A qual elite deve ser aplicado esse conceito?
O
conceito admirável de "elite predatória" foi lançado pelo ilustre presidente do
PT, dr. José Genoíno, e a ele já tive ocasião de me referir anteriormente. A
idéia de ser o Brasil governado por uma elite predatória é politicamente
correta, havendo apenas discrepâncias sobre o verdadeiro sentido da expressão.
Indubitavelmente, é o nosso país dominado por uma certa casta cujo caráter
"predatório" pode ser julgado de maneira diversa, conforme nos alinhemos por
preconceitos coletivistas; por interesses corporativistas ou por idéias liberais
concernentes às vantagens de um "Estado Mínimo" onde possa ser limitada a
capacidade da aludida elite de exercer sua atividade nefasta.
Outra certeza que
se me impõe é que tanto José Genoíno como este seu amigo a ela (elite)
pertencemos - ele, como político militante: eu, como funcionário público
aposentado. O conceito corresponde estritamente à noção de "patrimonialismo" de
Max Weber.
Patrimonialista
é a sociedade em que o Estado precede ou se coloca acima do grupo social cuja
segurança, ordem pública e legitimidade deve garantir. No patrimonialismo, a
sociedade serve e financia o Estado, em vez do que geralmente ocorre numa
sociedade democrática livre e séria, do tipo racional-legal.
Ora, sempre foi o
predomínio do Estado predador uma característica distintiva da sociedade
brasileira, desde o desembarque luso na Terra dos Papagaios. Fato inédito na
História universal: o Brasil já se tornara patrimônio da Coroa portuguesa em
1494, antes mesmo de ser "descoberto".
Lembrem-se que o primeiro documento
oficial de nossa história, a carta de Pero Vaz de Caminha, continha um pormenor
tipicamente patrimonialista: o pedido do missivista ao venturoso d. Manuel para
que a um parente seu presenteasse com um emprego.
Daí por diante, capitães
gerais, vice-reis, governadores, ministros e funcionários que se seguiram, ao
longo dos séculos, não foram escolhidos entre os súditos da coroa em virtude de
um sistema "contratualista", propriamente meritocrático, mas por indicação do
soberano. O teste do Quociente de Inteligência (QI), para recrutamento da
"elite", funciona aqui, principalmente, pelo sistema definido na expressão
galhofeira "Quem Indicou".
O
soberano, seja ele rei, imperador, ditador ou presidente, é essencialmente,
aquele que distribui prebendas e empregos. O contraste é grande com o modo como
se formaram, por exemplo, os Estados Unidos da América.
Ali, salvo algumas
exceções como o Maryland e a Virginia, os Estados se constituíram
espontaneamente por imigrantes europeus que, democraticamente, determinavam suas
instituições governamentais.
A tradição era antiga. Vinha da Magna Carta de 1215
e das várias "revoluções" que estabeleceram o princípio "não há taxação sem
representação". O controle dos impostos pelos representantes do povo - no
taxation without representation - é essencial num regime democrático
"representativo".
Os americanos se rebelaram e, em 1776, proclamaram a
independência exatamente porque o governo londrino taxara seu consumo de chá e
sal, sem que gozassem de representação no Parlamento de Londres que lhes impunha
o peso fiscal.
Aliás, no próprio Brasil, nossa primeira tentativa, na
Inconfidência de Ouro Preto, se originou no desejo de não alimentarmos o
famigerado apetite da Coroa portuguesa pelo ouro das Minas Gerais.
Em 1808,
foi o Brasil invadido por uma chusma de nobres e burocratas lisboetas que
acompanhavam d. João VI. O filho desse monarca vitoriosamente proclamou a
Independência e assegurou a unidade do nosso extenso Berço Esplêndido sem que,
no entanto, jamais um regime representativo, liberal democrático, houvesse
fincado raízes profundas de natureza contratualista.
As coisas, aqui, sempre
tenderam para a manutenção de uma economia política mercantilista e
patrimonialista. O 15 de Novembro reforçou a tentação autoritária da tese
positivista relativa à "Ditadura Republicana" e, em 1930, uma falsa "revolução
liberal" impôs concretamente o domínio personalista de Getúlio Vargas que
duraria 15 anos.
O regime militar de 1964, depois de uma frustrada tentativa
liberal sob o governo Castello Branco e a administração técnica de Bulhões e
Roberto Campos, degenerou na paranóia estatizante de Ernesto Geisel - tendo sido
o monstruoso dinossauro assim criado legitimado na Constituição dos "miseráveis"
do "dr." Ulysses, um bando patético de bem-intencionados e românticos
legiferantes que encheu a Carta Magna de absurdos e contraditórios "direitos",
tendentes a estimular o apetite do Leviatã.
