotência. Suas esperanças são despertadas pelo dr. Voronoff, médico russo radicado em Paris que anuncia ter encontrado nova solução para o problema: o transplante para os seres humanos das glândulas sexuais extraídas dos testículos dos macacos. Inspirado no exemplo do cientista russo, que estaria de viagem marcada para o Rio, o médico brasileiro decide experimentar em si mesmo a nova terapia. Realiza por conta própria a cirurgia, só que usando as glândulas de um rapaz de 20 anos. O resto do enredo gira em torno dos desdobramentos da experiência.
Apesar do tema, não se tratava só de um romance cômico. Mais estranho ainda, o tal dr. Voronoff e sua terapia existiam mesmo. Formado na França, o russo Serge Abrahamovitch Voronoff viria a se tornar famoso ao explorar a relação entre envelhecimento e atividade hormonal. Em 1917, durante a Primeira Guerra Mundial, realizou num soldado seu primeiro transplante, retirando massa testicular de um macaco e transferindo-a para o corpo de um homem. O cientista viveu o auge de seu prestígio nas décadas de 20 e 30, mas já nos anos 40 suas teorias começariam a ser ridicularizadas.
Em janeiro de 1927, no entanto, o dr. Voronoff era um personagem respeitável. Naquele mês, semanas depois da publicação do romance, O Jornal, diário de Assis Chateaubriand no qual Madeira de Freitas escrevia suas crônicas, publicou um telegrama de Moscou anunciando a morte de certo “Monsieur Beaucaire”. Era o nome que os cientistas haviam dado a um macaco enviado à capital soviética por Voronoff. O animal havia morrido depois de doar glândulas implantadas em seis pacientes russos, vítimas de “anemia, moléstia de Addison, epilepsia, hermafroditismo e arteriosclerose”. A experiência havia sido conduzida por um médico conhecido como professor Rosinoff, “um dos especialistas que trataram de Lênin na sua última moléstia”, informava o jornal. O médico de Lênin extraindo material de testículos de um macaco para implantá-lo em cidadãos soviéticos hermafroditas: para humoristas ou ficcionistas não era fácil competir com um material como esse.
Madeira de Freitas publicou seu livro quase ao mesmo tempo que o pesquisador russo aportava no Rio. Em torno do cientista, explicou o médico-humorista aos jornais cariocas, foram criadas várias lendas: “Ao senso de quase toda gente, Voronoff surge como uma entidade estranha, misto de Mefistófeles e charlatão.” Também aos olhos das elites, acrescentava, “a personalidade do sábio surge envolta num véu dúbio de imoralidade e cabotinismo”.
Um dos críticos que aprovaram o romance, o pensador católico Jackson de Figueiredo, viu no livro uma obra de cunho moral: “Estamos de fato diante de mais uma vitória da consciência cristã no Brasil.” Saudou o humorista como um aliado na luta pela libertação do país do “jugo agnóstico e positivoide”. Das desventuras vividas pelos testículos do dr. Marinho, Figueiredo extraiu uma mensagem contra “o cientificismo, não menos pernicioso, às vezes, que a própria imoralidade nua e crua”. Em meados dos anos 20, seria justamente Jackson de Figueiredo, com sua hostilidade ao liberalismo, ao socialismo, ao cientificismo e à modernidade em geral, o responsável pela conversão de Madeira de Freitas a um catolicismo fervoroso.
m meados dos anos 30, a Aliança IntegralistaBrasileira chegou a contar com centenas de milhares de simpatizantes. O movimento tinha como combustível uma ideologia ambiciosa: “O integralismo é um modo de ser, um modo de viver, um modo de pensar”, definia um de seus principais teóricos, o escritor Gustavo Barroso. Até a saudação copiada dos nazistas exigia uma coreografia descrita minuciosamente no manual do movimento, que procurava programar seus militantes com a eficiência de um relógio: “Soerguimento brusco do braço direito até a posição vertical; palma da mão voltada para frente, com os dedos unidos; braço esquerdo arriado naturalmente.”
Numa época em que predominava o ceticismo, Barroso anunciava: “Somos os que acreditam em Deus, Pátria e Família.” Já Apparício Torelly confessou que por pouco não aderira à nova doutrina: “Itararé, que pega tudo de ouvido, quase enfiou a camisa verde: pensou que o lema fosse ‘Adeus, Pátria e Família’!” Para Torelly, o integralismo era um alvo perfeito, com sua mistura de pompa e solenidade, com o estilo bombástico de seus discursos e jornais. Suas manifestações eram sempre “apoteoses cívicas” e seus desfiles, “espetáculos empolgantes e formidáveis”. A mais leve brisa que soprasse durante um comício bastava para animar os redatores de seu órgão oficial: “Bandeiras azuis mostrando o sigma balouçavam, recebendo o ósculo da pátria, trazido pelos ventos soprados de todos os quadrantes do Brasil.” Naquele ano decisivo de 1934, o humor do Barão de Itararé se revelaria uma arma às vezes mais eficiente do que os insultos e argumentos da esquerda tradicional.
