Deus morto, escreve Albert Camus, é preciso transformar e organizar o mundo com as forças do homem. A partir deste dado, começa suas reflexões sobre a revolta histórica. Urge fazer uma distinção entre a revolução e o movimento de revolta. Spartacus não é um revolucionário, ele não quer mudar os princípios da sociedade romana. Ele se bate para que o escravo tenha direitos iguais aos do senhor, recusa a servidão e quer a igualdade com seu amo. Esta vontade de igualdade o conduzirá ao desejo de tomar o lugar do amo.
A revolução, por sua vez, é a mudança total. A partir da concepção astronômica de revolução – movimento que fecha um ciclo, que passa de um regime a outro após uma translação completa – Camus precisa sua definição. A revolução implica uma mudança do regime de governo. Para que uma mudança econômica seja uma revolução econômica é preciso que ela seja ao mesmo tempo política. Sejam seus meios sangrentos ou pacíficos, é a mudança política, a mudança de governo, que distinguirá a revolução da revolta. Esta dicotomia fundamental é posta em relevo pela frase célebre, citada por Camus: "Não, Sir, não se trata de uma revolta, mas de uma revolução".
Comentei esta distinção feita por Camus há dois anos, quando Tunísia e Egito derrubaram suas ditaduras e o movimento tendia a espalhar-se por outros países árabes e africanos. As manchetes todas falavam em revoluções democráticas. Quem hoje ousa falar em revoluções democráticas no mundo árabe?
Pelo jeito, deu a louca na Veja. Em edição que intitula como histórica, tem como chamada de capa:
OS SETE DIAS QUE MUDARAM O BRASIL
Salvo engano, Brasil é este país em que vivo e no qual agora escrevo. Para qualquer lado que olhe, não vejo mudança alguma. Salvo alguns prédios e carros depredados, mas isso nada tem de novo no país. Verdade que uma dúzia de cidades andaram baixando em alguns centavos a tarifa do transporte coletivo. Mas isto está longe de mudar qualquer país. Procuro a reportagem para ver o que mudou. Vamos lá:
“O PT acreditava que a paixão dos brasileiros pelo futebol seria exacerbada pelas Copas, de tal forma que ninguém mais notaria a corrupção e a ineficiência do governo. Errou feio. Os cartazes das ruas fizeram das Copas símbolos odiados do gasto público de péssima qualidade, do desvio de dinheiro e do abuso de poder”.
Símbolos odiados? Odiados por alguns gatos pingados. Os estádios estiveram lotados nesta Copa e isso que nem é a Copa do mundo, a que de fato inflama paixões. Veja superestima a multidão das ruas. Consta que foram um milhão na quinta-feira passada.
A situação não é tão grave como parece ser – comentei ontem -. Um milhão de pessoas nas ruas é 0,5 da população. A transmissão contínua das televisões dá a idéia de um país em chamas. Ora, longe disso. Meu bairro continua em seu mesmo ritmo. Todo mundo comprando, trabalhando, comendo, bebendo. O mesmo ocorrerá em dezenas, centenas de outros bairros, em São Paulo e no país todo. Vistas pela televisão, as cidades parecem ser puro caos. Não são. Caos só em dois ou três pontos do centro e nas avenidas onde os “jovens” se concentram.
Se o país mudou, não fui avisado. Veja continua insistindo em sua tese:
“Em 1992, em gesto de desespero, o então presidente Fernando Collor convocou os brasileiros a sair às ruas de verde e amarelo. O povo saiu de preto e ele saiu do palácio do Planalto. (...) Lula mandou os sindicalistas se fingirem de povo e o resultado foi o mesmo. Cascudos nos intrusos e bandeiras queimadas e rasgadas. Os esquerdistas tiveram de ouvir um dos mais elegantes xingamentos da história mundial das manifestações: “Oportunistas, oportunistas”.
Veja endossa a tese de que foram os cara-pintadas que derrubaram Collor. Ora, quem derrubou Collor foi o Congresso. Foram os deputados que Collor, jovem e arrogante, se recusou a comprar. Lula foi mais hábil. Esteve perto de um impeachment, mas o Congresso já estava regiamente pago.
