"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

O COMOVENTE RETRATO DO "BRASIL CARINHOSO".

A menos de um quilômetro do Planalto, brasileiros vivem na miséria
 
 
Cinquenta pessoas vivem sem saneamento ou água encanada
 
A menos de um quilômetro do Palácio do Planalto, numa área invadida nas imediações da garagem do Senado, 50 pessoas vivem em barracos de madeira e lona, sem saneamento nem água encanada, cercadas de lixo e ratos.
Os casebres contam apenas com dois banheiros coletivos, cada um com espaço para uma pessoa, usados principalmente pelas mulheres. Como não há fossa, boa parte dos moradores prefere ir no mato.
O banho, de tonel e caneca, é com água fria trazida de ministérios e estacionamentos próximos. Nesta terça-feira, a presidente Dilma Rousseff disse que o Brasil tem o grande desafio de encontrar a miséria que ainda não é conhecida pelo governo, em cerimônia de lançamento da ampliação do programa Brasil Sem Miséria, e pediu ajuda de governantes para achar os pobres que "se escondem dos olhos" do governo.

A moradora Rosa Maria Albino dos Santos, de 36 anos, diz que está cadastrada no Bolsa Família e que deveria receber R$ 300 por mês. Segundo ela, porém, os repasses estão bloqueados. Mãe de quatro filhos, ela conta que o marido foi preso por tentativa de assalto. Além do dinheiro do Bolsa Família, Rosa trabalha como catadora de papel, papelão, plástico e metais, assim como os demais moradores da área. O serviço rende R$ 150 por mês, mas a quantia costuma cair nos meses de chuva.
 
Em tese, portanto, ela poderia ser classificada como miserável pelo critério de renda do governo, que considera extremamente pobre quem sobrevive com até R$ 70 por mês.

- Tem dois meses que cortaram a minha bolsa - diz Rosa.

O servente de obras Joacy Ferreira da Silva, de 37 anos, vive com dois filhos de 17 e 14 anos. Ele conta que está desempregado há quatro meses. Os garotos não frequentam a escola e trabalham como lavadores de carro. Ele mostrou o cartão do Bolsa Família e diz que deveria receber R$ 32 por mês, mas o benefício também teria sido cortado. Dependendo de quanto os filhos ganhem lavando carros, pode ser que a família se enquadre no critério de miséria definido pelo governo.

Aos 63 anos, Francisca Pedro da Silva afirma que vive no local há mais de 25 anos e que os demais moradores são seus filhos, netos, bisnetos e uma tataraneta. O marido de Francisca, Rosival Albino dos Santos, de 74, é aposentado e recebe um salário mínimo (R$ 678) por mês. A renda do casal, portanto, é de R$ 339 mensais e está acima da linha oficial de miséria estipulada pelo governo. Logo, os dois idosos não têm direito ao Bolsa Família.

- Não ganhei nada nunca do governo - disse Francisca nesta terça-feira.

A alimentação do casal vem das sobras de restaurantes da Esplanada dos Ministérios. É o marido quem busca diariamente. Como não tem geladeira, Francisca salga a carne, cuja maior parte consiste em gordura. O alimento cru fica do lado de fora do casebre, ao ar livre, sobre uma mesa improvisada. Vista de longe, a carne parecia preta, tamanho era o número de moscas varejeiras.

Filha de Francisca, Maria do Socorro, de 40 anos, vive longe da área invadida, na região administrativa do Paranoá. Ela lidera a associação de moradores e catadores e diz que foi a única que conseguiu sair. Segundo Maria do Socorro, os demais não vão embora porque o governo do Distrito Federal prometeu dar casas a todos em outra região.

- Para quem vem de fora, parece feio, mas era pior. Para nós, é um orgulho estar assim. Desde 2009, não derrubam mais barracos. Antes, era uma lona para dormir e, de manhã, tínhamos que recolher tudo, se não a fiscalização vinha e tirava o que visse pela frente. Eles não são miseráveis. Só precisam de ajuda - disse Maria do Socorro.

Alguns moradores do local têm fogão e botijão de gás em casa. Mas muitos cozinham com lenha, em fogões improvisados na rua. Aparelhos de tevê também são vistos. Uma ligação clandestina leva eletricidade para os casebres. Um carro Celta estava estacionado junto a um barraco. A moradora Rosângela da Silva Santos, de 30 anos, disse que recebeu o veículo do ex-marido para compensar o fato de que ele não paga pensão. Rosângela vive com oito filhos com idade entre 4 e 18 anos. Dois adolescentes e duas crianças de 4 e 5 anos não frequentam a escola.

Aos 18 anos, Maria Carolina Celestino de Souza mora num casebre com a filha de um ano. Ela reclamou do fato de que sua mãe recebe Bolsa Família, mas ela, que vive em outro barraco, não. Maria Carolina afirmou que ratos costumam entrar em casa e que ela pega piche e restos de asfalto quente das ruas para tapar buracos entre as folhas de madeirite e pedaços de compensado, numa tentativa de impedir o acesso de roedores. Quando chove, a água entra nos casebres pelo chão.

Em 2011, no ano do lançamento do Brasil sem Miséria, o governo do DF incluiu os moradores no Cadastro Único, a porta de entrada para o Bolsa Família. Os benefícios, porém, só teriam começado a ser pagos no fim do ano passado e, em seguida, teriam sido bloqueados.

O terreno fica junto a uma rua próxima dos prédios anexos da Esplanada dos Ministérios. É comum que motoristas levem comida e doem colchões e roupas. Uma delas é a oficial de Justiça aposentada Haidecilda de Souza Neves, de 57 anos. Ela levou duas camisetas hoje, e contou que costuma dar comida aos moradores.

- É falta de amor e consideração dos governantes. O lixo ao lado do luxo. Crianças nascendo aqui, no meio deste lixo todo, atrás do poder. Não posso com isso - disse Haidecilda.

20 de fevereiro de 2013
Demétrio Weber - O Globo
 
NOTA AO PÉ DO TEXTO
 
Um espetáculo deprimente jogado na cara do Brasil, em plena cidade de Brasília, próximo ao Palácio do Planalto, mas que se multiplica Brasil afora, anonimamente, sem direitos de qualquer natureza política, social, econômica. Sem denúncias do seu estado de mendicância. Sem retrato em jornais, já que a miséria não é interessante politicamente. Até já podemos perceber que se encontra banalizada, pela frequência com que nos deparamos com ela nos centros urbanos de qualquer cidade do país. É uma forma de violência branca, nunca mencionada como tal, ainda que milhares de pessoas sejam assassinadas por ela. Pesa sobre essa forma de violência um silêncio tácito. Matéria excelente em épocas de eleição, quando então se demonstra preocupação - recheada de promessas mirabolantes -
com "o estado de vicissitudes de uma população esquecida" pela saúde, pela educação, pelo emprego. Esquecida pelas políticas públicas, que julgam que bolsas-famílias resolvem a crônica miséria de um Brasil fora das estatísticas.
Cinquenta miseráveis que perambulam pelas proximidades do Palácio, chamou a atenção de jornalistas. Estivessem numa das cidades periféricas de Brasília, e com certeza encontraremos vários grupos nessa mesmíssima situação, e não seriam apresentados à opinião  pública, como atores do descaso e da impunidade com que se trata os menos iguais.
Há que se fazer muito mais do que 'slogan' do tipo "País rico é país sem pobreza". Muito mais do que discursos repletos de estatísticas que mascaram a verdadeira face da miséria.
m.americo

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