Para além das ideias políticas, a ideologia e o ânimo dos integralistas tinham como pilares alguns símbolos e princípios básicos. Um deles era o uso do uniforme e os moldes militares. Outro era a exaltação da coragem e da virilidade. Por último, mas não menos importante, vinha a obediência cega à hierarquia, preocupaçãoque culminava no culto aos seus líderes e – acima de todos – ao “Chefe Nacional”, Plínio Salgado. Nas páginas de A Manha, Torelly pôs-se a golpear aqueles pilares com o objetivo de abalar a autoconfiança da extrema-direita.
“Vestimos um uniforme – proclamava Gustavo Barroso – porque temos a coragem de afirmar de público a nossa opinião, porque não precisamos nos esconder na hora da pregação, porque todos nos devem reconhecer na ocasião do perigo.” Não se sabe ao certo se foi Torelly quem batizou os camisas-verdes com o apelido de “galinhas-verdes”. Mas ele fez o máximo para difundir o rótulo – e com sucesso, levando os adversários do sigma a soltarem galinhas pintadas de verde nas manifestações integralistas. O uniforme era um dos temas preferidos do Barão: “Dada a cor neutra, a camisa fascista pode ser usada pelo decurião durante um mês consecutivo. O caldo da lavagem, depois desse período, também pode ser aproveitado industrialmente em conservas raras e de fino paladar, o que lhes dará um gosto em que refletirá a influência do chefe, isto é, ligeiramente salgado.”
o longo da década de 20, bem antes da fundação do movimento integralista, Madeira de Freitas, em algumas das crônicas publicadas com o pseudônimo de Mendes Fradique em O Jornal, deixara de lado os temas amenos para enveredar pela política. Nelas, insinuava sua simpatia pelas soluções autoritárias que já se desenhavam no horizonte. Numa dessas crônicas polemizava com o poeta Rabindranath Tagore, que criticara Mussolini. Para Madeira de Freitas o escritor indiano dava mostra de um “deplorável daltonismo crítico” ao não compreender que a ditadura na Itália não havia sido preparada por Mussolini, e sim “pelas forças impessoais da raça”. E quando, em 1929, foi desbaratado um suposto “centro de agitadores”, o colunista apressou-se em apoiar a ação: “A polícia andou fechando em dias da semana passada certos núcleos de conspiratas, em que os judeus de todos os tempos põem ao serviço de sua avareza e ambição a boa-fé e a impressionabilidade dos espíritos incautos.”
Crítico do comunismo, achava que o marxismo, uma maravilha teórica, revelava-se sempre catastrófico quando posto em prática. Acreditava, por isso, que cada país que se “avermelhasse” seria um golpe na “crescente indústria do comunismo”. Essa regra, contudo, admitiria uma exceção: o Brasil. No país do “método confuso” havia sempre o risco de dar certo o que dera errado em toda parte: “Devemos evitar a todo custo que tal regime se implante entre nós. Porque se nós, honra nos seja feita, temos desmoralizado tantos regimes salutares, somos capazes, por um corolário lógico, de darmos bom viço ao regime mais monstruoso que até agora tem engendrado a ruindade humana, que é o comunismo.”
Sua admiração pelo regime fascista, o antissemitismo, o anticomunismo, todos esses fatores somados às convicções nacionalistas, formaram o caldo de cultura da adesão ao integralismo. A fagulha que levaria esses ingredientes à combustão seria a oratória de Plínio Salgado, pela qual se empolgou ao assistir a seus comícios no Rio. Acabaria forjando uma amizade com o líder integralista: era na casa de Madeira de Freitas que Plínio Salgado costumava se hospedar em suas visitas à capital. Nas fotos da grande marcha integralista diante do Palácio do Catete, Madeira de Freitas aparece ao seu lado.
ão ou mais importante do que o confronto nas ruas seria a guerra entre as diferentes versões sobre o conflito na Praça da Sé. A imprensa integralista viu ali “uma tragédia épica que ficará na história”. Em A Offensiva, Plínio Salgado anunciou: “Fomos agora atacados dentro de São Paulo por uma horda de assassinos, manobrados por intelectuais covardes e judeus. Lituanos, polacos e russos, todos semitas, estão contra nós, empunhando armas assassinas contra brasileiros.”
Os jornais de esquerda apressaram-se em cantar vitória. Ansiosos por desmoralizar os adversários, trataram de destacar a debandada integralista. Nesta campanha, a seta mais ferina foi a desfechada pela manchete do Jornal do Povo: “Um integralista não corre... voa.” O título era ilustrado por uma enorme foto aberta em cinco colunas mostrando um flagrante da Praça da Sé deserta, com alguns militantes à procura de abrigo. O texto-legenda explicava: “A debandada integralista, como se vê, foi na mais perfeita desordem. Vê-se à esquerda um galinha-verde atrás do poste, e no centro da praça vários outros acocorados. A retirada dos 10 mil... Salve-se quem puder!”
