Por tamanha enrascada ninguém esperava, até porque Margaret Thatcher já estava fora do poder há 23 anos e, debilitada e com demência há mais de cinco, sequer aparições públicas mais fazia. Parecia destinada a ocupar levas de historiadores do século XX, como a mulher que maior poder político exerceu na arena mundial. E continuaria a gerar montanhas de análises sobre as transformações que impôs à sociedade britânica como chefe de governo. O que ninguém previu foi que a Dama de Ferro ainda ressuscitaria velhas paixões depois de falecida.
O anúncio de sua morte, na segunda-feira passada, gerou previsíveis manifestações de pesar, respeito e reverência para quem foi a figura mais dominante da Grã-Bretanha desde Winston Churchill em 1940. Só que o monopólio da narrativa apologética durou pouco. Paralelo ao luto oficial de quem vê em Thatcher a líder que salvou e modernizou o país, brotou a céu aberto o rancor armazenado por milhões de excluídos por sua política. Sindicalistas, mineiros, servidores públicos, todo o tecido social da Inglaterra de espinha dorsal quebrada que teve de se adequar à era Thatcher, pelo visto não esqueceu. Nem perdoou.
Ninguém estranha quando mortes de ditadores e tiranos são festejadas por opositores que a eles sobreviveram. Já o falecimento de líderes ou ex-líderes de países democráticos suscita, no máximo, indiferença em quem não quer se juntar ao luto nacional. Ofensas e regozijo são considerados de mau gosto. No caso de Margaret Thatcher, contudo, está valendo tudo.
Ruidosas chopadas em Brixton e Glasgow se sucederam alegremente desde o anúncio fúnebre que enlutou a nação. Enquanto se programa o solene e grandioso enterro de quarta-feira próxima, ao qual comparecerá a rainha, até mesmo um membro da força policial britânica já postou um tweet saudando “o mundo agora melhor, com esta morte que chegou 87 anos atrasada”. Foi expulso da corporação, é claro. Passeatas, protestos, acrimônia na internet não arrefecem. Polêmica em vida, Margaret Thatcher reemergiu além túmulo com todo seu potencial divisionário.
Em um único quesito, pode-se afirmar sem medo de erro, a primeira- ministra sempre obteve aprovação unânime: na figura do fiel consorte que ocupou 10, Downing Street a seu lado durante os anos no poder.
Denis Thatcher era um executivo de sucesso na indústria petrolífera, recém-aposentado, quando Margaret Hilda Roberts, com quem casara mais de duas décadas antes, se tornara líder do Partido Conservador. Além do sobrenome, deu à esposa a segurança financeira necessária para que ascendesse na política fazendo carreira solo.
Quando Margaret chegou no topo, como primeira mulher a comandar uma potência ocidental, não existia protocolo nem roteiro nem título nem “job description” para um consorte masculino. E ainda menos para um consorte tão claramente desinteressado em alterar o estilo de vida privado que levara até então. De início, foi um prato cheio para caricaturistas e humoristas. Pouco a pouco, porém, Denis foi ganhando a simpatia nacional ao definir os limites mínimos de sua obrigação e temperar suas poucas aparições públicas com o humor leve e solto que faltava à mulher.
Preencheu o papel com inteligência intuitiva, sem provocar arranhão na agenda pública da mulher — o que é notável, sobretudo se comparado ao desempenho de tantas primeiras-damas mundo afora. De ideias ainda mais conservadoras do que as da própria esposa, ele teve o bom senso de manter as suas em círculo fechado. E teve a sorte de um célebre descuido seu só ter se tornado público quando Thatcher já estava fora do poder: “Mantenha a Suíça branca”, aconselhara ele ao presidente daquele país, durante um jantar em 1984.
O low profile mantido pelo inquilino adjunto da residência oficial de Downing Street se apoiava no pouco apreço que ele reservava aos jornalistas. Chamava-os de “répteis”. Um provérbio aprendido com o pai lhe ensinara a arte de não dizer nada: “O homem só mata a baleia quando ela esguicha”.
Dennis Thatcher também caiu no gosto popular por nunca ter parado de tomar o seu gin de todas as horas, boas ou más (em eventos oficiais em que bebidas alcoólicas não eram servidas, encarregava o agente de segurança da esposa de abastecê-lo de “água especial”). Atravessou com cavalheirismo uma estrutura familiar oposta à moldura conservadora do seu entorno social. “Casei com uma das mulheres mais grandiosas que o mundo já produziu. Já o que eu produzi, soa pequeno: lealdade”, concluiu, ao final..
Denis Thatcher morreu dez anos atrás, aos 88 anos e recebeu louvas em uníssono de todos os partidos. Alguns, como é de praxe, se excederam. “Ele foi um verdadeiro grande homem. Sem ele, seria impossível imaginar a sra. Thatcher alcançando o sucesso que alcançou”, proclamou o líder conservador Duncan Smith. Bobagem.
Fato é que em onze anos numa posição propícia a jogos de poder e intrigas palacianas, o sr. Thatcher passou ao largo desses exercícios. E ainda deu uma contribuição espontânea à cartilha do enxugamento do Estado, tão cara à primeira-ministra: ele não dispunha de funcionários a seu serviço, não gerou despesa, não inventou nenhuma obra de caridade para se ocupar.
“Centavos não caem do céu, é preciso trabalhar aqui na terra para ganhá-los”, ensinou Margaret Thatcher durante a cruzada privatizante que transformou tão profundamente a Grã-Bretanha. Sugestão insolente enviada esta semana à comissão organizadora do cortejo fúnebre e exéquias: em respeito às ideias defendidas pela falecida, o enterro, que custará perto de 15 mil libras esterlinas (algo próximo a R$ 45 mil) deveria ser privatizado, numa operação calculada para dar lucro ao governo.
