"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



domingo, 14 de abril de 2013

"O DESCASO COM AS OBRAS PÚBLICAS"

Reajustes orçamentários e contratação de serviços adicionais se tornaram práticas recorrentes na maioria dos empreendimentos no Brasil

A sociedade brasileira vive atualmente um dilema curioso. Diante da necessidade de decidir entre duas situações contraditórias, a escolha geralmente recai sobre a proposta que oferece resultados mais imediatos.
Não importa se tal decisão possa trazer consequências negativas de longo prazo. O que interessa atualmente é o aqui e agora. O futuro pouco importa.

Infelizmente, essa tem sido uma prática comum nas decisões do poder público, especialmente quando o assunto envolve a cidade. A obsessão de realizar obras vistosas, mesmo que de baixa qualidade, tem sido uma constante nos dias de hoje.
Partindo do pressuposto de que tudo é descartável, barbaridades são cometidas em nome de uma ideologia focada apenas na eficiência produtiva e nos seus resultados imediatos.
Os jornais publicam diariamente as consequências perversas resultantes desse tipo de atitude.

Houve época em que as obras públicas extrapolavam os seus objetivos específicos e algumas se transformavam em marcos do desenvolvimento urbano da cidade. Obviamente que naquele tempo já existiam falcatruas, tanto na contratação dos serviços como durante a execução das obras.

Hoje, contudo, esse processo adquiriu novos contornos e uma impressionante sofisticação. As grandes obras se transformaram em uma espécie de bilhete premiado para lobistas espertalhões, políticos inescrupulosos e empreiteiros ávidos por lucros fáceis.
Algumas emendas nos orçamentos da União, dos estados e dos municípios refletem, com clareza, os interesses escusos e favorecimentos de diversas naturezas.
Reajustes orçamentários e contratação de serviços adicionais se tornaram práticas recorrentes na maioria das obras públicas no Brasil.

A geração de lucro é, sem dúvida, uma contingência inerente a qualquer atividade empresarial. Todavia, não se justifica ampliar margens de lucro forjando obras desnecessárias e de baixa qualidade.
Muito menos, apelar para o encarecimento da mão de obra e dos materiais de construção para justificar reajustes previamente planejados. A incapacidade de sobreviver em um mercado competitivo não pode ser acobertada por acordos nocivos aos interesses da sociedade.
Não adianta enaltecer o resultado das concessões de obras públicas e das parcerias público-privadas se o controle do produto oferecido está muito aquém do desejado.

No Rio, as intermináveis intervenções na Cidade das Artes, a perdulária reforma do Maracanã e o recente colapso técnico do Elevado do Joá e do Engenhão demonstram o quanto são verdadeiros o desperdício e a malversação dos recursos públicos.
A estes exemplos soma-se um significativo número de edificações produzidas pelo programa Minha Casa Minha Vida, em sua maioria de péssima qualidade arquitetônica e construtiva.

A decomposição estrutural dos prédios recém-construídos para receberem as vítimas da tragédia do Morro do Bumba, em Niterói, mostra a que ponto se chegou com os desvios éticos e morais no trato da coisa pública. Este e outros casos são exemplos escandalosos que envergonham os que não compactuam com esse tipo de tramoia generalizada.

Zelar pelo aprimoramento de critérios técnicos que assegurem resultados compatíveis com a destinação da obra que está sendo realizada é um pressuposto indissociável da melhoria da qualidade do produto final oferecido.
Planejar pensando no futuro é uma prática que deve ser retomada o mais rapidamente possível. Basta de tratar as construções — especialmente a moradia — como um bem descartável semelhante a outro qualquer. A sociedade brasileira está longe de ter status financeiro para arcar com o ônus dessa equivocada pretensão.
Enquanto os responsáveis — diretos e indiretos — por esse conjunto de desatinos permanecerem impunes não há dúvida de que a farra com o dinheiro público irá continuar indefinidamente.

Luiz Fernando Janot é arquiteto e urbanista,
O Globo
14 de abril de 2013

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