O País está diante de um movimento que ficou maior do que podiam imaginar os militantes da única organização conhecida a promovê-lo, o MPL, que prega a gratuidade dos serviços de ônibus urbanos. Nessa mesma medida, nem os ativistas do chamado Passe Livre nem a imensa maioria ’A violência das minorias’ dos manifestantes conseguem controlar os grupelhos que a eles se juntam para provocar, depredar, pilhar e destruir.
Quando os que saem às ruas ─ praticamente sem lideranças organizadas ─ se transformam em multidões, a mudança não é apenas de ordem de grandeza. Multidões tendem a ser disformes, impulsivas, imprevisíveis ─ e propensas à violência. Nelas esmaecem as fronteiras entre os “do bem” e os que ali estão para “causar”. Conforme as circunstâncias, esses podem contaminar aqueles, embora a recíproca não seja verdadeira.
O reconhecimento dessa realidade não visa a desqualificar os protestos, cujo vertiginoso alastramento deixou todos boquiabertos. Viver numa democracia é mais do que ter o direito de escolher livremente governantes e parlamentares em intervalos regulares. As sociedades querem se exprimir, cada vez mais, nos sites de relacionamento e de corpo presente.
A sua agenda pode ser difusa, como se vê agora no País, onde os participantes das passeatas não são rebeldes sem causa, mas com causas em demasia.
E essas, ou melhor, a sua vocalização se origina de um sentimento também difuso de ira com as mazelas nacionais que os governos e os políticos ou não conseguem eliminar ou toleram, movidos por interesses que os indignados percebem como alheios ou antagônicos aos da população.
Daí, para citar um exemplo de uma infinidade, o cartaz que circulou pela Avenida Paulista, anteontem, no carnaval pelo cancelamento do reajuste das tarifas de transporte.
Os logotipos de um punhado de siglas, como as do PT, PSDB e PMDB, apareciam riscados, ao lado do aviso: “Nenhum deles me representa”. Daí também o veto ao uso de bandeiras partidárias, que descambou para o autoritarismo na manifestação de mais de 100 mil pessoas em São Paulo, quando autointitulados “nacionalistas” obrigaram pessoas a tirar as camisetas com a insígnia do PSOL.
Ironicamente, a reprovação sem limites do “sistema” faz lembrar a propaganda do então candidato petista à prefeitura paulistana Fernando Haddad, queimado em efígie juntamente com o governador tucano do Estado, Geraldo Alckmin.
Aludindo à expansão da capacidade de consumo do grosso dos brasileiros, graças aos ganhos de renda obtidos nos anos Lula, ele dizia que a vida das pessoas tinha melhorado da porta de casa para dentro, mas faltava melhorar muito da porta de casa para fora.
Se algo se pode distinguir na algaravia dos jovens que se esparramaram pelas avenidas de uma centena de cidades é precisamente isso: os governos têm sido um fracasso em matéria da oferta de bens públicos que valham uma fração que seja dos impostos que se pagam por eles. Ou, como já se diz faz tempo: temos tributos suecos para serviços nigerianos.
O problema é que as melhores causas se prestam aos piores atos. Na quinta-feira, Brasília esteve longe de ser um ponto fora da curva.
No Rio de Janeiro, no primeiro dia da volta da velha tarifa, a tentativa de invadir a sede da prefeitura, entre outras violências, provocou confrontos com a PM que deixaram 62 feridos, deformando o que até então vinha sendo uma marcha ordeira de 300 mil pessoas.
Em Ribeirão Preto, o pânico levou um motorista a atropelar um grupo de manifestantes, matando um deles. Ontem, em Belém, uma gari de 54 anos morreu por ter inalado gás lacrimogêneo durante os incidentes da véspera.
Os cidadãos comuns se tornaram duplamente reféns: dos baderneiros que desdenham das exortações da maioria ao pacifismo e do costumeiro descontrole das tropas mobilizadas para reprimi-los.
23 de junho de 2013
Editorial do Estadão
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