França elege
presidente socialista – mancheteiam os jornais. Para o leitor incauto, fica a
impressão de que o campeão socialista, François Hollande, derrotou o malvado
capitalista Nikolas Sarkozy. As esquerdas estão assanhadas. Já vi pessoinhas
desinformadas vibrando com a vitória do bem sobre o mal. Ora, não é bem
assim.
Há horas venho falando no que os franceses chamam de “glissement de mots”. As palavras vão escorregando e acabam adquirindo um sentido oposto ao que antes significavam. Claro que tais escorregadelas não são inocentes. No século passado ocorreu uma, e das mais graves. A Rússia criou a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. E os europeus criaram a social-democracia. Os comunistas, num lampejo de marketing, associaram o socialismo europeu ao socialismo soviético. E toda Europa virou – pelo menos para os botocudos – socialista. Como se o socialismo comunista algo tivesse a ver com o socialismo social-democrata. Mas o sofisma pegou.
Hollande não é socialista. É social-democrata, o que é bastante diferente de ser socialista. E muito próximo de ser capitalista. Ou centro-direita, como preferem os mais delicados, já que a palavrinha capitalismo se tornou um tanto fora de moda após o desmoronamento do comunismo. Poucos ainda têm a coragem de usá-la. Entre estes, o cineasta Michael Moore, que permanece preso ao passado e ainda vê um conflito entre capitalismo e democracia. Democracia, para o cineasta, é obviamente o socialismo. Aquele das Repúblicas Socialistas Soviéticas, bem entendido.
"O dia 6 de maio marca um novo começo para a Europa", afirmou Hollande, observando que os eleitores escolheram a mudança. Como político, só pode falar em mudança. O espantoso é que ainda há quem acredite nisso. Em todos os jornais que leio, vejo alminhas ingênuas achando que ontem a França deu uma guinada à esquerda.
Retornemos 31 anos atrás. Eu voltava da Inglaterra com uma amiga. Seriam seis da tarde. Em Paris, mal cheguei em casa, liguei a televisão. Na tela, aos poucos foi surgindo uma imagem. Começou pela testa e foi descendo, em fatias. Antes que tivesse chegado aos cílios, percebi que não era a careca de Giscard d’Estaing. O vencedor das eleições na França, naquele 10 de maio, era Mitterrand. Mesmo a imprensa internacional foi surpreendida. Havia apostado na vitória de Giscard. Só quando caminhões de champanhe começaram a abandonar o QG de Giscard, os jornalistas perceberam que a notícia estava ailleurs.
Minha amiga, gaúcha em trânsito pela Europa, apavorou-se. Confundida pela associação que a imprensa brasileira fazia entre o socialismo francês e o socialismo soviético, queria pegar passaporte e voltar ao Brasil antes que o novo governo fechasse as fronteiras. Verdade que nem só ela se confundiu. Empresários franceses empacotaram seus dinheiros e tentaram sair do país através de discretas fronteiras suíças. Medo bobo. Como bom francês, Mitterrand não iria sacrificar o bem-estar de seus conterrâneos em nome de um ideal besta. Socialismo mesmo - le vrai - a França só recomenda para o Terceiro Mundo.
A eleição de Mitterrand é um desses mistérios que confunde qualquer analista político. Ninguém desconhecia sua participação no governo pró-nazista de Vichy, do qual recebeu, na primavera de 43, a Francisque, a mais alta condecoração conferida pelo marechal Pétain. Tampouco era desconhecida sua participação decisiva, como ministro do Interior, na guerra da Argélia e nas torturas praticadas pelo Exército francês. Defensor de uma Argélia francesa, Miterrand reprimiu com ferocidade os movimentos insurrecionais. Em setembro de 53, declarou: "Para mim, a manutenção da presença francesa na África do Norte, de Bizerte a Casablanca, é o primeiro imperativo de toda política". Em 54, afirmou na tribuna da Assembléia Nacional: "A rebelião argelina não pode encontrar senão uma forma terminal: a guerra".
Um golpe de imprensa empanava sua trajetória, o falso atentado nas cercanias do Luxembourg. Na noite de 15 de outubro de 59, ao sair da brasserie Lipp, Mitterrand, então senador pela Nièvre, sentiu-se perseguido por um carro. Ele faz um desvio pela avenue de l’Observatoire, pára sua 403, pula uma cerca viva e se joga de bruços na grama. Uma rajada de metralhadora é disparada sobre seu carro. No dia seguinte, o fato está na primeira página de todos os jornais, do Le Monde ao Humanité, o jornal oficial do PC francês.
