"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

BENTO XVI E O JORNALISMO ARREGÃO


          Media Watch - Folha de S. Paulo 
Já foi dito por muitos católicos que acompanhar a cobertura desta renúncia papal e do próximo conclave por determinada imprensa era um tipo excelso de sacrifício. Não é de se admirar. Já teve jornal de primeira linha divulgando desde que a renúncia criava um precedente para se acabar com a infalibilidade papal - oi? - até que o momento era uma deixa para um Concílio Vaticano III. Mas até aí, sejamos tolerantes, opiniões jogadas ao vento, aceitas por qualquer papel.

O nível geral, no entanto, desceu drasticamente na última sexta feira, dia 15, quando a Folha de São Paulo divulgou o artigo de Barbara Gancia sobre o tema em questão.
 
Muito diferente dos outros textos, em que opiniões e especulações - por mais mirabolantes que fossem - eram colocadas em pauta com um mínimo de fundamento e seriedade, esse artigo chocou pelo seu caráter estrito de folhetim, propaganda e ataque pessoal. Dá para ver o veneno contido por entre a tipografia. Ao que tudo indica, a idéia era mesmo debochar, invocar ar de superioridade e capitalizar.

O artigo se intitula "Bento XVI, o Arregão". O escopo do artigo versa que Bento XVI se acovardou diante dos desafios da Igreja, que sua renúncia foi um sinal de "derrotismo", "frouxidão", e que este sai "de cena mordido", incapaz de imitar a Cristo. Começa criticando o fato do papa ter renunciando em latim - não ficou claro qual seria a sugestão para se falar diante de cardeais do mundo inteiro que falam em comum, o latim - depois entra nos clichês sobre pedofilia e encerra de forma épica qualificando João Paulo II de misógino. Mas a idéia toda do artigo é a exploração do próprio título, sendo o conteúdo conseguinte apenas desculpa para se divulgar o rótulo e ridicularizar. Bento XVI, seria então arregão.

Quando Joseph Ratzinger fez exatos 75 anos, confessou num seminário em Roma que estava muito cansado e doente. Era diabético, hipertenso, já tinha sofrido AVC e pedido dispensa 3 vezes do seu cargo a João Paulo II, sendo as 3 vezes negada. Já usava marca-passo há algum tempo. Dois anos depois, quando João Paulo II morre e seu sonho de voltar para a Alemanha lecionar finalmente surge no horizonte, os cardeais votam em maioria pela eleição de Ratzinger. Ele poderia ter dito não. Além de todo o vasto campo de trabalho que o cargo de chefe de estado exige - precisando receber Presidentes, Primeiros-Ministros, Diplomatas, etc - Ratzinger ainda teria que zelar pelo rebanho de 1 bilhão de fiéis no mundo. Que empreendimento humano pede tanto a uma pessoa idosa, com saúde delicada? Nenhum. Como dito, ele poderia ter recusado. A história nos mostra no entanto, que ele disse sim.

Mas para Barbara Gancia, Bento XVI não passa de um arregão.

A Igreja Católica tem 4 mil bispos no mundo, sendo que como Papa, Bento XVI precisaria gastar tempo individualmente com cada um deles e periodicamente. Some a estes, outros 180 núncios apostólicos espalhados em quase todos os países. Como Papa, Bento XVI precisaria escrever cartas, encíclicas, constituições e exortações apostólicas, homilias, discursos, preparar catequeses e audiências semanais.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Como Papa, Bento XVI precisaria viajar, e muito. Como Papa, Bento XVI precisaria governar o Estado do Vaticano e a Cúria Romana. Como Papa, Bento XVI precisaria rezar, e as vezes, até dormir. Como sabemos, ele disse sim para tudo isso.

Mas para Barbara Gancia, Bento XVI não passa de um arregão.