Os mensaleiros que o digam. A revista também acha que alguns cascudos e algumas bandeiras queimadas em meio a uma confusão significam uma mudança no país.
No texto seguinte, Veja compara a baderna generalizada chez nous com a queda do muro de Berlim e a invasão da Áustria pelos húngaros em 89. Compara a rebelião de nações escravizadas por meio século pela União Soviética com o levante de uma meninada que até agora não soube dizer a que vem. “O comunismo acabou e a Alemanha se reunificou”, salienta a revista, para confirmar sua tese de que o petismo acabou. Ora, o petismo pode estar surpreso com o episódio, mas continua vivo e pujante enquanto houver uma nação a saquear. A União Soviética morreu de vez, dois anos depois da queda do Muro. Dona Dilma lidera as preferências dos eleitores para o próximo pleito.
Veja lembra que a frase que intitula a reportagem é de Lênin. “Até ele ficaria sem palpite se tivesse presenciado as mudanças as mudanças dos últimos dias no Brasil”. Sim, Lênin, que fuzilou o czar e sua família, que exterminou kulaks e criou gulags, certamente ficaria perplexo ao ver jornalistas chamando de revolução uns cascudos distribuídos em militantes de um partido corrupto.
“Esqueçamos os vândalos e os anarquistas, gente que não estava lutando por um governo melhor, mas por governo nenhum. A revolução verdadeira foi a que começou a ser feita pelos brasileiros que foram às ruas protestar por estar sendo mal governados” – escreve a revista, para bem salientar que de revolução se trata. Mais ainda, não é apenas revolução. É revolução verdadeira. Até dona Dilma deve estar rindo dos “revolucionários”. Quando pensava em revolução, em vez de ir para a rua portando cartazes, pegou em armas.
Que mudança de governo, que mudanças políticas, provocaram as multidões nas ruas? Nenhuma. O PT continua no poder, o PMDB também, o PSDB finge ser oposição, corruptos impunes e notórios continuam ocupando cargos no Congresso, corruptos notórios – e condenados – continuam exercendo a deputação.
De meu conhecimento, nunca a palavrinha foi tão desmoralizada. As revoluções começam com maiúsculas, continuam com minúsculas e acabam entre aspas, escreveu Ernesto Sábato. A revolução decretada por Veja começa pelo fim do caminho, entre aspas.
23 de junho de 2013
janer cristaldo
NOTA AO PÉ DO TEXTO
E você, navegante deste blog, o que pensa dessa antecipação de fracasso, feita pelo janer? Realmente, segundo o texto, o que aconteceu e ainda acontece, seria apenas balbúrdia de grupelhos descontentes, mas sem objetivos que norteiem os seus descontentamentos e frustrações? Ou no bojo desse movimento, uma juventude, e não diria apenas `uma juventude`, mas a reunião de várias classes sociais e pessoas de variadas idades, estariam latentes o desejo de mudança e a força de prosseguir até alcançar o início de um pacto sério de mudança?
Claro, revolução não é bem o que está acontecendo... De fato, até agora não se revogou nada. Será que isso apenas evidencia o pouco tempo do movimento, ou teríamos apenas uma manobra de massas aturdidas e sem direção?
O que trará o futuro? Eu não tenho respostas, porque não tenho certezas. E penso, diante das muitas avaliações e críticas de comentaristas políticos, muitas delas contrariando a direção de outras tantas, que certeza, certeza, ninguém tem ainda, porque é muito cedo, não obstante as inúmeras linhas de afirmações críticas de muitos posts.
Não me furto de jogar no blog as mais contraditórias para que se forme um arquivo, um leque de análises que leve os navegantes a refletir.
Em muitos dos comentários aqui postos, juram seus autores que descobriram a mais pura verdade sobre o que está acontecendo.
O texto do Janer é um exemplo, ao criticar a revista Veja, sem no entanto deixar de jogar a âncora das suas certezas na compreensão do significado e resultados possíveis, do que, parece-me, chama de balbúrdia de uma juventude desvairada.
