A dura realidade dos sangrentos anos de chumbo do Chile convertida em uma alegre campanha com jeito de comercial de TV. O filme chileno No, que foi exibido na abertura da Mostra de Cinema de São Paulo em outubro de 2012 e entrou no circuito comercial em janeiro, relembra o trabalho do jovem e bem sucedido publicitário René Saavedra durante o plebiscito convocado pelo então ditador Augusto Pinochet, em 1988.
Em jogo, a permanência de Pinochet no poder por mais oito anos. Pressionado pela comunidade internacional, o ditador convocou a votação certo de que a opção pelo “Sí” (“sim”, em espanhol) sairia vitoriosa.
Surpreendentemente, Saavedra conseguiu vencer as resistências da esquerda que queria uma campanha tradicional e pesada e levou para a casa dos telespectadores a promessa de um futuro melhor embalada com as técnicas mais modernas do mercado publicitário daquele período.
A população compareceu em massa às urnas e, em uma vitória apertada, a opção pelo “No” ( “não”), saiu vencedora. Dirigido por Pablo Larraín e estrelado por Gael García Bernal, No é o candidato chileno ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2013. O Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira (19/2) pela TV Brasil discutiu o uso da publicidade pela política e como marketing eleitoral evoluiu durante a transição para a democracia no Brasil dos anos 1980.
Para discutir este tema, Alberto Dines recebeu no estúdio do Rio de Janeiro a cientista política Alessandra Aldé e o jornalista Nelson Hoineff. Professora e pesquisadora da Faculdade de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e do Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos (IESP), Alessandra estuda jornalismo eleitoral, propaganda política e cultura política.
Dirigiu, com Vicente Ferraz, o filme Arquitetos do Poder. Nelson Hoineff é produtor e diretor de televisão e já trabalhou em três campanhas eleitorais.
Dirigiu programas jornalísticos para as redes Manchete, SBT, Band, Cultura, TVE e Discovery. É presidente do Instituto de Estudos de Televisão (IETV).
Em São Paulo, o programa contou com a presença do jornalista Juca Kfouri, que escreve para o caderno “Esporte”da Folha de S. Paulo. Kfouri participa do programa Linha de Passe e apresenta o Juca Entrevista, ambos na ESPN.
Antes do debate ao vivo, em editorial, Dines sublinhou que apenas uma vez uma sangrenta ditadura foi derrubada por uma série de comerciais de TV: “Hoje o marketing transformou-se em ingrediente obrigatório de qualquer campanha política, mas em 1988, quando a Guerra Fria chegava ao auge, era impensável enfrentar a extrema direita militar com uma série de spots publicitários alegres, animados, esperançosos para contrastar com o cheiro de chumbo que imperava no Chile”.
Lamentação dá lugar ao futuro promissor
A reportagem exibida antes do debate no estúdio mostrou o depoimento de Daniel Dreifuss, produtor do longa No. Dreifuss explicou que o publicitário René Saavedra decidiu montar uma campanha focada na democracia como um produto. “Ele usa linguagem de comerciais, ele faz comercias para a Coca-Cola, para grandes empresas estrangeiras. Ele usa essa linguagem de publicidade – que foi curiosamente trazida durante a ditadura, e, de certa forma, representa um modelo econômico neoliberal que se instaurou no Chile durante os anos de ditadura – para derrotar a própria ditadura”, disse o produtor. O slogan da campanha, por exemplo, era um arco-íris com a frase “A alegria já vem”. Para o produtor, é interessante notar que a opção “No” não enfatizou a violência, os desaparecidos políticos e as mortes dos 15 anos de ditadura.
O filme, na avaliação de Dreifuss , é atual porque trata de como a mídia tem a capacidade de promover mudanças sociais: “Hoje a gente pode ver como na Primavera Árabe e em todos os eventos no Oriente Médio as pessoas se organizaram na praça e como as informações circulam tão rápido.
Hoje, quando temos Facebook, Twitter, Instagram e todas essas ferramentas nas mãos, podemos usar a tecnologia e os meios midiáticos para promover mudanças sociais, organizar movimentos e fazer circular mensagens. A velocidade e a visibilidade desses assuntos é muito diferente da que a gente tinha em 1988”.