Em apenas oito anos e já com idade avançada e saúde frágil, Bento XVI fez pelo menos 28 viagens fora da Itália, sendo algumas delas extremamente pesadas. Em 2005, jovens do mundo todo foram escutar o Papa professor em Colônia. Em 2006 foi a vez de se encontrar com as famílias, em Valência. Em 2007 celebrou a canonização do nosso primeiro santo.
Em 2008 visitou o "Ground Zero", em New York, e rezou pelas vítimas do terrorismo além de se encontrar com as vítimas dos injustificáveis abusos sexuais. Em 2009 rezou no muro das lamentações, na Terra Santa e nos anos seguintes ainda visitaria Portugal, Reino Unido, Chipre, Croácia, Madri, Alemanha, Benim, México, Cuba…até para o Líbano o Papa viajaria, no meio de tumultos, tiros, e convulsões civis…e em cada viagem, quilos de papéis com discursos, protocolos com autoridades locais, eclesiásticas, além das atividades espirituais próprias para com cada comunidade.

Mas como sabemos, para Barbara Gancia, Bento XVI não passa de um arregão.

De 2005 a 2012, Bento XVI nos deixou ao menos 279 cartas, 139 cartas apostólicas, 117 constituições apostólicas, 18 motu proprio, 4 exortações apostólicas, 3 encíclicas, 3 extensos livros narrando a sua biografia de Jesus Cristo, além de milhares (sim, milhares) de discursos e homilias. Os números são quase miraculosos, não fossem o rigor e a disciplina germânica que sempre marcaram a atividade de Joseph Ratzinger (doutor em 7 universidades), aquele mesmo que 8 anos antes já havia pedido 3 vezes por dispensa.

É, mas para Barbara Gancia, Bento XVI não passa de um arregão.

O código de direito canônico prevê a renúncia de todos os cargos eclesiásticos, inclusivo de um Papa. Não é um fato comum que um Papa renuncie, mas é um fato normal, ou seja, dentro da normalidade da Igreja. Bento XVI já havia emitido sua opinião em entrevista a Peter Seewald: se um Papa não consegue mais assumir os seus encargos, não apenas teria o direito de renunciar mas poderia até mesmo ter o dever de fazê-lo. O mesmo Seewald revelou nesse sábado, dia 16, que Bento XVI estava "esgotado há muito tempo", e que este ouvira do Papa um comovente "sou um homem idoso, as forças me abandonaram, acho que basta o que fiz até agora". Seewald ainda confidenciou que o último livro do Papa fora escrito "com suas últimas forças".

Bem, você já sabe o que a Barbara Gancia pensa de Bento XVI: arregão.

Nos dias seguintes a renúncia, autoridades do mundo todo vieram se manifestar em consideração a Bento XVI. O presidente da Itália disse que se tratava de um ato "de grande coragem e generosidade". Barack Obama disse que seu "apreço e orações" estavam com o papa. A chanceler alemã, Angela Merkel, afirmou que aquela era uma "decisão difícil que deve ser respeitada". David Cameron, primeiro-ministro britânico, disse que Bento XVI foi um papa que fez todos se sentarem e pensarem e que "fará falta como um líder espiritual de milhões de pessoas". "Eu acredito que ele merece muito crédito para o avanço das relações inter-religiosas em todo o mundo e entre o judaísmo, o cristianismo e o islamismo”, afirmou o rabino chefe israelense, Yona Metzger.

Ao contrário dessas pessoas, Barbara Gancia considera Bento XVI um arregão.

Peço desculpas pela insistência em reafirmar a opinião da jornalista tantas vezes. Era apenas para deixar claro que Barbara Garcia teve uma grande chance de escrever com seriedade, com decoro e honestidade. Deixou de lado a ética e optou pelo deboche, pela injúria pura e simples. Neste artigo, Barbara desistiu de fazer jornalismo, ou em outras palavras, Barbara decidiu arregar.

Publicado no jornal Gazeta do Povo.
22 de fevereiro de 2013Silvio Medeiros, publicitário, foi vencedor por 4 quatro vezes do Festival de Cannes.

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