Observo, a propósito do texto acima, que ninguém, ou quase ninguém, chamou o movimento de revolução...
Por essa razão, pergunto se algum dos navegantes tem certezas que expliquem a explosão das frustrações, ou se o futebol irá imergir a todos no paraíso das chuteiras e no berro de "é campeão!"
m.américo
A revolução, por sua vez, é a mudança total. A partir da concepção astronômica de revolução – movimento que fecha um ciclo, que passa de um regime a outro após uma translação completa – Camus precisa sua definição. A revolução implica uma mudança do regime de governo. Para que uma mudança econômica seja uma revolução econômica é preciso que ela seja ao mesmo tempo política. Sejam seus meios sangrentos ou pacíficos, é a mudança política, a mudança de governo, que distinguirá a revolução da revolta. Esta dicotomia fundamental é posta em relevo pela frase célebre, citada por Camus: "Não, Sir, não se trata de uma revolta, mas de uma revolução".
Comentei esta distinção feita por Camus há dois anos, quando Tunísia e Egito derrubaram suas ditaduras e o movimento tendia a espalhar-se por outros países árabes e africanos. As manchetes todas falavam em revoluções democráticas. Quem hoje ousa falar em revoluções democráticas no mundo árabe?
Pelo jeito, deu a louca na Veja. Em edição que intitula como histórica, tem como chamada de capa:
OS SETE DIAS QUE MUDARAM O BRASIL
Salvo engano, Brasil é este país em que vivo e no qual agora escrevo. Para qualquer lado que olhe, não vejo mudança alguma. Salvo alguns prédios e carros depredados, mas isso nada tem de novo no país. Verdade que uma dúzia de cidades andaram baixando em alguns centavos a tarifa do transporte coletivo. Mas isto está longe de mudar qualquer país. Procuro a reportagem para ver o que mudou. Vamos lá:
“O PT acreditava que a paixão dos brasileiros pelo futebol seria exacerbada pelas Copas, de tal forma que ninguém mais notaria a corrupção e a ineficiência do governo. Errou feio. Os cartazes das ruas fizeram das Copas símbolos odiados do gasto público de péssima qualidade, do desvio de dinheiro e do abuso de poder”.
Símbolos odiados? Odiados por alguns gatos pingados. Os estádios estiveram lotados nesta Copa e isso que nem é a Copa do mundo, a que de fato inflama paixões. Veja superestima a multidão das ruas. Consta que foram um milhão na quinta-feira passada.
A situação não é tão grave como parece ser – comentei ontem -. Um milhão de pessoas nas ruas é 0,5 da população. A transmissão contínua das televisões dá a idéia de um país em chamas. Ora, longe disso. Meu bairro continua em seu mesmo ritmo. Todo mundo comprando, trabalhando, comendo, bebendo. O mesmo ocorrerá em dezenas, centenas de outros bairros, em São Paulo e no país todo. Vistas pela televisão, as cidades parecem ser puro caos. Não são. Caos só em dois ou três pontos do centro e nas avenidas onde os “jovens” se concentram.
Se o país mudou, não fui avisado. Veja continua insistindo em sua tese:
“Em 1992, em gesto de desespero, o então presidente Fernando Collor convocou os brasileiros a sair às ruas de verde e amarelo. O povo saiu de preto e ele saiu do palácio do Planalto. (...) Lula mandou os sindicalistas se fingirem de povo e o resultado foi o mesmo. Cascudos nos intrusos e bandeiras queimadas e rasgadas. Os esquerdistas tiveram de ouvir um dos mais elegantes xingamentos da história mundial das manifestações: “Oportunistas, oportunistas”.
Veja endossa a tese de que foram os cara-pintadas que derrubaram Collor. Ora, quem derrubou Collor foi o Congresso. Foram os deputados que Collor, jovem e arrogante, se recusou a comprar. Lula foi mais hábil. Esteve perto de um impeachment, mas o Congresso já estava regiamente pago.
Os mensaleiros que o digam. A revista também acha que alguns cascudos e algumas bandeiras queimadas em meio a uma confusão significam uma mudança no país.