A reportagem também entrevistou Moacyr Goes, diretor de teatro e de cinema que tem em seu currículo quatro campanhas eleitorais. Para ele, a publicidade pode agregar técnicas interessantes de comunicação às disputas eleitorais, mas é preciso que as campanhas mantenham o confronto de ideias inerente à política. “[Com] a dor, a desesperança, o terror, as pessoas convivem cotidianamente; pelo menos uma parte considerável da população chilena. Então, esse frescor de novidade é salutar. O que não é salutar é tentar impor um discurso que se despregue demais da realidade. Como se o Chile não tivesse vivendo e vivido em recente tempo uma experiência tenebrosa de totalitarismo.”
Mídia mobiliza a sociedade
O sociólogo Bernardo Sorj explicou que a campanha do “No” feita por Saavedra se diferenciou da antiga escola ideológica de esquerda, que enfatizava a confrontação e a divisão da sociedade: “Uma campanha que se fundamenta em ideias de que o povo pode ser feliz, que estamos aqui todos juntos para aumentar a alegria geral da população.
De repente, a esquerda se veste de algo positivo e, inclusive, se distanciando do velho estilo político e se dissociando da pecha que a direita tenta, nesse plebiscito, colocar na esquerda, que é associá-la ao tempo do Allende, de confrontação, de quase guerra civil daquele período”. Sorj afirmou que o papel dos meios de comunicação naquela época foi o de mobilizar a população para criar uma vontade de enfrentar o regime e de votar maciçamente.
O programa também entrevistou a jornalista Tereza Cruvinel, que ressaltou que Pinochet, quando outorgou uma Constituição em 1988, garantiu que haveria um plebiscito sobre a continuidade do poder. “Ele supunha que a ditadura fosse eterna. Todo ditador acha que está superbem o com povo, que nunca irá acontecer nada. Ele não supunha que o plebiscito iria dar ao contrário, podia ser um instrumento de ruptura do regime”, relembrou a jornalista.
Já no Brasil, o presidente Ernesto Geisel sinalizava a abertura política desde o início dos anos 1980. “Essa abertura lenta, gradual e segura não pressupunha plebiscito ou instrumento parecido. Mas ela previa para 1982 as primeiras eleições diretas para governador, e aquilo mostrou que a oposição estava fortíssima, o povo queria mudanças”, lembrou Tereza.
A jornalista recordou a articulação em torno da campanhas pelas Diretas Já. “Esse pleito elegeu um novo Congresso onde o jovem deputado Dante de Oliveira apresentou uma emenda – todo mundo já sabe dessa história – e ninguém levava a emenda a sério porque uma emenda constitucional é a coisa mais difícil de aprovar, tinha que ter pelo menos dois terços, hoje são três quintos de votos”, explicou a jornalista. Para ela, houve uma contradição: “Nós chamamos as massas para as ruas para pedir que se aprove uma emenda, mas que dependia dos votos dos parlamentares sob pressão do Poder Executivo de um governo ditatorial”. Tereza Cruvinel ressaltou que a nossa transição foi “pactuada” para que não houvesse retrocesso, um grande temor daquele período.
O povo de volta às urnas
No debate ao vivo, Dines lembrou que parte da imprensa brasileira não foi contagiada pela campanha das Diretas Já. Na avaliação de Alessandra Aldé, se no Brasil tivesse ocorrido um plebiscito como o do Chile na década de 1980, certamente a opção pela mudança teria saído consagrada no pleito. Para ela, é possível comparar a situação do Chile em 1988 com a campanha presidencial brasileira, em 1989. Neste caso, o PT fez uma campanha bem sucedida para promover o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva, que acabou perdendo no segundo turno para Fernando Collor de Mello, do PRN.
“Se você analisar a linguagem da campanha, ela foi conduzida por um publicitário, que curiosamente tem até uma biografia parecida com a do Saavedra, também é filho de exilados, e colocou esse tom do humor”, disse Alessandra. A cientista política lembrou o uso de vinhetas que reproduziam programas humorísticos da TV Globo pela campanha do PT e destacou que o produto tinha um tratamento gráfico leve. “Chamou a atenção esse caráter marqueteiro da primeira campanha do Lula”, disse Alessandra.
Nelson Hoineff acrescentou que o marketing de Collor começara a ser construído anos antes das eleições de 1989, com a criação do ícone do “caçador dos marajás”. “É curioso que os símbolos da grande televisão, da televisão de massa, me parecem que são colocados de uma forma muito popularesca, ao contrário do que é feito na campanha do Saavedra”, comparou o jornalista. Esta característica, na opinião de Nelson Hoineff, com frequência está presente nas campanhas da esquerda no Brasil. Hoineff contou que ficou mal impressionado com as expectativas que os políticos de esquerda tinham das campanhas que dirigiu: “A mesma forma indolente, arrogante, com a qual a televisão trata o espectador era o que os políticos esperavam que as suas campanhas fizessem com o espectador”.
