Já fui fascinado pelo cinema. Ainda o sou,
de certa forma. Mas permaneci em um cinema já passado: Chaplin, Bergman,
Visconti, Louis Malle, Fellini, Kurosawa, Peckinpah, cineastas personalíssimos,
cujas obras eram sempre esperadas com sofreguidão.
Hoje, está difícil encontrar quem os substitua. Depois destes, vi obras interessantes - e mesmo genais -, dessas que jamais encherão várias salas ao mesmo tempo. Arte não é para massa. Quando se faz arte para multidões, não é mais arte.
Cinema foi algo importante para minha geração. Em Porto Alegre havia um intenso movimento cinematográfico, impulsionado pelo Cineclube de Porto Alegre, tocado pelo P.F. Gastal. À meia-noite das sextas-feiras sempre havia a pré-estréia de algum filme de um diretor de renome, ainda que fossem chatos como Goddard ou Antonioni.
No sábado, debatíamos os filmes na Rua da Praia ou Praça da Alfândega e no domingo, algum crítico iluminado, dava seu veredito nas páginas do Correio do Povo. Era uma época em que havia diretores, algo que hoje quase não mais se vê. Cada filme era esperado com certa ansiedade e cinema fazia parte da vida intelectual da cidade.
O movimento cinematográfico era intenso em Porto Alegre. Podia não se fazer cinema no Rio Grande do Sul, mas havia uma crítica cinematográfica atuante, que não se furtava a opinar como os cineastas de Paris, Roma ou Califórnia deviam conduzir seus filmes.
Cinéfilo contumaz, orientei minha correspondência em Paris um pouco para o cinema. Fiz a cobertura de três festivais de Cannes, dois de Berlim e um de Cartago, na Tunísia. Fora Apocalipse Now, acho que jamais comentei esses filmes que lotam salas. Sempre buscava o cinema menos conhecido, de pequeno público, de países como a Dinamarca, Finlândia, Iugoslávia, Grécia, Bulgária, Tunísia, Romênia. Nesses países sempre encontramos gratas surpresas, que raramente chegam ao Brasil.
Escrevi muito tempo sobre cinema e estudei um ano de cinema na Stockholms Universitet. Em sua cinemateca, vi filmes desde os primórdios do cinema, que jamais foram vistos por estas bandas. Durante meus quatro anos de Paris, com minha credencial de jornalista, não pagava entrada em sala alguma. Foi uma festa. Um de meus critérios básicos: não ver filmes franceses. Com isto não quero dizer que os filmes franceses sejam ruins. Apenas que não gosto do jeito deles filmarem. São muito literários. O cômico francês Louis de Funès estabelecia uma diferença entre o cinema francês e o americano. Diante de uma porta, no cinema americano o personagem abre a porta e entra. No cinema francês, o personagem não abre a porta sem antes falar: "Voilà, la porte!" E só depois entra.
Hoje, meu interesse pela dita sétima arte diminuiu um pouco. Acho que começou com a literatura. Há mais de vinte anos não leio ficção. Histórias inventadas me cansam. O real é sempre mais fascinante. Verdade que ainda restam ficções soberbas no cinema capazes de me fascinar. Falo de filmes como A Festa de Babete, de Gabriel Axe. Certamente, o mais belo e sensível filme que já vi. Mexeu muito comigo também The Map of Human Heart, de Vicent Ward, que creio não ter passado no Brasil. No fundo, a busca de uma filha pelo pai, um esquimó que, por circunstâncias da vida, tornou-se fotógrafo em um bombardeiro inglês durante a Segunda Guerra. Comovente. Ultimamente, os melhores que vi foram Adeus Lênin, do alemão Wolfgang Becker, e Slogans, do romeno Gjergj Xhuvani, uma sinistra comédia situada nos dias da ditadura de Nicolae Ceaucescu.
Com o tempo e os novos hábitos, cansei até mesmo de ir a salas de cinema. Surgiu ultimamente um público inculto, que leva para a sala de cinema os vícios do cinema caseiro. Acostumados a ver cinema em casa, conversando uns com outros, levam para as salas públicas esta prática infame. Sem falar no ruído dos saquinhos de pipoca. Pior ainda, os filmes hoje tendem a ser dublados.
Nunca suportei filme dublado. Ver um filme sueco ou italiano em português – ou mesmo em francês - destrói qualquer filme. Um Marcelo Mastroianni ou Liv Ullmann falando em carioquês chiado me faz doer o estômago. Ano passado, para meu conforto, comprei um televisor de 56 polegadas, se de plasma ou LED, não me perguntem: não sei. Assim, pensei, posso curtir algum cinema em tela confortável sem precisar entrar em filas ou enfrentar um público mal-educado. Assinei também TV a cabo, para escapar da miséria nossa.