No texto seguinte, Veja compara a baderna generalizada chez nous com a queda do muro de Berlim e a invasão da Áustria pelos húngaros em 89. Compara a rebelião de nações escravizadas por meio século pela União Soviética com o levante de uma meninada que até agora não soube dizer a que vem. “O comunismo acabou e a Alemanha se reunificou”, salienta a revista, para confirmar sua tese de que o petismo acabou. Ora, o petismo pode estar surpreso com o episódio, mas continua vivo e pujante enquanto houver uma nação a saquear. A União Soviética morreu de vez, dois anos depois da queda do Muro. Dona Dilma lidera as preferências dos eleitores para o próximo pleito.
Veja lembra que a frase que intitula a reportagem é de Lênin. “Até ele ficaria sem palpite se tivesse presenciado as mudanças as mudanças dos últimos dias no Brasil”. Sim, Lênin, que fuzilou o czar e sua família, que exterminou kulaks e criou gulags, certamente ficaria perplexo ao ver jornalistas chamando de revolução uns cascudos distribuídos em militantes de um partido corrupto.
“Esqueçamos os vândalos e os anarquistas, gente que não estava lutando por um governo melhor, mas por governo nenhum. A revolução verdadeira foi a que começou a ser feita pelos brasileiros que foram às ruas protestar por estar sendo mal governados” – escreve a revista, para bem salientar que de revolução se trata. Mais ainda, não é apenas revolução. É revolução verdadeira. Até dona Dilma deve estar rindo dos “revolucionários”. Quando pensava em revolução, em vez de ir para a rua portando cartazes, pegou em armas.
Que mudança de governo, que mudanças políticas, provocaram as multidões nas ruas? Nenhuma. O PT continua no poder, o PMDB também, o PSDB finge ser oposição, corruptos impunes e notórios continuam ocupando cargos no Congresso, corruptos notórios – e condenados – continuam exercendo a deputação.
De meu conhecimento, nunca a palavrinha foi tão desmoralizada. As revoluções começam com maiúsculas, continuam com minúsculas e acabam entre aspas, escreveu Ernesto Sábato. A revolução decretada por Veja começa pelo fim do caminho, entre aspas.
23 de junho de 2013
janer cristaldo
NOTA AO PÉ DO TEXTO
E você, navegante deste blog, o que pensa dessa antecipação de fracasso, feita pelo janer? Realmente, segundo o texto, o que aconteceu e ainda acontece, seria apenas balbúrdia de grupelhos descontentes, mas sem objetivos que norteiem os seus descontentamentos e frustrações? Ou no bojo desse movimento, uma juventude, e não diria apenas `uma juventude`, mas a reunião de várias classes sociais e pessoas de variadas idades, estariam latentes o desejo de mudança e a força de prosseguir até alcançar o início de um pacto sério de mudança?
Claro, revolução não é bem o que está acontecendo... De fato, até agora não se revogou nada. Será que isso apenas evidencia o pouco tempo do movimento, ou teríamos apenas uma manobra de massas aturdidas e sem direção?
O que trará o futuro? Eu não tenho respostas, porque não tenho certezas. E penso, diante das muitas avaliações e críticas de comentaristas políticos, muitas delas contrariando a direção de outras tantas, que certeza, certeza, ninguém tem ainda, porque é muito cedo, não obstante as inúmeras linhas de afirmações críticas de muitos posts.
Não me furto de jogar no blog as mais contraditórias para que se forme um arquivo, um leque de análises que leve os navegantes a refletir.
Em muitos dos comentários aqui postos, juram seus autores que descobriram a mais pura verdade sobre o que está acontecendo.
O texto do Janer é um exemplo, ao criticar a revista Veja, sem no entanto deixar de jogar a âncora das suas certezas na compreensão do significado e resultados possíveis, do que, parece-me, chama de balbúrdia de uma juventude desvairada.
Observo, a propósito do texto acima, que ninguém, ou quase ninguém, chamou o movimento de revolução...
Por essa razão, pergunto se algum dos navegantes tem certezas que expliquem a explosão das frustrações, ou se o futebol irá imergir a todos no paraíso das chuteiras e no berro de "é campeão!"
m.américo
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