Inspirado
em Oliveira Vianna, Ricardo Vélez Rodríguez descreve o Estado brasileiro, por
esse motivo, como "orçamentívoro". Em vez do ímpeto liberal de reduzir os
impostos, na base do não há taxação sem representação, os legisladores e
governadores brasileiros tendem, invariavelmente, a aumentá-los.
A carga já
teria ultrapassado um terço do PIB, obrigando o Executivo a conter a fúria
perdulária que se traduz em inflação, esbanjando perversa e arbitrariamente os
recursos assim disponíveis. Os "servidores", em número excessivo, recebem seus
salários, mas os serviços públicos são péssimos.
O País progride lentamente
graças ao ingente esforço do setor privado, assoberbado pelo chamado "custo
Brasil".
É a tendência oposta à que deveria orientar uma democracia
verdadeiramente progressista, liberal e representativa, razão pela qual não se
engana o dr. Genoíno, "olá, companheiro!", ao se referir à elite governante como
predatória.
Mas a que
se destina a opressora carga tributária? Uma parte mínima a manter serviços
públicos monopolistas que dificilmente poderiam caber ao setor privado da
economia. O maior peso é representado pelo sustento da "Nova Classe Ociosa" de
políticos e burocratas que a guarnecem.
Os "Donos do Poder" (Faoro e Schwarzman)
e seus subalternos consideram o patrimônio público como "Coisa Nossa" (Oliveiros
Ferreira). Pouco produzem e, na verdade, só discursos, papéis e carimbos - e, em
muitos casos, apenas consomem. Falam grandiloqüentemente em "justiça social",
mas de tal maneira que o Estado acaba se transformando no que Octavio Paz
qualificava como um "Ogro Filantrópico" - sendo o produto da filantropia
consumido internamente.
Assim prosperam os "marajás" - membros do que, na antiga
URSS, se denominava a Nomenklatura. O País já teria ido à falência não fossem os
empresários "capitalistas", isto é, justamente aquela classe "burguesa" que,
galharda e desesperadamente, resiste à "opção preferencial" pelo enriquecimento
dos 10 ou 12 milhões de membros do setor público.
Quem são
estes? São os membros dos Três Poderes federais - 500 deputados, 70 senadores,
milhares de juízes, governadores, ministros, generais, almirantes, embaixadores,
6 mil prefeitos e respectivos abundantes secretários, 2 mil ou 3 mil deputados
estaduais, 60 mil vereadores - enfim, um número indeterminado de "altos
funcionários" com DAS, além de uma multidão incalculável de barnabés e Marias
Candelárias, com seus dependentes, na ativa ou aposentados - o número exato
sendo desconhecido precisamente porque não interessa ao IBGE (por motivos
óbvios) recenseá-los como tal. A lei da omertà é estrita e não perdoa. Falo com
conhecimento de causa, pois, há 65 anos, sou membro da aludida classe e sei que
é perigoso abrir o bico.
A parte
superior da classe dominante consumidora - o cérebro minúsculo do gigantesco
brontossauro - é uma coterie ou uma patota que se locupleta com alta remuneração
por ela mesmo fixada (e sempre tendente a aumentar). É uma "famiglia" de
formação semelhante à que, há séculos, cresceu no fértil solo da Sicília. Ela
goza de privilégios especiais contra o Estado de Direito que impera nas
democracias liberais.
Alguns exemplos. Segundo um editorial do JB (7/11/2001),
um deputado federal ganha R$ 1.332.000 por ano e um senador da República, R$
25.560.000, o que inclui salários, casa, domésticos, luz, água, telefone,
assessores (grande parte da própria família), passagens aéreas, automóveis,
viagens ao exterior com diárias, etc. O privilégio comporta, ainda, o de ficar
acima da lei.
O jovem assassino do índio pataxó, filho de um magistrado de
Brasília, classificado em 65° lugar em concurso (coitadinho!) foi contratado
para o tribunal pelo próprio pai com um salário de R$ 1.300, embora só houvesse
12 vagas (Correio Braziliense, 22/12/01). Esse tipo de Justiça, em termos
"minervinos", demonstra que a desigualdade que contamina toda a estrutura social
brasileira não resulta do poder econômico, mas sim do poder político.
Outro
exemplo é o do artigo da Constituição que estabelece "todos são iguais perante a
lei" e todos têm "direito à saúde" (art.196). Façam um cálculo e considerem se
os 174 milhões de brasileiros podem gozar do mesmo grau de tratamento intensivo
em hospital de elite que foi dispensado ao presidente Tancredo Neves e ao
governador Covas, em suas moléstias fatais.
Sejamos
realistas! Se há discrepâncias na repartição dos benefícios sociais que
favorecem a Nomenklatura, torna-se mais fácil a definição de quem compõe a
"elite predatória" brasileira: não são os que pagam os impostos, mas os que
vivem do produto dos impostos pagos pelos outros."
José Osvaldo de Meira Penna
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