Aos 43 anos, o político ambicioso vira herói. A glória é efêmera. Três dias depois, o jornal Rivarol, entrevista um dos agressores de Mitterrand, que afirma ter sido o próprio Mitterrand que encomendara o atentado, para fazer subir sua cota de popularidade. O desmonte da farsa caiu no vazio. Processado por ultraje à magistratura, após a cassação de sua imunidade parlamentar, Mitterrand será beneficiado por um non-lieu, como também seus "agressores".
Ex-colaborador de um governo pró-nazista, condecorado por este mesmo governo, mentor da guerra na Argélia e responsável pela tortura de milhares de argelinos, anticomunista ferrenho numa França que sempre nutriu simpatias pelo regime soviético, farsante vulgar capaz de forjar um atentado para ganhar votos, nada disto impediu Mitterrand de derrotar Giscard em 81, com 52,22% dos votos expressos, e de eleger-se por mais um setenato em 88.
Empunhando a bandeira do socialismo, Mitterrand, político de extração nazista e queridinho de Pétain, enganou não só os franceses como o mundo todo. Na época, também se falou em mudanças. Mudou algo na França de 1981 para cá? Estruturalmente, nada. Mudaram apenas fatores que nada têm a ver com orientação política, mas dependem da economia e imigração, como maior desemprego e avanço do islamismo. Se algo novo ocorreu na França de lá para cá foi sua adesão ao euro, mas isso nada tem a ver com socialismo ou Mitterrand.
Hollande prometeu aumentar gastos públicos e impostos. Não vai conseguir. Isto não depende dele, mas do consenso dos 27 da Europa. Que são governados, em sua maioria, por conservadores. Se em algum momento o candidato teve algum propósito socializante, terá de voltar atrás, como fez Mitterrand.
Coincidentemente, nestes dias estou lendo Paris, a festa continuou, de Alan Riding, sobre a vida cultural na França durante a ocupação nazista, de 1940 a 44. O tema não é novo, e já foi abordado por vários autores, entre eles Gilles Ragache e Jean Robert Ragache, em Des Écrivains et des artistes sous l’occupation – 1940 – 1944. Nestas obras, vemos quase toda a intelectualidade francesa confraternizando com os generais alemães – entre outros Sartre e Simone de Beauvoir -, indiferentes às atrocidades do regime nazista. A hospitalidade dos franceses era tal que nos espetáculos de ópera eram fornecidos programas em alemão aos invasores. Se a França não mudou durante a ocupação alemã, por que mudaria agora?
Tire o cavalinho da chuva quem acha que a França mudará. A França é eterna. Não muda. Nem tem porque mudar, pelo menos rumo a um sistema que já morreu.
08 de maio de 2012
janer cristaldo
Há horas venho falando no que os franceses chamam de “glissement de mots”. As palavras vão escorregando e acabam adquirindo um sentido oposto ao que antes significavam. Claro que tais escorregadelas não são inocentes. No século passado ocorreu uma, e das mais graves. A Rússia criou a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. E os europeus criaram a social-democracia. Os comunistas, num lampejo de marketing, associaram o socialismo europeu ao socialismo soviético. E toda Europa virou – pelo menos para os botocudos – socialista. Como se o socialismo comunista algo tivesse a ver com o socialismo social-democrata. Mas o sofisma pegou.
Hollande não é socialista. É social-democrata, o que é bastante diferente de ser socialista. E muito próximo de ser capitalista. Ou centro-direita, como preferem os mais delicados, já que a palavrinha capitalismo se tornou um tanto fora de moda após o desmoronamento do comunismo. Poucos ainda têm a coragem de usá-la. Entre estes, o cineasta Michael Moore, que permanece preso ao passado e ainda vê um conflito entre capitalismo e democracia. Democracia, para o cineasta, é obviamente o socialismo. Aquele das Repúblicas Socialistas Soviéticas, bem entendido.
"O dia 6 de maio marca um novo começo para a Europa", afirmou Hollande, observando que os eleitores escolheram a mudança. Como político, só pode falar em mudança. O espantoso é que ainda há quem acredite nisso. Em todos os jornais que leio, vejo alminhas ingênuas achando que ontem a França deu uma guinada à esquerda.
Retornemos 31 anos atrás. Eu voltava da Inglaterra com uma amiga. Seriam seis da tarde. Em Paris, mal cheguei em casa, liguei a televisão. Na tela, aos poucos foi surgindo uma imagem. Começou pela testa e foi descendo, em fatias. Antes que tivesse chegado aos cílios, percebi que não era a careca de Giscard d’Estaing. O vencedor das eleições na França, naquele 10 de maio, era Mitterrand. Mesmo a imprensa internacional foi surpreendida. Havia apostado na vitória de Giscard. Só quando caminhões de champanhe começaram a abandonar o QG de Giscard, os jornalistas perceberam que a notícia estava ailleurs.