Com alguma sorte, encontrei bons filmes, que jamais chegaram ao Brasil. E sempre posso reaver algum faroestão de meus dias de guri, ou algum James Bond, que como entretenimento serve. Mas, de uns dois anos para cá, uma praga invadiu os canais estrangeiros, o filme dublado. Não está fácil encontrar um filme legendado na televisão. Os exibidores oferecem às vezes uma opção com legenda. Mas com diálogos em português. Você é tratado como um surdo. Já que se recusa a ouvir, vai legenda. Mas ver um filme legendado e dublado ao mesmo tempo é uma tortura só suportável por analfabetos. Acabo utilizando um recurso que não deixa de mutilar a obra: desligo o som. Tenho me dedicado, ultimamente, ao cinema mudo.
Mas quem pediu filmes dublados? O público não há de ser. É óbvio que esta dublagem generalizada de filmes é fruto da guilda de dubladores. Que, para ganhar a vida, impõem suas mediocridades – não há dublagem brasileira que não seja ridícula – a um público que assinou televisão paga para ver televisão – ou melhor, cinema - inteligente.
Leio na Folha de São Paulo de hoje que uma auxiliar de escritório surda, de Belo Horizonte, ganhou na Justiça o direito de receber indenização de um cinema que não exibia filmes legendados no dia em que ela queria comemorar o aniversário de dois anos de namoro.
A sentença foi divulgada nesta semana. O cinema pode recorrer da decisão que o obrigou a pagar R$ 10 mil à jovem por danos morais e a doar outros R$ 10 mil a uma creche. Em agosto de 2010, K. R. C., 25, foi assistir ao filme Shrek para Sempre, no complexo de exibição do Cineart Multiplex, com o namorado I. V. R., 30, que também é surdo. Como o longa só era exibido dublado, o casal optou por ver outra animação, Meu Malvado Favorito, mas enfrentou o mesmo problema.
Os dois, então, registraram um boletim de ocorrência. K. disse à Folha, em entrevista por e-mail, que tem direito de assistir a filme igual a todo mundo. "Tem mais filme dublado do que legendado. Fico olhando ouvintes entrando animados no cinema e eu nervosa, lá fora, com vontade de ver", afirmou.
Na decisão, o juiz Fabrício da Cunha Araújo afirmou que o exibidor tem o dever de passar pelo menos um filme de cada gênero compreensível para surdos por dia. A televisão até que oferece legendas. Mas me empurra junto a dublagem. Como não posso reclamar que não entendo o filme, estou no mato sem cachorro. E meu belo televisor acabou perdendo sua utilidade.
Qualquer dia, dublam até ópera. Melhor curtir algumas, antes que tal hora chegue. Enquanto isso, meus respeitos à surdinha. Pessoas assim, com uma rígida consciência de seus direitos, são moedas cada vez mais raras neste país onde se engole tudo que é servido.
04 de novembro de 2012
janer cristaldo
Hoje, está difícil encontrar quem os substitua. Depois destes, vi obras interessantes - e mesmo genais -, dessas que jamais encherão várias salas ao mesmo tempo. Arte não é para massa. Quando se faz arte para multidões, não é mais arte.
Cinema foi algo importante para minha geração. Em Porto Alegre havia um intenso movimento cinematográfico, impulsionado pelo Cineclube de Porto Alegre, tocado pelo P.F. Gastal. À meia-noite das sextas-feiras sempre havia a pré-estréia de algum filme de um diretor de renome, ainda que fossem chatos como Goddard ou Antonioni.
No sábado, debatíamos os filmes na Rua da Praia ou Praça da Alfândega e no domingo, algum crítico iluminado, dava seu veredito nas páginas do Correio do Povo. Era uma época em que havia diretores, algo que hoje quase não mais se vê. Cada filme era esperado com certa ansiedade e cinema fazia parte da vida intelectual da cidade.
O movimento cinematográfico era intenso em Porto Alegre. Podia não se fazer cinema no Rio Grande do Sul, mas havia uma crítica cinematográfica atuante, que não se furtava a opinar como os cineastas de Paris, Roma ou Califórnia deviam conduzir seus filmes.
Cinéfilo contumaz, orientei minha correspondência em Paris um pouco para o cinema. Fiz a cobertura de três festivais de Cannes, dois de Berlim e um de Cartago, na Tunísia. Fora Apocalipse Now, acho que jamais comentei esses filmes que lotam salas. Sempre buscava o cinema menos conhecido, de pequeno público, de países como a Dinamarca, Finlândia, Iugoslávia, Grécia, Bulgária, Tunísia, Romênia. Nesses países sempre encontramos gratas surpresas, que raramente chegam ao Brasil.
Escrevi muito tempo sobre cinema e estudei um ano de cinema na Stockholms Universitet. Em sua cinemateca, vi filmes desde os primórdios do cinema, que jamais foram vistos por estas bandas. Durante meus quatro anos de Paris, com minha credencial de jornalista, não pagava entrada em sala alguma. Foi uma festa. Um de meus critérios básicos: não ver filmes franceses. Com isto não quero dizer que os filmes franceses sejam ruins. Apenas que não gosto do jeito deles filmarem. São muito literários. O cômico francês Louis de Funès estabelecia uma diferença entre o cinema francês e o americano. Diante de uma porta, no cinema americano o personagem abre a porta e entra. No cinema francês, o personagem não abre a porta sem antes falar: "Voilà, la porte!" E só depois entra.
