Poderes e corrupção
As fraturas no Estado brasileiro fortalecem a corrupção que entre nós está sedimentada.
Naquele artefato político anacrônico o Poder Executivo é essencial, os demais setores são adjetivos. Ele não se modificou em profundidade desde 1824 e o poder de quem o controla foi hipertrofiado após as ditaduras do século 20.
A Presidência, para se manter, deve pedágios aos oligarcas do Congresso e garante a escolha de seus candidatos aos tribunais superiores.
Da crise entre o Judiciário e parlamentares pode vir um fortalecimento desastroso do Executivo. A Constituição de 1988 em farrapos não encontra quem a interprete de maneira inconteste. O mito da harmonia entre poderes é desmentido a cada minuto. Para entender o desarrazoado que nos rege, podem ajudar algumas achegas ao pensamento jurídico conservador e liberal.
O Congresso abriga líderes sem compromisso com os programas oferecidos nas urnas. Eles fazem política sem doutrinas, domesticados por verbas ou cargos num farsesco realismo miúdo. Em vez de atenuar os delitos políticos, tal atitude reforça na população a esperança em algum salvador que, da Presidência e de modo autoritário, limparia os costumes. O golpe de 1964, recordemos, foi justificado pelo combate à corrupção. Figuras como Jânio Quadros, Collor de Mello e outras usaram a indignação das massas para chegar à Presidência, lá ficando por breve tempo, sem apoio político.
Na história recente as teses da direita elogiam o Executivo em detrimento dos outros poderes. É o caso de Carl Schmitt, o autor de A ditadura. Emulado por juristas como Francisco Campos, Schmitt cunhou a fórmula segundo a qual "soberano é quem decide sobre o estado de exceção".
Ele foi crítico (e, não raro, com acerto) do Parlamento. Para levar a sério a democracia, afirmava, só o povo pode decidir o seu destino e jamais os deputados.
Em O Protetor da Constituição, ele apela ao presidente da República, o único vigia seguro da Carta, e menciona o Poder Moderador brasileiro posto acima das pretensões parlamentares. Nega também que o Judiciário possa guardar a Constituição porque age atrasado para sanar desvios institucionais.
"A independência é a necessidade primeira para um protetor da Constituição", juízes e deputados não podem cumprir o mister, pois não são independentes o bastante para garantir o Estado. Só o presidente suspende o direito "em virtude de um direito de autoconservação".
É o golpe e a ditadura. Schmitt retoma o slogan contra o regime democrático: nele se discute, pouco se decide. Mas a democracia é um processo no qual não existem garantias de vitórias sem amarguras. Cada costume melhorado incentiva o bem público. Hoje, infelizmente, boa parte de nossos parlamentares age como lobistas. Quando se ouve falar em "bancadas" no Congresso, o que temos são grupos que atuam em prol de interesses particularíssimos.
Carl Schmitt não cita por acaso a Carta brasileira de 1824. O Poder Moderador, nela, foi um golpe contra a soberania popular e o Parlamento.
Os idealizadores de nosso Estado seguiram a contrarrevolução europeia. O movimento de 1789, no seu entendimento, resultou em anarquia. Para barrar tal ameaça, fomos submetidos ao monarca "pela graça de Deus". Segundo o conservador Guizot, "o mais simples bom senso reconhece a necessidade da limitação de todos os poderes, quaisquer que sejam seus nomes e formas.
Abri o livro em que o sr. Benjamin Constant tão engenhosamente representou a realeza como poder neutro, moderador, elevado acima dos acidentes, das lutas sociais, e que só intervém nas grandes crises. É preciso que haja nesta ideia algo muito próprio a mover os espíritos, pois ela passou com uma rapidez singular dos livros para os fatos. Um soberano dela fez, na Constituição do Brasil, a base de seu trono; a realeza é representada como Poder Moderador elevado acima dos poderes ativos, com espectador e juiz".
Segundo Constant, o Poder Moderador é neutro e apanágio da realeza, os ministros respondem pelo governo e os legisladores nada recebem. O julgamento pelo júri é a norma e impera a livre imprensa. No elogio do Poder Moderador feito por Guizot há um desvio do conceito. Constant define aquele poder como neutro para coordenar os demais. Pôr os quatro poderes numa hierarquia vertical foi o golpe em 1824. A tendência centralizadora definiu o Estado com privilégio do chefe, amesquinhando o Parlamento e o Judiciário.
As prerrogativas do Poder Moderador, inconfessadas, persistem hoje na Presidência da República, o que leva às fraturas no Estado, pois o Executivo negocia apoio parlamentar (com várias técnicas), nomeia os juízes do Supremo, controla o Senado, mas é praticamente destituído de responsabilidade.
Vivemos como se ainda vigorasse o Título 5, Capítulo primeiro, artigo 99 da Constituição de 1824. Sagrada, a pessoa presidencial não está sujeita a sérios questionamentos.
Ela domestica, pela propaganda e controle dos recursos públicos, a soberania popular, distorce a representação do Parlamento. As duas ditaduras que marcaram o século anterior levaram ao paroxismo a distorção da máquina estatal. A Presidência brasileira é absolutista e propensa à ditadura.
A lei da reeleição, as medidas provisórias que se eternizam, a prerrogativa de foro para agentes dos poderes definem alguns dos principais óbices para a democracia. E temos a sucessão de crise após crise, porque não existe limite efetivo para o Executivo. Se este último ignora barreiras, o mesmo tentam fazer os demais.
Reaparece, surgida da indecisão jurídica nacional, outra fórmula cunhada por Carl Schmitt: política é o campo onde os inimigos são definidos. Inimigo harmônico é quimera, algo tão fantasioso quanto as leis no Estado brasileiro.
23 de junho de 2013
ROBERTO ROMANO É FILÓSOFO, PROFESSOR DE ÉTICA E FILOSOFIA NA UNICAMP, E AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE 'O CALDEIRÃO DE MEDEIA' (PERSPECTIVA). Editorial do Estadão
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