Falta crítica?
O jornalista Juca Kfouri ponderou que na primeira campanha presidencial disputada por Lula já havia a utilização de elementos “mais bem humorados” do marketing político, ao contrário de suas campanhas anteriores para o governo de São Paulo. Naquela ocasião, prevalecia uma esquerda mais ortodoxa “querendo sangue”. Sobre a arrogância do marketing levado às últimas consequências, Kfouri ressaltou: “Eu lembro do passo em falso que deu o ‘rei do marketing’, o Sr. Fernando Collor, o caçador de marajá, quando conclamou o povo a se vestir de verde e amarelo em apoio a ele. O povo se vestiu de preto, pintou a cara e o derrubou”.
Juca Kfouri fez um alerta sobre o preocupante o poder das campanhas publicitárias e eleitorais: “São campanhas que exacerbam o acriticismo, vendem uma ideia do otimismo pelo otimismo, absolutamente despregada da realidade, e transformam as pessoas que têm alguma coisa a mais na cabeça e que são críticas da realidade em pessimistas ou em fracassomaníacas, para usar um termo que andou em voga em governos anteriores.
Dou o exemplo de uma coisa que está acontecendo neste momento: uma campanha de cerveja que vende a ideia de que quem esteja preocupado com o que vai acontecer na Copa do Mundo seja um chato, um cético, um pessimista, quando não é”. Campanhas como essas, na avaliação de Kfouri, não contribuem para o aprimoramento do senso crítico e para a democracia.
Dines perguntou a Alessandra Aldé como o marketing eleitoral poderá evoluir com as novas ferramentas de comunicação. “A política incorpora as linguagens disponíveis porque um político, para sobreviver, precisa se comunicar, precisa dos apoios. Então, sempre vai procurar manipular a comunicação com o que estiver ao seu alcance”, explicou Alessandra. Para ela, é interessante observar que a internet reproduz a conjuntura da sociedade, onde há atores com diferentes graus de visibilidade, mas por outro lado permite brechas onde vozes marginais podem se manifestar sem a mediação dos veículos de massa. Como um exemplo desta situação, Alessandra citou a campanha de Marcelo Freixo para prefeitura do Rio de Janeiro, em 2012, quando o candidato usou habilmente a rede de computadores com amplo apoio da juventude.
Para Hoineff, é preciso relativizar a importância da televisão nas campanhas políticas futuras. Hoje, a televisão de massa não tem a mesma audiência das décadas passadas. “As pessoas mais jovens e a garotada simplesmente desconhecem a televisão. Essas pessoas é que serão as eleitoras dos próximos anos. Acho que estamos vivendo os últimos momentos da importância da televisão na campanha política”, afirmou o jornalista.
22 de fevereiro de 2013
Por Lilia Diniz
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O filme No
Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 672, exibido em 19/2/2013
Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.
Como acaba uma ditadura militar? Com uma rebelião popular, com um confronto entre os donos do poder ou simples cansaço dos ditadores? Ditaduras acabam de várias formas, mas ao que consta só existe um caso em que uma sangrenta e implacável ditadura tenha sido derrubada por uma série de comerciais de TV, como aqueles que vendem refrigerantes ou sabonetes.
Pois foi este o caso da ditadura de Augusto Pinochet, no Chile, quando os facínoras, forçados pelas pressões internacionais, foram obrigados a fazer um plebiscito para saber se o povo queria continuar oprimido ou preferia a liberdade.
Surpreendentemente, ganhou o “não” – em espanhol “no” – título do filme que conta esta incrível façanha midiática e agora candidato ao Oscar na categoria de melhor filme estrangeiro.
Hoje o marketing transformou-se em ingrediente obrigatório de qualquer campanha política, mas em 1988, quando a Guerra Fria chegava ao auge, era impensável enfrentar a extrema direita militar com uma série de spots publicitários alegres, animados, esperançosos para contrastar com o cheiro de chumbo que imperava no Chile.
No momento em que a mídia tradicional oferece inconfundíveis sinais de fadiga e falta de inspiração, para este Observatório da Imprensa é extremamente alentador registrar a vitalidade do cinema saído diretamente da realidade.
22 de fevereiro de 2013
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