Minha amiga, gaúcha em trânsito pela Europa, apavorou-se. Confundida pela associação que a imprensa brasileira fazia entre o socialismo francês e o socialismo soviético, queria pegar passaporte e voltar ao Brasil antes que o novo governo fechasse as fronteiras. Verdade que nem só ela se confundiu. Empresários franceses empacotaram seus dinheiros e tentaram sair do país através de discretas fronteiras suíças. Medo bobo. Como bom francês, Mitterrand não iria sacrificar o bem-estar de seus conterrâneos em nome de um ideal besta. Socialismo mesmo - le vrai - a França só recomenda para o Terceiro Mundo.
A eleição de Mitterrand é um desses mistérios que confunde qualquer analista político. Ninguém desconhecia sua participação no governo pró-nazista de Vichy, do qual recebeu, na primavera de 43, a Francisque, a mais alta condecoração conferida pelo marechal Pétain. Tampouco era desconhecida sua participação decisiva, como ministro do Interior, na guerra da Argélia e nas torturas praticadas pelo Exército francês. Defensor de uma Argélia francesa, Miterrand reprimiu com ferocidade os movimentos insurrecionais. Em setembro de 53, declarou: "Para mim, a manutenção da presença francesa na África do Norte, de Bizerte a Casablanca, é o primeiro imperativo de toda política". Em 54, afirmou na tribuna da Assembléia Nacional: "A rebelião argelina não pode encontrar senão uma forma terminal: a guerra".
Um golpe de imprensa empanava sua trajetória, o falso atentado nas cercanias do Luxembourg. Na noite de 15 de outubro de 59, ao sair da brasserie Lipp, Mitterrand, então senador pela Nièvre, sentiu-se perseguido por um carro. Ele faz um desvio pela avenue de l’Observatoire, pára sua 403, pula uma cerca viva e se joga de bruços na grama. Uma rajada de metralhadora é disparada sobre seu carro. No dia seguinte, o fato está na primeira página de todos os jornais, do Le Monde ao Humanité, o jornal oficial do PC francês.
Aos 43 anos, o político ambicioso vira herói. A glória é efêmera. Três dias depois, o jornal Rivarol, entrevista um dos agressores de Mitterrand, que afirma ter sido o próprio Mitterrand que encomendara o atentado, para fazer subir sua cota de popularidade. O desmonte da farsa caiu no vazio. Processado por ultraje à magistratura, após a cassação de sua imunidade parlamentar, Mitterrand será beneficiado por um non-lieu, como também seus "agressores".
Ex-colaborador de um governo pró-nazista, condecorado por este mesmo governo, mentor da guerra na Argélia e responsável pela tortura de milhares de argelinos, anticomunista ferrenho numa França que sempre nutriu simpatias pelo regime soviético, farsante vulgar capaz de forjar um atentado para ganhar votos, nada disto impediu Mitterrand de derrotar Giscard em 81, com 52,22% dos votos expressos, e de eleger-se por mais um setenato em 88.
Empunhando a bandeira do socialismo, Mitterrand, político de extração nazista e queridinho de Pétain, enganou não só os franceses como o mundo todo. Na época, também se falou em mudanças. Mudou algo na França de 1981 para cá? Estruturalmente, nada. Mudaram apenas fatores que nada têm a ver com orientação política, mas dependem da economia e imigração, como maior desemprego e avanço do islamismo. Se algo novo ocorreu na França de lá para cá foi sua adesão ao euro, mas isso nada tem a ver com socialismo ou Mitterrand.
Hollande prometeu aumentar gastos públicos e impostos. Não vai conseguir. Isto não depende dele, mas do consenso dos 27 da Europa. Que são governados, em sua maioria, por conservadores. Se em algum momento o candidato teve algum propósito socializante, terá de voltar atrás, como fez Mitterrand.
Coincidentemente, nestes dias estou lendo Paris, a festa continuou, de Alan Riding, sobre a vida cultural na França durante a ocupação nazista, de 1940 a 44. O tema não é novo, e já foi abordado por vários autores, entre eles Gilles Ragache e Jean Robert Ragache, em Des Écrivains et des artistes sous l’occupation – 1940 – 1944. Nestas obras, vemos quase toda a intelectualidade francesa confraternizando com os generais alemães – entre outros Sartre e Simone de Beauvoir -, indiferentes às atrocidades do regime nazista. A hospitalidade dos franceses era tal que nos espetáculos de ópera eram fornecidos programas em alemão aos invasores. Se a França não mudou durante a ocupação alemã, por que mudaria agora?
Tire o cavalinho da chuva quem acha que a França mudará. A França é eterna. Não muda. Nem tem porque mudar, pelo menos rumo a um sistema que já morreu.
08 de maio de 2012
janer cristaldo
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