Hoje, meu interesse pela dita sétima arte diminuiu um pouco. Acho que começou com a literatura. Há mais de vinte anos não leio ficção. Histórias inventadas me cansam. O real é sempre mais fascinante. Verdade que ainda restam ficções soberbas no cinema capazes de me fascinar. Falo de filmes como A Festa de Babete, de Gabriel Axe. Certamente, o mais belo e sensível filme que já vi. Mexeu muito comigo também The Map of Human Heart, de Vicent Ward, que creio não ter passado no Brasil. No fundo, a busca de uma filha pelo pai, um esquimó que, por circunstâncias da vida, tornou-se fotógrafo em um bombardeiro inglês durante a Segunda Guerra. Comovente. Ultimamente, os melhores que vi foram Adeus Lênin, do alemão Wolfgang Becker, e Slogans, do romeno Gjergj Xhuvani, uma sinistra comédia situada nos dias da ditadura de Nicolae Ceaucescu.
Com o tempo e os novos hábitos, cansei até mesmo de ir a salas de cinema. Surgiu ultimamente um público inculto, que leva para a sala de cinema os vícios do cinema caseiro. Acostumados a ver cinema em casa, conversando uns com outros, levam para as salas públicas esta prática infame. Sem falar no ruído dos saquinhos de pipoca. Pior ainda, os filmes hoje tendem a ser dublados.
Nunca suportei filme dublado. Ver um filme sueco ou italiano em português – ou mesmo em francês - destrói qualquer filme. Um Marcelo Mastroianni ou Liv Ullmann falando em carioquês chiado me faz doer o estômago. Ano passado, para meu conforto, comprei um televisor de 56 polegadas, se de plasma ou LED, não me perguntem: não sei. Assim, pensei, posso curtir algum cinema em tela confortável sem precisar entrar em filas ou enfrentar um público mal-educado. Assinei também TV a cabo, para escapar da miséria nossa.
Com alguma sorte, encontrei bons filmes, que jamais chegaram ao Brasil. E sempre posso reaver algum faroestão de meus dias de guri, ou algum James Bond, que como entretenimento serve. Mas, de uns dois anos para cá, uma praga invadiu os canais estrangeiros, o filme dublado. Não está fácil encontrar um filme legendado na televisão. Os exibidores oferecem às vezes uma opção com legenda. Mas com diálogos em português. Você é tratado como um surdo. Já que se recusa a ouvir, vai legenda. Mas ver um filme legendado e dublado ao mesmo tempo é uma tortura só suportável por analfabetos. Acabo utilizando um recurso que não deixa de mutilar a obra: desligo o som. Tenho me dedicado, ultimamente, ao cinema mudo.
Mas quem pediu filmes dublados? O público não há de ser. É óbvio que esta dublagem generalizada de filmes é fruto da guilda de dubladores. Que, para ganhar a vida, impõem suas mediocridades – não há dublagem brasileira que não seja ridícula – a um público que assinou televisão paga para ver televisão – ou melhor, cinema - inteligente.
Leio na Folha de São Paulo de hoje que uma auxiliar de escritório surda, de Belo Horizonte, ganhou na Justiça o direito de receber indenização de um cinema que não exibia filmes legendados no dia em que ela queria comemorar o aniversário de dois anos de namoro.
A sentença foi divulgada nesta semana. O cinema pode recorrer da decisão que o obrigou a pagar R$ 10 mil à jovem por danos morais e a doar outros R$ 10 mil a uma creche. Em agosto de 2010, K. R. C., 25, foi assistir ao filme Shrek para Sempre, no complexo de exibição do Cineart Multiplex, com o namorado I. V. R., 30, que também é surdo. Como o longa só era exibido dublado, o casal optou por ver outra animação, Meu Malvado Favorito, mas enfrentou o mesmo problema.
Os dois, então, registraram um boletim de ocorrência. K. disse à Folha, em entrevista por e-mail, que tem direito de assistir a filme igual a todo mundo. "Tem mais filme dublado do que legendado. Fico olhando ouvintes entrando animados no cinema e eu nervosa, lá fora, com vontade de ver", afirmou.
Na decisão, o juiz Fabrício da Cunha Araújo afirmou que o exibidor tem o dever de passar pelo menos um filme de cada gênero compreensível para surdos por dia. A televisão até que oferece legendas. Mas me empurra junto a dublagem. Como não posso reclamar que não entendo o filme, estou no mato sem cachorro. E meu belo televisor acabou perdendo sua utilidade.
Qualquer dia, dublam até ópera. Melhor curtir algumas, antes que tal hora chegue. Enquanto isso, meus respeitos à surdinha. Pessoas assim, com uma rígida consciência de seus direitos, são moedas cada vez mais raras neste país onde se engole tudo que é servido.
04 de novembro de 2012
janer cristaldo
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