Lançado no Rio, por coincidência justamente no domingo do confronto na Praça da Sé, o jornal tinha como grande novidade o fato de ter como editor Apparício Torelly, responsável pela ironia presente na manchete e na legenda dirigidas contra os integralistas. O endereço da redação – Rua 13 de Maio, 35, 4º andar –, o mesmo de A Manha, não deixava dúvidas sobre a associação do humorista com o projeto. Contudo, a manchete sobre os integralistas foi um dos raros momentos em que a verve do Barão conseguiu vir à tona em meio a um noticiário e artigos nos quais predominava um tom mais apropriado para afastar personalidades e aliados do que para aglutinar forças. Desse modo, o prefeito Pedro Ernesto, que tinha simpatia pela esquerda e viria a ser preso por Getúlio em 1936, era alvo de ataques constantes. A proposta pedagógica de Anísio Teixeira, a chamada “Escola Nova”, posta em prática na prefeitura, era atacada: “A Escola Nova, dentro da burguesia, tem um papel definido, que não é nada científico: mascarar a luta de classes!”
O compositor Heitor Villa-Lobos, outro protegido do prefeito, era sumariamente descartado no Jornal do Povo como “o fascista Villa-Lobos, de ignorância niagaresca, blusa russa e cabelos desgrenhados, como uma Desdêmona ressuscitada”. Não estava a salvo também a feminista Bertha Lutz, candidata nas eleições daquele ano para a Constituinte e taxada de oportunista. A conquista do voto feminino era reduzida a objeto de interesse de “politiqueiros e socialistas de meia-tigela” e das “madames burguesas”.
uindado à posição de redator-chefe de A Offensiva, Madeira de Freitas logo captaria a entrada em cena do novo diário. A Offensiva publicou nota atacando “o Jornal do Povo, órgão comunista dirigido pelo comunista Apparício Torelly, ex-Barão de Itararé, que agora tirou a máscara e, apesar do seu comunismo, tem prédios em Copacabana”. Os “prédios em Copacabana” eram uma alusão à casa do humorista na ladeira Saint-Romain. O artigo menosprezava “as alfinetadas” que o diário de esquerda tinha dirigido ao “sr. Herberto Moysés, vulgo Herbert Moses, presidente judaico da ABI”, apelidando-o de “formiga de doce”.
O órgão integralista não admitia uma possível inimizade entre dois de seus adversários – o criador de A Manha e o presidente da Associação Brasileira de Imprensa: “O judeu Apporelly finge atacar o judeu Herbert Moses.”
No dia seguinte à publicação, uma sexta-feira, Apparício Torelly teve seu Chrysler interceptado na frente de casa. Do outro carro desceram cinco homens armados que o sequestraram por algumas horas. “Desci da limusine sob a intimação dos canos” – relatou Apporelly ao jornal O Globo. “Parecia uma cena de gângsteres.”
Não eram integralistas, mas um grupo de oficiais da Marinha que exigiam que o Jornal do Povo interrompesse a publicação de um folhetim reconstituindo a Revolta da Chibata, comandada, em 1910, pelo marinheiro João Cândido. O humorista foi libertado depois de lhe tirarem as roupas e rasparem a cabeça. Naquele mesmo dia, o Jornal do Povo, que contava entre seus repórteres com o jovem Carlos Lacerda, teve seu destino selado – não pelos oficiais da Marinha, mas pelo governo de Vargas, que o tirou de circulação depois de dez dias de existência. Foi ao voltar dessa aventura que o humorista teria mandado colocar na porta do seu escritório a placa “Entre sem bater”.
ais tarde, em 1937, Madeira de Freitas faria uma derradeira tentativa no campo da imprensa de humor, publicando O Macaco,“semanário hipocondríaco, órgão oficial da tristeza e da melancolia”. O jornal, no entanto, duraria apenas dois meses. Ficou inconclusa a “História da Revolução de 30 pelo método confuso”, prometida pelo semanário.
A partir daquele momento, o médico-humorista-integralista teria poucos motivos para sorrir. Associando-se à ala mais radical do movimento, o escritor pacato deu lugar a uma figura belicosa, que escondia granadas entre as roupas da gaveta. Acusado de envolvimento no putsch integralista de maio de 1938, sofreu um derrame ao ser preso pela polícia do Estado Novo. Afastado da clínica e da Faculdade Fluminense de Medicina, Madeira de Freitas morreu em fevereiro de 1944.
Curiosamente, e de modo característico do tumulto ideológico daqueles anos, entre os simpatizantes integralistas que haviam participado de um desfile dias antes do putsch frustrado de maio de 1938 estava o marinheiro João Cândido. Seduzido pelas ideias de Plínio Salgado, também ele, o líder da Revolta da Chibata e herói do folhetim publicado no Jornal do Povo, tinha decidido vestir a camisa verde, segundo contou ao jornalista Edmar Morel. Inimigos irreconciliáveis, tanto Madeira de Freitas quanto Apparício Torelly se mostravam igualmente perplexos quando se tratava de compreender o Brasil e seu método confuso.
16 de abril de 2012
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