Nem sempre a sabedoria dos mais velhos ajuda os mais jovens. O jovem quer errar, precisa errar
Os que diziam isso, naquela época, hoje têm mais de 50 anos e não sei se continuam a afirmar a mesma coisa ou se ensinam a seus filhos o que aprenderam com a idade.
Por exemplo, que o consumo de drogas, a que se entregavam entusiasticamente naquela época, levou muitos amigos seus à loucura ou à morte precoce. Mas, se o fizerem, correm o risco de ouvir deles que não confiam em ninguém que tenha mais de 30 anos de idade, pois foi o que aprenderam com os próprios pais.
De fato, aos 20 anos, a gente não sabe muito da vida. Tampouco os mais velhos sabem tudo. Se aquela frase irreverente expressava a necessidade de uma geração de romper com os valores estabelecidos e entregar-se ao desvario beatnik, há que levar em conta que cabe aos jovens inventar a própria vida e, para isso, têm que, às vezes, não ouvir os conselhos dos pais.
É que nem sempre a sabedoria dos mais velhos ajuda os mais jovens. E mais que isso, o jovem quer errar, precisa errar, porque é errando que se aprende. Não adianta a mãe advertir o filhinho de não tocar o dedo na chama da vela, pois fogo queima. Ele só acreditará depois de queimar o dedo.
Bem, toda essa conversa vem a propósito de minha irritação com a barulheira desta rua onde moro. Desta vez, foi um vendedor de laranjas que apregoava as virtudes de sua mercadoria, berrando num alto-falante posto em cima de uma caminhonete.
Minha filha Luciana, que me visitava na ocasião, preocupada com meu estado de espírito, aconselhou-me a mudar de apartamento e buscar uma rua tranquila, como aquela onde mora. Minha reação a seu conselho deve tê-la surpreendido.
-- Sair eu deste apartamento onde moro há 30 anos?! Nunca! Já pensou na quantidade de livros que teria que transportar e rearrumar na outra casa? Prefiro enlouquecer aqui mesmo.
Foi a minha primeira reação. Logo, mudei de tom e lembrei-lhe de que, mal me instalara aqui, descobri que, sob meu quarto de dormir, funcionava uma boate. Iniciou-se uma luta que durou anos e que terminei vencendo. Se não saí naquela época, não seria agora que o faria.
E quando os meninos da vizinhança passaram a jogar bola embaixo de minha janela? Era todos os dias, no final da tarde. Eles, na verdade, menos jogavam do que gritavam, se esgoelavam. Um inferno.
Desesperado, comecei a engendrar um plano para acabar com aquilo e concluí que o mais eficaz seria quebrar meia dúzia de garrafas e jogar os cacos de vidro na calçada. Encontrada a solução, fui dormir naquela noite mais conformado, sem calcular as consequências daquele plano. Sucedeu que, dois dias depois, à hora de sempre, não houve a pelada. Nem no dia seguinte, nem nunca mais.
Achei ótimo, mas não me dei ao trabalho de refletir sobre o fato. Não muito depois, foi um vendedor de uvas que, todos os dias, a partir das três da tarde, começava a gritar num alto-falante: "Uvas por dois reais! É só hoje e não tem mais!".
Isso durou semanas, mas um dia acabou também. Senti-me aliviado e não pensei mais no assunto, mesmo porque o que nos desagrada a gente trata, se possível, de esquecer.
E não é que, certa noite, dois caras começaram a conversar aos berros debaixo da minha janela. Além do berro em si mesmo, irrita-me especialmente o fato de que o sujeito está junto do outro, mas berra como se estivesse do outro lado da rua.
Tive vontade de descer, ir até eles e lhes dar um esporro. Mas pensei um pouco, fui até a cozinha tomar um gole d' água e, quando voltei à sala, eles tinham ido embora ou se calado. Então refleti: se eu tivesse dado um esporro neles, teria ganho dois inimigos e eles, para me irritar, estariam possivelmente berrando até agora. E ainda teria ganho dois inimigos.
Terminei aprendendo: espere passar, pois tudo passa. A sabedoria é ter paciência e não se estressar nem brigar. Mas isso só se aprende com a idade.
14 de abril de 2013
Ferreira Gullar, Folha de São Paulo
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