Dorrit Harazim é jornalista, O Globo
14 de abril de 2013
O anúncio de sua morte, na segunda-feira passada, gerou previsíveis manifestações de pesar, respeito e reverência para quem foi a figura mais dominante da Grã-Bretanha desde Winston Churchill em 1940. Só que o monopólio da narrativa apologética durou pouco. Paralelo ao luto oficial de quem vê em Thatcher a líder que salvou e modernizou o país, brotou a céu aberto o rancor armazenado por milhões de excluídos por sua política. Sindicalistas, mineiros, servidores públicos, todo o tecido social da Inglaterra de espinha dorsal quebrada que teve de se adequar à era Thatcher, pelo visto não esqueceu. Nem perdoou.
Ninguém estranha quando mortes de ditadores e tiranos são festejadas por opositores que a eles sobreviveram. Já o falecimento de líderes ou ex-líderes de países democráticos suscita, no máximo, indiferença em quem não quer se juntar ao luto nacional. Ofensas e regozijo são considerados de mau gosto. No caso de Margaret Thatcher, contudo, está valendo tudo.
Ruidosas chopadas em Brixton e Glasgow se sucederam alegremente desde o anúncio fúnebre que enlutou a nação. Enquanto se programa o solene e grandioso enterro de quarta-feira próxima, ao qual comparecerá a rainha, até mesmo um membro da força policial britânica já postou um tweet saudando “o mundo agora melhor, com esta morte que chegou 87 anos atrasada”. Foi expulso da corporação, é claro. Passeatas, protestos, acrimônia na internet não arrefecem. Polêmica em vida, Margaret Thatcher reemergiu além túmulo com todo seu potencial divisionário.
Em um único quesito, pode-se afirmar sem medo de erro, a primeira- ministra sempre obteve aprovação unânime: na figura do fiel consorte que ocupou 10, Downing Street a seu lado durante os anos no poder.
Denis Thatcher era um executivo de sucesso na indústria petrolífera, recém-aposentado, quando Margaret Hilda Roberts, com quem casara mais de duas décadas antes, se tornara líder do Partido Conservador. Além do sobrenome, deu à esposa a segurança financeira necessária para que ascendesse na política fazendo carreira solo.
Quando Margaret chegou no topo, como primeira mulher a comandar uma potência ocidental, não existia protocolo nem roteiro nem título nem “job description” para um consorte masculino. E ainda menos para um consorte tão claramente desinteressado em alterar o estilo de vida privado que levara até então. De início, foi um prato cheio para caricaturistas e humoristas. Pouco a pouco, porém, Denis foi ganhando a simpatia nacional ao definir os limites mínimos de sua obrigação e temperar suas poucas aparições públicas com o humor leve e solto que faltava à mulher.
Preencheu o papel com inteligência intuitiva, sem provocar arranhão na agenda pública da mulher — o que é notável, sobretudo se comparado ao desempenho de tantas primeiras-damas mundo afora. De ideias ainda mais conservadoras do que as da própria esposa, ele teve o bom senso de manter as suas em círculo fechado. E teve a sorte de um célebre descuido seu só ter se tornado público quando Thatcher já estava fora do poder: “Mantenha a Suíça branca”, aconselhara ele ao presidente daquele país, durante um jantar em 1984.
O low profile mantido pelo inquilino adjunto da residência oficial de Downing Street se apoiava no pouco apreço que ele reservava aos jornalistas. Chamava-os de “répteis”. Um provérbio aprendido com o pai lhe ensinara a arte de não dizer nada: “O homem só mata a baleia quando ela esguicha”.
Dennis Thatcher também caiu no gosto popular por nunca ter parado de tomar o seu gin de todas as horas, boas ou más (em eventos oficiais em que bebidas alcoólicas não eram servidas, encarregava o agente de segurança da esposa de abastecê-lo de “água especial”). Atravessou com cavalheirismo uma estrutura familiar oposta à moldura conservadora do seu entorno social. “Casei com uma das mulheres mais grandiosas que o mundo já produziu. Já o que eu produzi, soa pequeno: lealdade”, concluiu, ao final..
Denis Thatcher morreu dez anos atrás, aos 88 anos e recebeu louvas em uníssono de todos os partidos. Alguns, como é de praxe, se excederam. “Ele foi um verdadeiro grande homem. Sem ele, seria impossível imaginar a sra. Thatcher alcançando o sucesso que alcançou”, proclamou o líder conservador Duncan Smith. Bobagem.
Fato é que em onze anos numa posição propícia a jogos de poder e intrigas palacianas, o sr. Thatcher passou ao largo desses exercícios. E ainda deu uma contribuição espontânea à cartilha do enxugamento do Estado, tão cara à primeira-ministra: ele não dispunha de funcionários a seu serviço, não gerou despesa, não inventou nenhuma obra de caridade para se ocupar.
“Centavos não caem do céu, é preciso trabalhar aqui na terra para ganhá-los”, ensinou Margaret Thatcher durante a cruzada privatizante que transformou tão profundamente a Grã-Bretanha. Sugestão insolente enviada esta semana à comissão organizadora do cortejo fúnebre e exéquias: em respeito às ideias defendidas pela falecida, o enterro, que custará perto de 15 mil libras esterlinas (algo próximo a R$ 45 mil) deveria ser privatizado, numa operação calculada para dar lucro ao governo.
Dorrit Harazim é jornalista, O Globo
14 de abril de 2013
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